E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação.
Desisto, e terei sido a pessoa humana – é só no pior de minha condição que esta é assumida como o meu destino. Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Desisto, e para a minha pobreza humana abre-se a única alegria que me é dado ter, a alegria humana. Sei disso, e estremeço – viver me deixa tão impressionada, viver me tira o sono (LISPECTOR, 2020, p. 177-178).
Apresentado a este texto no início da minha análise pessoal, há alguns anos, o mesmo vem sendo meu companheiro de jornada. E também um poderoso instrumento de trabalho nos processos com meus pacientes.
A autora, Clarice Lispector, dispensa apresentações, mas vale sempre lembrar o seu conhecimento e experiência com a alma humana, seus labirintos, seus desafios e sua complexidade.
“A desistência é uma revelação” é um daqueles textos desconcertantes, que invertem a ordem das coisas postas, criam um caos, mas ao mesmo tempo trazem um sentido para a alma, pois não há quem, sendo um buscador inquieto, que não se sinta contemplado nestas linhas. Quem não se revigore nestas palavras durante a sua jornada.
Falar de desistência numa sociedade marcada pela competitividade, pelo culto a alta performance, pela produtividade constante e pela ideia de crescimento ininterrupto parece ser uma temeridade. Mas é exatamente a isso que o texto nos leva, nos provoca e radicalmente ainda exalta: “A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio”.
Mas de que desistência é essa?
Com certeza não se trata da desistência como covardia. Da desistência de quem nem ao menos tentou, seja por comodismo, por conveniência ou mesmo por sofrimento neurótico de quem está aprisionado na unilateralidade, muitas vezes cheio de razões, de certezas e consequentemente preso na miséria de significados, tornando a sua vida e de com quem convive um deserto árido.
O neurótico que procura livrar-se da necessidade da vida nada ganha e apenas se impõe o fardo de uma velhice e morte precoces, que devem ser particularmente cruéis diante da falta de conteúdo e de sentido de sua vida (JUNG, 2013 Vol. V, § 617, p. 465).
Ou seja, essa desistência covarde, contrária ao movimento da vida, segundo Jung, geraria apenas a morte. Seria a desistência da própria vida e de seus movimentos. Nos lembra Clarice que “É inútil procurar encurtar o caminho […] Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes”. Desistir não pode ser uma fuga, nem mesmo uma estratégia de manipulação da própria vida. A vida exige coragem. Exige enfrentamento. Exige capacidade de paixão, pathos, passar por. A vida exige capacidade de sofrimento, mas um sofrimento com sentido e que também gera novos sentidos, um sofrimento capaz de gerar o absolutamente novo, um sofrimento que é o próprio encontro com o novo, com o ainda totalmente desconhecido: A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela.
Também não se trata de uma desistência oriunda de fracassos. Que foi imposta por uma impossibilidade interna ou externa. Ou mesmo restos de desencontros, desilusões ou desidealizações. Fragmentos de projeções recolhidas ou deixadas pelo caminho: A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida.
Parece fazer sentido relacionar essa “desistência”, proposta por Clarice, um ato consciente, uma escolha do ego, com o Processo de Individuação, objetivo principal de toda a Psicologia Analítica proposta por Jung:
Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo. Podemos traduzir “individuação” como “tornar-se si-mesmo” (Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (JUNG, 2015, Vol. 7/2, § 266, p. 63).
E Jung continua:
A meta da individuação não é outra senão a de despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo das imagens primordiais (JUNG, 2015, Vol. 7/2, § 269, p. 64).
Desta forma, o Processo de Individuação exige do sujeito uma ação consciente e voluntária, ou seja, é através do ego que o processo de individuação pode acontecer, ele é quem se “despoja” das personas e vai se lapidando e tornando-se cada vez mais servidor do Si-mesmo. E tornar-se si-mesmo, muitas vezes se dá à revelia dos interesses sociais e culturais. Da “desistência” de ser idêntico ao mundo externo, da desistência de ser amado, incluído e pertencente o tempo todo. Assim sendo, desistir de forma consciente, ainda podendo, é uma escolha sagrada, pois ela é a condição da possibilidade de uma vida individual, plena e cheia de sentido, pois só vivendo a própria vida o homem é capaz de dar sentido a sua existência.
Existir exige de mim o grande sacrifício de não ter força, desisto, e eis que na mão fraca o mundo cabe. Ter uma vida plena não é ser o homem invencível, de sucesso, rico e poderoso. Para nossos autores a vida, o existir, exigem sacrifícios, exigem a mudança da direção da libido em nome de algo de maior valor. Sacrifício não é sofrimento pelo sofrimento. O sofrimento em si não ensina nada, não leva a lugar nenhum. O sentido, a razão, em nome do quê, de qual valor é produz novas possibilidades. E isso só é possível quando o sujeito é capaz de voluntariamente desistir do que pensa ser ele mesmo, quando assume sua condição de mortal, quando assume sua humanidade, então encontra a “a única alegria que me é dado ter, alegria humana”.
Mas não nos enganemos “…viver me tira o sono”.
Adriano Luiz Pardo – Analista em formação.
Ajax Perez Salvador –Analista Didata.
Referências
JUNG, C. G. Símbolos da Transformação. 9ª edição – Petrópolis, Vozes, 2013.
JUNG C. G. O Eu e o Inconsciente. 27ª edição – Petrópolis, Vozes, 2015.
LISPECTOR, Clarice A Paixão Segundo G.H. 1ª edição – Rio de Janeiro: Rocco, 2020.