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Dia dos mortos, ritos de vida

Dia dos mortos, ritos de vida

Dia dos mortos, ritos de vida

Quem sabe se a vida não é morte, e a morte, vida?

É possível que façamos parte dos mortos.  Platão

Dia dos Mortos! Que data é essa tão antiga e sem sentido, que ao cair no meio da semana nem ao menos se presta à um feriado decente, que possibilite a tão conhecida emenda para que o divertimento pudesse ser garantido e o esquecimento de dia tão mórbido pudesse assim ser assegurado. Uma data como outra qualquer, mas que tem na resistência de muitos de nós a necessidade que continue assim, um feriado, um dia santo, um dia muito especial.

Um dia especial para lembrar os mortos. Data típica da Igreja Católica, o dia dos mortos tem sua origem em ritos pagãos. Muito provavelmente existe desde os celtas, que celebravam a passagem do ano e consideravam que, neste período, as fronteiras entre o mundo dos vivos e mundo dos mortos deixavam de existir e os falecidos voltavam para nos visitar. Essa mesma ideia está presente no Día de los Muertos celebrado no México, importante festa que dura três dias e que foi reconhecida pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade.

Especial para quê? Ou para quem? Para muitos de nós é uma data com um motivo esquecido ou nem mesmo notado. Para outros, dia de dor e saudades. Mas é fato que o dia lembra nossa única certeza na existência: de sermos finitos. Muitas vezes negada e, na modernidade, escondida nos hospitais ou nos consultórios de psicologia, a morte vem aos poucos conquistando um espaço próprio e diferente nas mídias sociais. A internet é hoje um lugar que há espaço para tudo, incluindo o processo de morrer, o compartilhamento do luto, as homenagens póstumas, uma tentativa de sensibilização à dor que há muito tempo tinha dificuldades para ser expressa.

Kubler-Ross, em seu livro A morte e o morrer cita logo de início que o medo da morte em nada mudou na história, o que mudou foi o nosso modo de lidar com ela e, no caso, uma atitude de negação exacerbada levou à um trato menos humanizado da questão. Jung, em Natureza da Psique, defenderá a necessidade de um sentido para viver e, por isso, observará que a psique precisa pensar a morte como uma transição, como algo que faz parte do processo vital. A ideia de imortalidade, arquetipicamente presente no inconsciente, nos proporciona um enraizamento na nossa condição humana, que nos capacita a viver a vida em plenitude. Vivemos praticamente um instante na eternidade, mas estamos ligada à ela por algo que nos faz sentir parte do todo.

O dia de finados está aí para que possamos lembrar de nossa condição de mortais, para honrarmos nossos antepassados, para lamentarmos nossos mortos, para nos tornar mais cientes de que tudo é vaidade nessa passagem rápida, mas preciosa, pela vida. Ao homenagearmos nossos mortos, homenageamos a história, preservamos a memória e recuperamos a importância da vida. Diante da morte, tudo fica menor, o tempo da vida dá uma pausa para pensar no que realmente tem valor. Morte e vida são complementares em sua expressão: ao respeitarmos o morrer, respeitamos a vida, ao temermos a morte, tememos o viver. E, também, no descaso com os mortos, mostramos nossa incapacidade de amar.

Recentemente, do oficio que tenho de ouvir sobre as mortes, soube do enterro de uma mãe, que abandonada em sua velhice pelos filhos, recebeu no enterro um trato similar, isto é, foi colocada em um caixão simples, sem custo, com um velório curto, sem trato algum nos cuidados com o corpo e com a alma, nem com os ritos finais. Diante de tanta vazio, só se fizeram notar as baratas, visitantes frequentes de todo cemitério, em maior número nos locais de maior abandono e que no enterro dessa senhora parece que faziam um plantão para que todos se lembrassem do trato em vida, que naturalmente se repetiu na morte e que anunciava uma frágil e difícil relação com os filhos, que cúmplices desse tratamento, pareciam gozar com uma vingança tardia à essa mulher que agora não poderia mais se defender.

Para os poucos presentes no enterro, a dor era intensificada pelo descaso, que parecia pior que a morte, pois para a trágica realidade do fim não há o que se possa fazer, mas em relação ao drama da vida, esse sim poderia ter sido evitado ou mesmo transformado. Para além da discussão se tal feito era merecido ou não, minha hipótese é que a morte era ainda negada na família em choque, e isto se revela na triste realidade de punir uma mãe por algo que nunca conseguiremos compreender frente à um corpo inerte, sem vida. Mas que parece indicar uma crueldade que só faz sentido se outro souber que está sendo punido, isto é, nossos sobreviventes esquecem que a morta está em tal condição que não mais sofre tamanha humilhação. Não há nada que possa fazer ela mudar de atitude ou mesmo responder à toda essa projeção. Posso continuar ofendendo o morto que ele não irá reagir, nem mesmo irá oferecer resistência a tal comportamento. Quem sente a ofensa é o vivo que chora, é aquele que sabe que o dia de amanhã espera por ele. E que em um próximo ano ele fará parte, se assim for lhe dado a graça, de ser lembrado também junto com outros tantos mortos.

Os mortos não falam e o silêncio apenas oferece o espelho para que possamos nós mesmos nos enxergarmos em nossa mediocridade. Silêncio esse que só as baratas possuem permissão para interromper, andando tão livremente sem se importar com a sombra que se impõe frente ao misteriosos mundo dos mortos, além é claro de evidenciar o complexo mundo dos vivos. Por isso, o dia dos mortos pede que nos lembremos não só de nosso antepassados, que o dia não só é tempo de lamento, mas também é tempo de resgatar a dignidade da vida, saber que nada que nossa mente possa especular consegue passar pelo crivo da morte. É tempo de perdoar e de resgatar a liberdade de ser sem mágoa.

Finados nos lembra de nossa insuficiência e de nossa grandeza, nos lembra que tudo é vaidade, é passageiro. E mais: que a morte é aquela que nos traz a nossa relação com o tempo, pois diante dela sabemos que nada possuímos, nada é nosso, nem mesmo o tempo, um tempo que se torna sagrado por ser único e eterno em sua beleza, de quando a morte não é mais um conceito abstrato, de quando percebemos que tudo é passageiro, como o feriado. Bom dia de finados!

Maria Cristina Mariante Guarnieri, Doutora em Ciências da Religião – PUC/SP; Psicóloga Clínica; Docente no IJEP – Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa; Pesquisadora do Nemes – Núcleo de estudos em mística e santidade CRE/PUC/SP; e-mail: crisguarnieri@uol.com.br

Maria Cristina Mariante Guarnieri 

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