Nas Obras Completas, quando C. G. Jung (2018) discorre sobre o grupo familiar, tende a utilizar o termo “atmosfera familiar”, o que, de fato, é muito interessante para ampliarmos o fenômeno do contágio psíquico. Uma atmosfera (do grego antigo: ἀτμός, vapor, ar, e σφαῖρα, esfera) é uma camada de gases que envolve (geralmente) corpos materiais. Em uma família, podemos aproximar, homologicamente, esse termo “corpos materiais” dos egos que a compõe, tendo aí uma diferenciação entre um e outro. Contudo, tudo isso é relativamente uma ilusão. Em qualquer ambiência micro ou macro-cósmica, um corpo sempre retroagirá sobre o outro. Ou seja, a ideia de diferenciação do eu (ego) e do outro é parcialmente satisfatória. Devemos, de antemão, considerar a ideia dos “gases”, que são indiferenciados. Essa indiferenciação é demasiadamente profunda. A partir da física quântica, perceberemos que nada é matéria, mas energia se relacionando, e sabemos que energia é informação transitando no tempo e no espaço. Já, no cotidiano humano, se levarmos em consideração a hereditariedade biológica ou até mesmo o quanto ficamos semelhantes fisionomicamente com os nossos pais com o passar dos anos perceberemos que não somos tão diferenciados assim, literal e simbolicamente. Para C. G. Jung, podemos denominar essa ambiência de inconsciente familiar e até coletivo.
Para aprofundarmos a ideia de gases, talvez seja interessante ter em mente a problemática de Hillman: eu não sei se a psique está em mim ou se eu estou na psique. Se considerarmos uma psique familiar, ou seja, uma consciência da família com seus valores, leis, hierarquias, hábitos etc; e o inconsciente familiar que ultrapassa o pessoal e garante uma influência geracional, poderemos vislumbrar que há algo de indiferenciado e, portanto, de livre acesso de conteúdos inconsciente na psique familiar. Isso fica mais claro nos dias atuais pois já existem pesquisas sobre psicopatologia e família que demonstram a sugestionabilidade dos familiares de desenvolverem a patologia presente em pelo menos um único indivíduo, como a depressão, o pânico, a ansiedade, etc. Curiosamente, parece que a atmosfera familiar também acontece interespécies e não se restringe à psicopatologias. Estive em diversos diálogos com médicos veterinários e muitos relatam que, frequentemente, atendem animais em que o tutor possui a mesma patologia, como metástases.
Evidentemente, existem estudos que levantam a hipótese de que há unicamente hereditariedade genética nas psicopatologias. Em nossa opinião, é necessário relativizar essa hipótese, visto que ela cai em um determinismo, e todo determinismo é uma grande unilateralidade racionalista. O próprio C. Jung já discorreu sobre: “muita coisa que é interpretada como hereditariedade em sentido estrito é antes uma espécie de contágio psíquico que consiste em uma adaptação da psique infantil ao inconsciente dos pais.” (JUNG, 2017, § 248)
Para adentrarmos a ideia de contágio psíquico no ambiente familiar, vale recorrermos a Erich Neumann (1995) (2014) quando descreve-nos os estágios de desenvolvimento da consciência. O primeiro estágio inicia-se desde a concepção e se encerra no primeiro ano de vida. Até então, o neonato, segundo o autor, não possui autonomia corporal. Se o compararmos com outros mamíferos nos primeiros momentos de vida até completarem 12 meses perceberemos que o ser humano nasce prematuro.
Neumann (1995) aponta que ao longo do desenvolvimento da consciência os estágios são dominâncias e permanências de imagens arquetípicas cuja superação de cada estágio pelo indivíduo cria uma relativa diferenciação para assim surgir o ego solar. Isso significa que toda vivência humana interior ou exterior é mediada pelas imagens, sendo a primeira mais direta (do inconsciente para o ego) e a segunda mais indireta (a concepção do mundo feita pelo ego para ele mesmo). É importante frisar isso pois Neumann propõe entendermos os estágios como imagens. Do período intrauterino ao primeiro ano de vida, a imagem que o autor sugere é a uroboros – a cobra que morde a própria calda, portanto, não possuindo fim ou começo, seria uma simbiose, em um primeiro momento com o todo experiencial; e depois, em um segundo momento, com a mãe. Mais especificamente, para o autor, seria o Self migrando ou criando um atrator, primeiro para o uno urobórico e depois para a Grande Mãe.
Neumann (1995) aponta que o desenvolvimento da consciência é homologicamente semelhante tanto filo quanto ontogenicamente, portanto, estes estágios primeiros são matriarcais. E, quando a consciência segue o seu desenvolvimento, prosseguindo para o estágio patriarcal até o ego solar, os estágios antecessores ainda permanecem na psique, não sendo um processo unilateral, mas um processo que se estabelece em camadas. Isto é importante conceber para chegarmos ao fenômeno da participação mística que C. G. Jung atualizou de Levy Brühl. Este epifenômeno, ou seja, esse abandono do ego e retorno ao estado urobórico fica evidente quando Jung afirma que, ”via de regra, quando o inconsciente coletivo se torna verdadeiramente constelado em grandes grupos sociais, a consequência será uma quebra pública, uma epidemia mental que pode conduzir a revoluções, guerra, ou coisa semelhante. Tais movimentos são tremendamente contagiosos, eu diria inexoravelmente contagiosos, pois, quando o inconsciente coletivo é ativado, ninguém mais é a mesma pessoa.”– (JUNG, 2019, p. 61-62).
Isso se dá, porque a consciência provém do inconsciente. O que nos permite depreender que a relativa diferenciação só é possível se houver, a priori, indiferenciação. Mesmo que fosse possível construir muros egóicos para diferenciar-se de um terreno ilimitado, não escaparíamos da atmosfera invasora e necessária para estarmos vivos e respirando. É por meio deste terreno e dessa atmosfera indiferenciados que a primeira comunicação humana atua e nunca deixará de atuar na vida do indivíduo: o contágio psíquico.
O contágio psíquico possui pouca relação entre egos, senão cairíamos em um fenômeno mecânico de imitação macaqueada. Ele ocorre sem freios devido à ilusão racionalista de que somos inteiramente diferenciados. Se desvelássemos este véu da diferenciação e considerássemos que somente em parte somos diferenciados, perceberíamos que o contágio se estabelece do inconsciente para a consciência. Isto é, a emergência do fenômeno do contágio não é causal: aquele ri pois o outro está rindo; ou chora pois o outro está chorando; ou boceja pois outro está bocejando. A relação do contágio é sincronística do vocatus atque non vocatus devs aderi (invocado ou não deus está presente), isto é, […] quando possuído, não é mais um indivíduo, ele passa a ser o próprio possuidor, ou seja, a força psíquica coletiva (a imagem) que o contágio leva e traz. Isso acontece, em maior ou menor grau, garantindo menos ou mais autonomia para o próprio ego.
Por isso mesmo, no ambiente familiar, é supérfluo o esforço dos pais de esconder algo considerado negativo dos filhos, pois, aquilo que não é falado ou não é exposto é tão presente e impactante na psique individual quanto aquilo que é. A diferença é que um está na luz e o outro na sombra, garantindo mais elaboração consciente ao primeiro e menos elaboração ao segundo. Assim, no caso da criança, ela terá que lidar com o contágio psíquico de conteúdos coletivos e familiares sem o suporte paterno e materno, o que pode conferir uma experiência destrutiva para ela.
“A criança faz de tal modo parte da atmosfera psíquica dos pais que as dificuldades ocultas aí existentes e ainda não resolvidas podem influir consideravelmente na saúde dela. A participação mística (participation mystique), que consiste na identidade primitiva e inconsciente, faz com que a criança sinta os conflitos dos pais e sofra como se os problemas fossem dela própria. Não são jamais os conflitos patentes e as dificuldades visíveis que têm esse efeito envenenador, mas as dificuldades e problemas dos pais mantidos ocultos, ou mantidos inconscientes. O causador de tais perturbações neuróticas sem exceção alguma é sempre o inconsciente. Coisas que pairam no ar ou que a criança percebe de modo indefinido, a atmosfera abafada e cheia de temores e apreensões, tudo isso penetra lentamente na alma da criança, como se fossem vapores venenosos”. (JUNG, 2018, § 217)
Leonardo Torres: Analista em Formação pelo IJEP
Analista Ditada: Waldemar Magaldi
Referências
NEUMANN, E. A Criança. São Paulo: Editora Cultrix, 1995.
NEUMANN, E. História da Origem da Consciência. São Paulo: Editora Cultrix, 2014.
JUNG, C. G. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 2018.
JUNG, C. G. A Vida Simbólica I. Petrópolis: Vozes, 2019.
TORRES, L. Contágio Psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021. ISBN 978-65-993921-0-8.