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Destruição da natureza e psique

Close shot of a staring male jaguar

O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) revelou que 2021 foi o pior ano de desmatamento da floresta amazônica, comparado aos últimos 10 anos. O desmatamento cresceu 29% em relação a 2020 e, entre janeiro e dezembro de 2021, foram destruídos aproximadamente 10.362km2 de mata nativa. (Fonte: CNN, 2022).[1]

Em 2020, o Pantanal sofreu o pior ano de queimadas da história do bioma, segundo o monitoramento feito pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa). (Fonte: CNN, 2021).[2]

Este é um recorte mínimo da devastação da natureza sofrida em nosso país nos últimos anos. Destruir o bioma não é apenas cortar suas árvores, mas assassinar todo um ecossistema, um ecocídio.

A degradação ambiental está alinhada com a morte dos animais, das árvores, do solo, modifica o clima, causam inúmeros impactos sociais entre tantas outras consequências negativas.

Observamos um crescente avanço da tecnologia acompanhado por um sistema capitalista predatório que pouco se preocupa com a preservação ambiental, onde o meio ambiente é ignorado e a utilização dos recursos naturais é feita sem limites, apoiado por um desejo de progresso desenfreado que minimiza a importância dos ecossistemas.

Nosso modo de vida atual está apoiado numa grande sofisticação tecnológica e, em contraponto, numa desconexão com a natureza.

Porém, esquecemos que nós não apenas fazemos parte, mas somos a própria natureza, ou seja, num processo dissociativo esquecemos que nosso corpo é natureza. Além disso, desaprendemos que somos parte constituintes deste organismo vivo que é a Terra.

Em seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak nos convida a pensar que humanos e natureza fazem parte de um todo:

(…) fomos nos alienando desse organismo de que somos parte, a Terra, e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra: a Terra e a humanidade. Eu não percebo onde tem alguma coisa que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. (KRENAK, 2020, p. 17)

Jung mantinha um profundo respeito pela natureza e tratou deste assunto de modo farto em sua obra. Para ele, o funcionamento psíquico ocorre de maneira semelhante ao dos sistemas naturais.[3]

No livro A Natureza da Psique, Jung traz que psique e matéria são aspectos diferentes de uma só e mesma coisa:

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, acham-se permanentemente em contato entre si (…)  há não só a possibilidade, mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa. (JUNG, 2014, OC 8/2, § 418 ).

Psique e matéria estão entrelaçadas neste continuum chamado vida. Para ele, “a vida natural é o solo em que se nutre a alma” (JUNG, 2011, O.C. 8/2, § 800).

Jung também diz que “o inconsciente coletivo tem a correspondência com o nosso meio ambiente natural, e no qual se encontra projetado constantemente”. (2011, OC 10/4, § 667).

Em suas reflexões, Krenak traz algo semelhante quando diz que “a ideia de nos descolarmos da natureza, vivendo numa abstração civilizatória é absurda, pois ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”. (2020, p. 23).

Se o inconsciente coletivo está projetado no meio ambiente, a destruição da natureza aponta para uma grande sombra coletiva. De forma simbólica, podemos cortejar que as mutilações externas (da natureza) estão correlacionadas as mutilações internas (no inconsciente).

Conforme a Psicologia Analítica, a relação da psique pessoal com a psique coletiva corresponde à relação do indivíduo com a sociedade. Se a consciência é uma espécie de filha do tempo, o inconsciente coletivo é tão velho quanto a vida.

A sombra que dialoga com o poder, com o acúmulo de dinheiro onde “os fins justificam os meios” resultam, neste caso, numa exploração dos recursos naturais sem limites. No capitalismo predatório há uma obsessão de incessante crescimento às custas da destruição do meio ambiente.

De forma simbólica, o envenenamento na nossa psique causado por esta sombra coletiva é semelhante ao envenenamento pelo uso desmedido de agrotóxicos em nossos alimentos: consumimos o que nos mata.

Além disso, destruir a mata em busca de ouro e pedras preciosas retroalimenta a vaidade desmedida para reafirmar um status quo social calcado no poder.

Fica aqui a provocação expressa na contradição de pessoas que se dizem veganas ao comprarem e utilizarem joias: são contra a morte de animais mas estimulam a morte dos biomas de onde as matérias-primas foram extraídas.

Em suma, a origem do ataque à fauna e a flora pode ser entendido como uma espécie de projeção da nossa incapacidade compreensiva, agressiva e sombria ao fluxo da vida.

A dissociação do humano com a natureza também pode ocasionar adoecimentos psíquicos, como ansiedade, estresse, depressão etc. 

No livro A Última Criança na Natureza, Richard Louv traz informações que a privação da vida na natureza pode causar problemas físicos (como obesidade, por exemplo) e transtornos psicológicos nas crianças.

Em contrapartida, a reaproximação do humano à natureza pode ter efeito restaurador à psique. Um estudo publicado pela revista Nature em 2019, revelou que passar pelo menos 120 minutos (equivalente a duas horas) por semana em contato com a natureza pode melhorar o humor, a sensação de saúde e bem-estar, além de aliviar os sintomas de depressão leve, ansiedade e estresse. (Fonte: Nature, 2019).[4]

Um outro convite nos é feito pela sabedoria japonesa, que utiliza uma técnica chamada Shinrin-yoku – Banho de Floresta – que significa receber os benefícios físicos e psicológicos da interação humana com as florestas.

Uma pesquisa conduzida pelo Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar japonês, identificou que 54,2% das pessoas avaliaram seu nível de estresse como muito alto e nível de saúde baixa. (Fonte: A Ciência Explica, 2019).[5]

Ao realizar este “Banho de Floresta”, notou-se que pessoas estimuladas a caminhar, contemplar e respirar na natureza tiveram a pressão arterial regulada, houve benefícios nos batimentos cardíacos, notou-se aumento do nível geral de relaxamento e na qualidade do sono.

 De modo análogo, se a saúde é resultado do equilíbrio entre o corpo/mente com a natureza, a devastação ambiental e a crise ecológica poderão desencadear um processo de crise na saúde coletiva.

Porém, esses bolsões de destruição não são apenas uma situação do nosso país e sim de proporção planetária, de forma que a desconexão com o mundo natural pode ser entendida como global.

As culturas que aprenderam a se enxergar de forma desassociada do mundo natural e não honrar as relações com a fauna e a flora adoecem, pois há uma falta de balanceamento e equilíbrio com o curso da vida.

Krenak nos convida a refletir que “quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista”. Ele continua a dizer que “do nosso divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos deixando órfãos” (KRENAK, 2020, p. 50).

Para os indígenas, a natureza é viva e ancestral. Em sua sabedoria, os indígenas nos convidam a enxergar as árvores como nossas irmãs, as montanhas como avós, os rios como avôs, o sol como pai.

Se, por causa da nossa cultura eurocêntrica, temos dificuldade em simbolizar a vida, podemos promover o resgate dos saberes ancestrais indígenas, que possuem um profundo saber da terra, a interação com a fauna e a flora, o conhecimento da medicina das plantas, tudo numa bonita e poética simbiose com o fluxo da vida. É um resgate imagético de pertencimento à grande mãe natureza.

E, para Jung, “os produtos do inconsciente são pura natureza” (2011, OC 10/3, § 34). Jung acreditava que a natureza “não é por si só um guia, pois não existe em função do homem. Mas se quisermos valer-nos dela como tal, poderemos dizer com os antigos (…) se tivermos a natureza por guia, nunca trilharemos caminhos errados.” (2011, OC 10/3, § 34).

Por isso, simbolicamente, a devastação da mata; a destruição dos biomas; o assassinato dos rios; o envenenamento das comidas e do ar ferem a pele da nossa alma.

Numa analogia, a simbologia de uma árvore pode ser entendida como a ligação do eixo ego-self em nossa psique: suas raízes profundas adentram nas camadas da terra, numa correspondente do inconsciente: dos instintos e dos arquétipos. Ao despontar do chão, o caule rompe o ego-concreto, desabrochando para a consciência. Ao crescer e se fortificar, a consciência cresce em sentido ao Self. As folhas, flores e frutos são as ramificações dos saberes, das imagens arquetípicas, da expansão e integração ao Si-mesmo. A árvore é individual, mas troca com o meio: fornece o oxigênio, os alimentos, a sombra. Em sua sabedoria, a árvore assiste silenciosa o desabrochar da vida, aguenta paciente as tempestades e contempla os mistérios da noite. Assim como nós, que nascemos e crescemos em busca do caminho da individuação.

E, para finalizar, gostaria de evocar a imagem da onça Amanaci, que sofreu de graves queimaduras no incêndio do Pantanal em 2020. Para os indígenas, a onça é um espírito poderoso e protetor da floresta. A onça queimada, simbolicamente, nos convida a pensar na dor que irrompe (consciente ou não) na pele da alma brasileira. Com a devastação das florestas, também nos ferimos. Nosso grande espírito foi mutilado e quase foi sacrificado.

O nome Amanaci vem do tupi, é uma deusa indígena brasileira cultuada como “mãe das chuvas”. A onça lutou por sua vida e, mesmo perdendo as garras, conseguiu se recuperar. Mas, devido sua mutilação, não pode retornar para as matas a qual pertence.

Porém, como a vida é soberana, Amanaci gerou um filhote que poderá retornar para a floresta. Numa chuva de esperança, o poderoso espírito retornará para as matas. (Fonte: G1, 2022).[6]

Como disse Victor Hugor “não há nada como o sonho para criar o futuro.”

Que seu símbolo poderoso, Amanaci, possa permear nosso espírito e, com sua chuva, hidratar nossa consciência para que possamos reflorestar e reflorescer.

Daniela Euzebio – Membro Analista em formação pelo IJEP

E.Simone Magaldi – Membro didata do IJEP

Daniela Euzébio – 19/04/202

Referências

Bronze, Giovanna. Área queimada no Pantanal cai 66,8% de 2020 para 2021. Link: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/area-queimada-no-pantanal-cai-668-de-2020-para-2021/. Acesso 10 abr 2022

CAMINHA Jr, Luciano; AMARAL, Fernanda V. Entenda a prática do Shinrin-yoku e seus benefícios para a saúde. Link: http://www.cienciaexplica.com.br/2019/01/10/entenda-a-pratica-do-shinrin-yoku-e-seus-beneficios-para-a-saude/, acesso 10 abr 2022.

COSTA, Anna Gabriela. Desmatamento na Amazônia em 2021 é o maior dos últimos 10 anos. Link: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/desmatamento-na-amazonia-em-2021-e-o-maior-dos-ultimos-10-anos/. Acesso 10 abr 2022

DUARTE, Alisson J. O. Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung. Revista Junguiana, v. 35-1, p. 5-19

G1. Nasce filhote da onça-pintada que simbolizou o drama das queimadas no Pantanal em 2020. Link: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/03/12/nasce-filhote-de-onca-pintada-que-simbolizou-o-drama-das-queimadas-no-pantanal-em-2020.ghtml, acesso 10 abr 2022

JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 10/3).

JUNG, Carl Gustav. Um mito moderno sobre as coisas vistas no céu. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 10/4).

KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2020

WHITE, Mathew P.; ALCOCK, Ian; GRELLIER, James; WHEELER, Benedict W.; HARTING, Terry; WARBER, Sara L.; BONE, Angel; DEPLEDGE, Michael L.; FLEMING, Lora E. Nature – Scientific Reports. Link: https://www.nature.com/articles/s41598-019-44097-3, acesso 10 abr 2022


[1] Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/desmatamento-na-amazonia-em-2021-e-o-maior-dos-ultimos-10-anos/, acesso 10 abril 2022.

[2] Fonte: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/area-queimada-no-pantanal-cai-668-de-2020-para-2021/, acesso 10 abril 2022.

[3] Alisson José Oliveira Duarte, artigo Ecologia da alma: a natureza na obra científica de Carl Gustav Jung.

[4] Fonte: https://www.nature.com/articles/s41598-019-44097-3, acesso 10 abril 2022

[5] Fonte: http://www.cienciaexplica.com.br/2019/01/10/entenda-a-pratica-do-shinrin-yoku-e-seus-beneficios-para-a-saude/, acesso 10 abril 2022

[6] Fonte: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/03/12/nasce-filhote-de-onca-pintada-que-simbolizou-o-drama-das-queimadas-no-pantanal-em-2020.ghtml , acesso 10 abril 2022.

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