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“É por isso que, quando a vida não tem mais sentido, as pessoas morrem até mesmo de um resfriado.”

A frase acima é de Marie Louise Von-Franz em seu pequeno grande livro A busca do sentido. Ela me tomou de assalto e ficou martelando em minha cabeça logo depois que a li, apontando para algo que eu não estava enxergando. Como acontece muitas vezes, a solução está em compartilhar aquilo que pensamos, sentimos e refletimos. É na relação e na reação daqueles que nos cercam que encontramos a possibilidade de ampliação das questões que nos incomodam individualmente. A conexão só apareceu quando contei a fala de Von Franz para minha esposa que comentou: “exatamente o que está acontecendo hoje”. Ela estava sendo irônica, lembrando absurdos que foram ditos por líderes políticos sobre a pandemia. Antes de continuar minhas reflexões sobre o assunto, vamos dar uma olhada numa parte um pouco maior do texto onde a frase está inserida:

“Temos alguma coisa a ser feita e é isso que nos preserva a vida. É por isso que, quando a vida não tem mais sentido, as pessoas morrem até mesmo de um resfriado. De repente, elas morrem. A tarefa está cumprida e elas não podem mais continuar, ficam bloqueadas.” (VON-FRANZ, 2018, pág. 82)

            De acordo com Jung o movimento que nos leva a buscar sentido, significado e propósito em nossas vidas é arquetípico, ou seja, comum a todos os seres humanos como expressão teleológica e natural da psique. Negar os chamados para iniciar essa jornada que surgem através de sonhos, sincronicidades e expressões criativas leva ao aparecimento de sintomas. Estes, por sua vez, também podem ser olhados de maneira simbólica direcionando o individuo para o autoconhecimento ou ignorados tornando a pessoa cada vez mais doente. Por outro lado, dar atenção às mensagens que o self envia para que encontremos nosso caminho de autorrealização nos leva para o que Jung chamou de “processo de individuação”. É comum que esse processo seja resumido na ideia de que bastaria uma conversa harmoniosa entre a consciência e o inconsciente para que ele ocorresse. De certa forma, é isso mesmo o que Jung diz, porém, os desdobramentos dessa afirmação são muitos e complexos e não podemos permitir que as discussões se encerrem numa interpretação racional reduzida do fenômeno. Na verdade, a afirmação de Jung abre espaço para infinitas reflexões sobre os diferentes aspectos antinômicos da experiência da vida humana que precisam ser integrados se quisermos encontrar e continuar na via que leva ao mito do significado individual.

            Um desses pares de opostos diz respeito ao fato do ser humano constituir um animal social enquanto busca a sua individualidade. Segundo Jung, quanto mais a pessoa humana torna-se ela mesma, ou seja, quanto mais próximo da consciência, mais ela se afasta da coletividade. Porém, o contrário também é verdade e quanto mais inserido socialmente, quanto mais perto do inconsciente, mais longe o indivíduo estará do caminho para o si mesmo. Para que o processo de individuação ocorra é preciso encontrar uma maneira de trabalhar nessas duas dimensões simultaneamente. Basicamente o problema que se apresenta aqui é: não é possível manter-se no caminho da individuação se a pessoa não integrar no processo ações que colaborem com a coletividade. Nas palavras de Jung:

“Individuação e coletividade são um par de opostos, dois destinos divergentes. Encontram-se numa relação mútua de culpa. O indivíduo é obrigado, por exigência da coletividade, a comprar sua individuação através de uma obra equivalente em favor da sociedade. Enquanto isso for possível, também é possível a individuação” (JUNG, 18/2, §1099)

            Na prática, isso significa que a coletividade precisa aceitar aquilo que eu ofereço em troca da minha liberdade. Se essa oferenda não serve como expiação da culpa que surge quando acredito que encontrei minha individualidade, não consigo e, na verdade, não posso continuar em tal caminho. É sempre bom lembrar que toda forma de explicação consciente desse processo pertence ao ego e este não consegue abarcar a totalidade, nem poderia por suas dimensões ridículas perante o todo. Se o caminho que traçamos está alinhado com as dimensões divinas e arquetípicas do ser, se consciente e inconsciente encontraram a forma de trabalharem em oposição e colaboração aberta ao mesmo tempo, nessa situação, de maneira imperativa, iremos devolver o que é necessário para a coletividade. A escolha que fazemos aqui diz respeito à entrega que o ego pode fazer de si mesmo para a vontade do self e, uma vez que isso é feito, não temos mais controle sobre o que irá surgir. Essa nova atitude irá obrigatoriamente englobar a devolução necessária para que o processo continue. Porém, o risco do ego perder-se do caminho existe sempre, ele pode facilmente desviar-se influenciado por forças ainda não integradas do inconsciente. Por isso o mergulho nas profundezas de si mesmo e a escolha de não se ter escolha precisa ser refeita repetidamente, inúmeras e incontáveis vezes durante nossa existência terrena.

            Nesse sentido, acredito que fica claro que aquilo que surge da união dos opostos complementares, a expressão criativa da alma que se dá pelo que Jung denominou a “Função Transcendente” da psique não engloba somente o indivíduo. Como ele mesmo diz, o objetivo final, teleológico da psique é que a pessoa caminhe de volta para a totalidade, para aquilo que o pensamento chinês chama de Tao. Não podemos pensar em totalidade se não incluirmos os outros,  não somente a espécie humana, mas todo o planeta como parte disso.

“Da união emergem novas situações ou estados de consciência. Designei por isso a união dos opostos pelo termo ‘função transcendente’. A meta de uma psicologia que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade em direção à totalidade.” (JUNG, 9/1, §524)

            Logo no início da pandemia, quando surgiu o COVID-19, pudemos testemunhar líderes políticos (não só do nosso país) tratando a doença como uma simples “gripezinha” numa atitude egoísta que não levava em consideração como a doença iria afetar milhões de pessoas. Poderíamos ampliar muitas questões aqui, como por exemplo o negacionismo, a irresponsabilidade, a sociopatia, entre muitos outros comportamentos patológicos que vieram a tona durante todo esse tempo. Porém, levando em conta a frase de Von Franz, é importante nos perguntar como é possível encontrar sentido e significado em nossas próprias vidas quando ainda negamos nossas necessidades coletivas e sociais? Mais do que isso, quando negamos ao outro a possibilidade de uma existência digna por força da projeção dos nossos complexos e sombras não aceitos como partes constituintes do nosso ser, negamos também a nós mesmos qualquer possibilidade de integridade. Jung ensinou que é responsabilidade social encarar a própria sombra. Quando não o fazemos apenas a mantemos projetada naquele que escolhemos como representante do mal recusado na constituição do nosso próprio ser. Portanto, enquanto buscamos a individualidade, temos que levar em consideração nossa atuação no mundo e o quanto fazemos para que nosso entorno também seja atingido por mudanças e ampliações de consciência. Do contrário, a liberdade relativa que conquistamos nos é arrancada, negada pela própria coletividade por não darmos a ela a devida importância. Como disse James Hillman:

“A necessidade nos faz humanos; se não precisássemos uns dos outros, se não pudéssemos preencher e satisfazer nossas carências, não haveria sociedade humana. Embora eu não consiga responder aos meus próprios desejos, sou capaz de responder aos seus. Embora eu não consiga me compreender, posso auxiliá-lo a compreender-se, e você pode fazer o mesmo comigo. Essa reciprocidade torna possível usufruir e doar-se mutuamente no amor.” (HILLMAN, 1984, pág. 14)

            Condenando o outro por suas atitudes e comportamentos, condeno a mim mesmo pois não percebo o quanto aquilo faz parte de mim. Isso não quer dizer que devemos aceitar de maneira passiva o que nos é imposto violentamente pelos outros. Na verdade, entendendo e relativizando a história das pessoas podemos lutar contra a injustiça de uma maneira menos reativa, com maior grau de liberdade de escolha e poder argumentativo. Von Franz estava certa. Num momento histórico em que as pessoas têm sua existência negada nos âmbitos econômicos, educacionais, laborais, familiares, amorosos e religiosos, como esperar que sobrevivam a uma gripe? Ao mesmo tempo, de acordo com os vícios do neoliberalismo, fica muito fácil projetar a responsabilidade “lute para encontrar o sentido da sua vida” em cada indivíduo. Se agimos dessa maneira estamos simplesmente repetindo o padrão que a grande maioria da sociedade contemporânea segue: “cada um que resolva o seu”. E assim continuamos presos na dinâmica do patriarcado que se nega a enxergar a existência da alteridade.

            Enquanto permanecermos egoístas e idiotas, acreditando que só precisamos cuidar do nosso próprio bem estar, do tamanho da nossa conta bancária, buscando compulsivamente por corpos idealizados em imagens publicadas nas redes sociais e olhando somente para os nossos umbigos, nunca encontraremos verdadeiramente sentido, significado e propósito em nossas existências. Faz-se necessário aprender, desenvolver e exercer a cosmovisão, de uma maneira que ela nos leve a uma maior compreensão no nosso papel como pessoas que buscam suas necessidades individuais percebendo-se sempre parte do todo. A vida é paradoxal e somente através da busca da integração dos opostos constituintes do nosso ser será possível encontrar o caminho para o processo de individuação.

            Essa visão ampliada não precisa surgir de uma teoria específica. Ela é presente em muitos sistemas de pensamento diferentes, sob os mais diversos nomes. Como a chamamos é o menos importante perante as atitudes que devemos ter frente a nós mesmo e aos outros. Esse caminho que alinha a moral com a ética é descrito por C. S. Lewis da seguinte maneira:

“Trata-se da realidade que vai além de todas as situações, o abismo que havia antes do próprio Criador. Trata-se da Natureza, do Caminho, da Estrada, da Via. Trata-se do Caminho pelo qual o universo caminha, do qual emergem coisas de forma eterna, silenciosa e tranquila para o espaço e o tempo. Trata-se também da Via que todo homem deve trilhar, imitando o progresso cósmico e supercósmico, conformando todas as atividades àquele grande exemplar. (…) Passarei a me referir a essa concepção, em todas as suas formas – seja a platônica, aristotélica, estoica, cristã ou oriental em igual medida – , breve e simplesmente como o “Tao”. (LEWIS, A abolição do homem, pág. 24)

            Existe uma voz interna em todo ser humano que aponta o caminho que deveríamos seguir para encontrar harmonia e realização. Quando ouvimos o que essa voz tem a dizer e conversamos com ela, duvidando e refletindo sobre nossas atitudes, criamos possibilidades para desenvolvimento. Dessa conversa surgirão os caminhos que podem dar sentido e significado, não somente à nossa vida individual, mas à vida coletiva.

“Só poderemos falar verdadeiramente de cosmovisão quando alguém formular sua atitude de maneira conceitual ou concreta e verificar claramente por qual motivo e para que fim vive e age dessa ou daquela maneira.” (JUNG, 8/2, p. 694)

(Fonte da imagem: https://thebiomedicalscientist.net/science/big-story-tales-plague)

Referências

HILMMAN, James. Paranoia. Uma busca interior em psicologia e religião. São Paulo: Edições Paulinas, 1984

JUNG, Carl Gustav. A Vida Simbólica. Vol. 18/2. 4ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2012

________. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Vol. 9/1 11ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2014

________. A Natureza da Psique. 10ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2013

VON FRANZ, Marie-Louise. Em busca do sentido: entrevistas radiofônicas. São Paulo: Paulus, 2018

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