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Diagnóstico: destino ou símbolo?

O número de diagnósticos dispara no mundo, assim como o de doenças catalogadas. Estamos, realmente, mais doentes ou menos curados?

Resumo: O aumento do número de diagnósticos psiquiátricos e o consequente tratamento especializado não deveria resultar em melhores índices de saúde mental no mundo? Os diagnósticos não deveriam servir de caminho para a cura e libertação? Para que têm servido tantos diagnósticos? E ainda, para quem? Neste artigo, a analista em formação Luciana Branco costura aspectos da cosmovisão de Carl Gustav Jung com músicas de Arnaldo Antunes, livro de Emmanuel Carrère e a forma de se pensar doença da medicina ocidental.

“Peste bubônica, câncer, pneumonia
Raiva, rubéola, tuberculose, anemia
Rancor, cisticercose, caxumba, difteria
Encefalite, faringite, gripe, leucemia
O pulso ainda pulsa

Eu tinha doze anos quando, em 1989, os Titãs lançaram esses versos que, como bom símbolo, ganham cada vez mais significado em minha vida.

Se quando menina, ouvia com espanto a brincadeira cantada com doenças (e, ainda, com as doenças misturadas com sentimentos), agora na meia idade e alimentada pela cosmovisão de Carl Gustav Jung, “O pulso” me maravilha por escutá-la como um convite à vida.

Com menos poesia, mas com provável paixão semelhante, pouco mais de um século antes da canção, em 1893, o médico e estatístico francês Jacques Bertillon, também listou doenças e, com a lista, criou a “Classificação Internacional das Causas de Morte”, que continha aproximadamente 161 categorias. Mais tarde, em 1948, tal classificação tornou-se responsabilidade da Organização Mundial da Saúde e foi rebatizada em CID – Classificação Internacional de Doenças.

Tal lista é atualizada regularmente. A mais recente é a CID-11, lançada oficialmente em 2019, e que contém 55 mil códigos únicos, abrangendo condições médicas, doenças, síndromes, lesões, causas externas, e outros aspectos relacionados à saúde, embora o nome da classificação indique: são listadas como doenças.

Cada uma das 10 revisões da CID tornou a classificação mais abrangente e detalhada, acompanhando os avanços do conhecimento da medicina ocidental.

O desenvolvimento da ciência amplia a diferenciação das doenças e categoriza as condições humanas, com o nobre objetivo de entender globalmente o que faz as pessoas adoecerem e morrerem, a fim de evitar sofrimento e salvar vidas. “A CID é um produto do qual a OMS realmente se orgulha”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da instituição em canal oficial.

Consciência

A visão integrativa junguiana, obviamente, valoriza o desenvolvimento da consciência e os frutos deste desenvolvimento, como a ciência e os feitos civilizatórios. Não descarta, porém, o mal que este bem pode causar, quando experimentado de forma unilateralizada, ou seja, sem as nuances da dúvida.

“A natureza determinada e dirigida da consciência é uma aquisição extremamente importante que custou à humanidade os mais pesados sacrifícios, mas que, por seu lado, prestou o mais alto serviço à humanidade. Sem ela a ciência, a técnica e a civilização seriam simplesmente impossíveis, porque todas elas pressupõem persistência, regularidade e intencionalidade fidedignas do processo psíquico.”

JUNG, OC 8/2 §135

O pensador, no entanto, ao longo de toda Obra Completa, não hesita em convidar o leitor à reflexão sobre como a consciência, vivida de forma unilateralizada – quando aspectos simbólicos e intuitivos da experiência humana são desvalorizados – pode acarretar em cisão e consequente adoecimento psíquico.

É ao crescimento da consciência que devemos a existência dos problemas; eles são o presente de grego da civilização.” (OC 8/2 §750)

Em pouco mais de um século, a visão materialista da medicina ocidental ampliou a capacidade de tratamento das doenças. Isso é fato e merece ser celebrado. Porém, simultaneamente, como face da mesma moeda, o ser humano passou a ser olhado de forma fragmentada, como se as partes não compusessem o todo, mas fossem engrenagens mecânicas que precisam funcionar separadamente. Os potenciais “defeitos” em cada estrutura ganharam, ao longo das últimas décadas de forma acelerada, nomes científicos e drogas aprovadas cientificamente que podem restaurá-los para que voltem (os órgãos e as pessoas) a operar o mais rapidamente possível, na melhor potência produtiva em um sistema que não pode parar.

Com isso, pelo olhar junguiano, perde-se a possibilidade de simbolizar a doença. De dialogar com os sintomas que são expressões do inconsciente desejoso de se manifestar. Desta forma, exclusivamente materialista, a intrínseca condição humana de altos e baixos é patologizada, criando-se a ideia de que existe uma forma única e “correta” de se existir saudavelmente. E, ainda, que a única vida que vale ser vivida é a que está de acordo com essas convenções.

UM CID pra chamar de meu

No mesmo ano em que a neurótica “O Pulso” era lançada no Brasil, o termo “neurose” foi abolido do CID-10.

A justificativa para tal fato foi a ambiguidade conceitual, já que o termo “neurose” era considerado vago e abrangente, referindo-se a uma ampla gama de transtornos psicológicos e sem critérios diagnósticos claros.

O desenvolvimento da psiquiatria contemporânea também é fator determinante da suspensão do termo e os transtornos anteriormente agrupados em “neurose” foram redistribuídos em categorias mais específicas como, Transtornos de ansiedade, Transtorno obsessivo-compulsivo, Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), Fobias específicas, Transtorno somatoforme, entre outros. Todos sintomas tratáveis, por essa mesma perspectiva, de forma medicamentosa.

Para Jung, a causa da neurose é a discrepância entre a atitude consciente e a tendência inconsciente.

Pouco mais de 50 anos antes da suspensão do termo “neurose” no CID, na conferência Princípios básicos da prática da psicoterapia, realizada na Associação de Medicina de Zurique, em 1935 e transcrita em A prática da psicoterapia (OC 16/1), Jung afirma:

“As neuroses ainda são consideradas, erroneamente, como doenças sem gravidade, principalmente por não serem tangíveis nem corporais. As neuroses não matam – como se numa doença física sempre existisse a ameaça de um fim letal. No entanto, o que se esquece por completo – e nisso diferem da doença física – é que elas podem ser extremamente deletérias em suas consequências psíquicas e sociais, muitas vezes piores que as psicoses que, como tais, geralmente levam o doente ao isolamento social, tornando-o, portanto, inofensivo.” (OC 16/1§ 37) 

E o psiquiatra segue:

“Infelizmente, as Faculdades de Medicina têm dado pouca importância ao fato de ser grande o número das neuroses existentes e enorme a incidência das implicações psíquicas em doenças orgânicas, que são justamente a causa da sobrecarga do médico que clínica, ainda que não o perceba. O currículo das faculdades não o prepara para enfrentar esse seríssimo problema, e muitas vezes o médico nem chega a ter a menor oportunidade de receber alguma orientação nessa área que, na prática, é tão importante.” (OC 16/1 § 38)

Tempo e cura

É fato que permanecer diante de sintomas sem um diagnóstico que justifique o mal estar, seja ele físico ou psíquico, é angustiante. Então, na pressa por respostas, a tristeza, que por vezes demora a passar, é chamada de depressão. A falta de interesse num cotidiano desinteressante, batizada de angústia. O estresse em longas jornadas de trabalho sem significado, seguidas por horas de vida gastas no trânsito das grandes cidades vira burnout. A falta de tesão dentro de um relacionamento tóxico é queda hormonal. O vazio. A inveja. A raiva. A solidão.

A não-medicalização precoce exige mudança de comportamento e custa tempo do indivíduo, o mesmo tempo dedicado exaustivamente a manter o sistema em funcionamento. A tal da jornada 6×1.

Se enxergados como símbolos, os sintomas podem, antes do silêncio ocasionado pela medicalização, servir de oráculo para uma vida que pede para ser modificada rumo à realização do arquétipo do si-mesmo. Sem diagnósticos que determinem um destino único, inevitável e doloroso (bipolar, maníaco-depressivo, borderline, TDAH…), o ser humano é convidado à auto responsabilidade de agir em prol da própria integração dos sintomas e compreensão dos significados desses símbolos.

No espetacular livro “Ioga”, de Emmanuel Carrère, a personagem Erica o questiona sobre o que fazer com uma sombra insistente que ela enxerga a sua esquerda, ligeiramente nas costas: “A Sombra, Emmanuel… O que eu faço com ela? Você não consegue imaginar como é terrível, essa Sombra que está o tempo todo aqui e que eu não vejo. É tão terrível…”.

E o autor, autobiográfico, segue:

“Escuto Erica, entendo muito bem o que ela está dizendo, terrivelmente bem. A minha Sombra é uma linda marina de Raoul Dufy (NA: referindo-se a um quadro que via no hospital psiquiátrico onde esteve internado), e ela é tão terrível quanto a de Erica. Todo mundo deve ter a sua, ela apenas fica um pouco mais sensatamente atrás das costas da maioria das pessoas, enquanto que a outros, como Erica e eu, ela ameaça mais de perto: ‘A família lamentável e magnífica dos neuróticos’, dizia Proust, e ele dizia também que nós somos o sal da terra, nós, os neuróticos, os melancólicos, os bipolares, nós que passamos nossas vidas nos debatendo contra esses ‘cães negros’ de que fala um outro grande deprimido, Winston Churchill.” (Ioga, p. 204)

Se ousássemos viver sem diagnósticos precoces, mais distantes de classificações assépticas, sem tratar os sintomas como batatas quentes das quais precisamos urgentemente nos livrar, se fizéssemos dos sintomas símbolos com possibilidades de significados distintos, talvez destinos com mais inteireza pudessem ser construídos. Talvez a cura, como a integração de opostos complementares, pudesse ser vislumbrada.

Ainda na mesma conferência Princípios básicos da prática da psicoterapia, Jung afirma que cura significa transformação.

“…o médico deve deixar aberto o caminho individual da cura, e neste caso o processo terapêutico não acarretará nenhuma transformação da personalidade, mas será um processo, chamado de individuação. Isto significa que o paciente se torna aquilo que de fato ele é. Na pior das hipóteses poderá chegar a aceitar a sua neurose, porque entendeu o sentido da sua doença. Vários doentes me confessaram que aprenderam a ver com gratidão os seus sintomas neuróticos, pois estes, como um barômetro, sempre lhes mostraram quando e onde se tinham desviado do seu caminho individual, ou quando e onde coisas importantes tinham ficado inconscientes.” (OC 16/1 § 11)

Quando tratado como apenas um caso entre bilhões a ser catalogado, o indivíduo perde a oportunidade de existir singularmente, realizando e dando significado único à própria existência.

Afinal, embora encantador, maravilhoso, miraculoso, prazeroso, perfeito, quando literalizado, “O corpo ainda é pouco”, sugere Arnaldo Antunes que em outra canção, “Socorro”, dá a letra para tempos de hiper patologização:

“Socorro
Alguma alma mesmo que penada
Me empreste suas penas
Já não sinto amor, nem dor
Já não sinto nada

Socorro, alguém me dê um coração
Que esse já não bate nem apanha
Por favor!
Uma emoção pequena, qualquer coisa!

Qualquer coisa que se sinta
Tem tantos sentimentos
Deve ter algum que sirva”

Luciana Branco – Analista em Formação IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP

Referências:

ANTUNES, Arnaldo. O Pulso. São Paulo: Warner Music Brasil,1989.

_______O Pulso. São Paulo: Warner Music Brasil,1994.

JUNG, C.G. A Natureza da psique. 10ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.

______ A prática da psicoterapia. 16ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.

CARREÈRE, Emmanuel. Ioga. São Paulo: Editora Alfaguara, 2023.

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