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Educar crianças: um desafio que envolve diferentes olhares

Pais, professores, psicólogos e tantos outros profissionais, desafiados a serem competentes, envolvem-se na mesma questão: como educar? Não existe uma receita pronta que possa gerar resultados eficientes em todas as realidades. O ser humano é complexo e na perspectiva junguiana, somos seres humanos únicos, integrais e compreendidos pelas dimensões física, emocional, mental, espiritual e social. Em outras palavras, o que funciona bem com um indivíduo, pode não ter eficácia com outro e também envolve outra questão importante, a de educar o educador. Segundo Jung, “todo nosso problema educacional tem orientação falha: vê apenas a criança que deve ser educada, e deixa de considerar a carência de educação no educador que educa” (2013, p. 180). Com isso, Jung nos deixou a possibilidade de refletirmos sobre o adulto que traz dentro de si uma criança oculta, que precisa de cuidado permanente. A família e a escola podem contribuir para a formação emocional dos indivíduos!

Precisamos de espaços que educam e ambientes acolhedores que incentivem o desenvolvimento de todas as dimensões, que permitam a promoção do autoconhecimento, da escuta ativa, do incentivo ao espírito de descoberta, de escolhas responsáveis, de cidadania, de consciência ambiental e social, entre outros. E para ser protagonista, a criança precisa ser valorizada e incentivada a expressar pensamentos, sentimentos e necessidades. Assim sendo, poderá participar dos diferentes contextos de forma ativa, e não apenas seguir regras prontas. O grande dilema é como fazer para que isso aconteça.

Desde cedo, participei de estudos e vivências, que possibilitaram maior compreensão dos aspectos relacionados ao educar crianças. Há muitos anos atuo na Educação Infantil e como professora, tendo exercido diferentes funções na área da Educação, percebi ao longo dos anos as mudanças significativas que ocorreram na sociedade, resultando em mudanças de padrões, comportamentos e atitudes, nas famílias e nas escolas, primeiras classes sociais que a criança faz parte. Da mesma forma, participei ativamente da educação dos meus filhos e aprofundei meus estudos no campo da Psicologia, caminhada longa, com acertos e erros, que me permitem fazer algumas reflexões.   

Neste sentido, percebo que um dos problemas na educação das crianças gira em torno de dois pólos opostos: ausência ou excesso de proteção, que na psicologia analítica junguiana, podemos denominar de processo de enantiodromia. Para tanto, é necessário buscar saídas criativas e estabelecer a harmonia entre os dois pólos, pois a ausência pode gerar a sensação de abandono. Em contrapartida, excesso de proteção pode gerar insegurança. Duas emoções que podem gerar conflitos internos e quando mobilizadas e vivenciadas com intensidade, resultam em doenças nas diferentes dimensões, sendo muito comum serem diagnosticadas e medicadas como TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), o TOD (Transtorno Opositivo Desafiador) e outros quadros descritos no DSM V.

Os remédios estão cada vez mais presentes na vida das crianças, algumas vezes necessários, mas por outro lado, aparecem no contexto como forma de amenizar sintomas, que muitas vezes se confundem com a ausência de limites e de compensações.  No consultório, é comum ouvir as queixas de pais e lidar com as demandas que envolvem o medo de errar e não saber lidar com as diferentes situações na educação dos filhos. E a pergunta clássica que aparece é: “onde foi que errei?” Culpas, medos, dificuldades…

Vindo ao encontro e para ampliar, podemos citar Jung, que em 1931, fez comentários sobre as consequências patogênicas da vida não vivida dos pais sobre seus filhos: “Via de regra, o fator que atua psiquicamente de um modo mais intenso sobre a criança é a vida que os pais não viveram. Essa afirmação poderia parecer algo sumária e superficial, sem a seguinte restrição: esta parte da vida a que nos referimos seria aquela que os pais poderiam ter vivido” (2015, p.121). Percebe-se que no dia a dia muitos pais são permissivos, algumas vezes em excesso, por não quererem que os filhos passem pelas mesmas situações e dificuldades que viveram na infância e também para que eles tenham melhores oportunidades de realizarem seus sonhos.  As intenções são as melhores possíveis, porém nem sempre assertivas, pois como já mencionei, é o excesso e a falta que podem causar problemas.

Na psicologia, muitos autores descrevem as etapas que envolvem o desenvolvimento do ser humano.  Jung considerou isso uma tarefa por demais de exigente, que envolve a vida psíquica desde o berço até a sepultura, razão pela qual preferiu se ater apenas em certos problemas. Tal complexidade é geradora de conflitos, como podemos perceber em sua fala: “Queremos que nossa vida seja simples, segura e tranquila, e por isto os problemas são tabus. Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem entretanto nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento. Assim, a negação artificial dos problemas não gera a convicção; pelo contrário, para obtermos a certeza e claridade, precisamos de uma consciência mais ampla e superior… Sem consciência, não existem problemas” (2013, p. 343 – 345). A partir da afirmação de Jung, podemos concluir que um problema é uma oportunidade de dar um novo sentido e significado para os conflitos.

Por um lado, temos consciência que a criança precisa vivenciar limites. Em contrapartida, contribuir para formar limites é um dilema. Envolve dizer sim e não. E qual é a medida?  Envolve também o cansaço, o medo de errar, o medo de perder o amor da criança e formas de compensar a ausência. No consultório, deparamo-nos com exemplos típicos de queixas que envolvem cansaço: “Passo o dia fora trabalhando, quando chego em casa estou cansado, não tenho mais paciência de lidar com meu filho…” De forma similar, o medo de perder o amor do filho aparece no contexto: “Meu filho fica sem a minha presença grande parte do dia… Vou brigar com ele no pouco tempo em que em que estamos juntos?” Muito comuns também são os casos de filhos que dormem na mesma cama dos pais desde bebês. Apesar de controvérsias sobre este aspecto, é necessário lembrar que o casal existiu antes do filho e que um espaço seguro para o filho descansar irá contribuir para o desenvolvimento da sua autonomia.

Conflitos internos que se transformam em práticas permissivas, podem resultar em indivíduos sem limites, com dificuldades de interagirem com os demais. Neste sentido, dizer não é tão importante quanto dizer sim, nas ocasiões e na medida certa. E uma regra básica é priorizar qualidade de convivência. Estar inteiro com o filho em pouco tempo de convivência é mais precioso que estar com ele dia inteiro e não lhe dar a devida atenção. Vindo ao encontro, trago uma mensagem postada em rede social eletrônica sobre a modernidade, que me despertou uma reflexão e em resumo dizia: “Pagamos caro para os outros cuidarem dos nossos filhos e cada vez mais passeamos com nossos cachorros”. Não se trata de crítica aos cuidados com os animais, que também merecem   nossa atenção, carinho e respeito. Trata-se de refletirmos sobre a terceirização dos cuidados para quem nos damos a vida ou escolhemos educar, talvez pela insegurança, falta de paciência e medo de errar.  

Pertencer à uma família, envolve práticas que compreendem direitos e deveres. Muitas vezes, privamos nossos filhos de uma participação ativa e dinâmica desde cedo, com pequenos afazeres domésticos, graduados de acordo com a idade, que fazem parte do crescimento e envolvem o despertar do sentimento de pertencimento e de responsabilidade. É importante estabelecer combinados e fazer a criança compreender “para que” precisam ser cumpridos e lembrar que ela aprende mais com exemplos do que com palavras. São práticas que se aprendem na família e que se ampliam na escola. A escola, por sua vez, contribui para expandir o mundo social da criança, promovendo o conhecimento e o desenvolvimento de habilidades. Neste contexto, algumas vezes aparecem conflitos na resolução de problemas: pais culpam a escola e a escola culpa os pais. O que fazer? Novamente estamos diante de dois pólos opostos. A melhor opção é a família e a escola falarem a mesma linguagem. Tirar a autoridade de uma das instituições é possibilidade de gerar insegurança na criança.

Tanto no meio familiar, quanto no ambiente da escola, é necessário desenvolver o ser humano para lidar com as frustrações, que fazem parte da vida e são importantes para a saúde psíquica. Ajudar o indivíduo a lidar com pequenas frustrações o prepara para lidar com as maiores que surgirão pela vida afora. Hoje, cada vez mais estamos inseridos num mundo individualista, com estilos predominantes e quando ocorrem cisões, os sintomas aparecem em forma de doenças e são medicadas. Muitas vezes, não percebemos o sintoma como oportunidade de ressignificar padrões que nos adoecem. Da mesma forma, o saber esperar, tão importante na estruturação do ser humano, perde-se no imediatismo estimulado pela nossa sociedade. Pessoas e coisas são cada vez mais descartáveis!

Outra forma de contribuir significativamente para a formação integral da criança é proporcionar para ela vivências de comunicação assertiva. O diálogo, que é a forma ideal de resolução de muitos conflitos, envolve vários aspectos. Para que ele ocorra com assertividade, é necessário que se escolha um ambiente adequado, que se reconheça e valorize primeiro os aspectos positivos da criança, que se efetive olhando em seus olhos, com uso de voz moderada, com o objetivo de encontrar saídas criativas para os padrões extremos. Isso é respeito e amor!

Deparamo-nos com as mudanças de estilos e de valores, cada vez mais acelerados, incentivados pela mídia e diferentes meios virtuais.  Vivências reais são substituídas por relações virtuais. É comum observarmos crianças de todas as idades manuseando celulares. É a forma que alguns pais encontram para ocuparem seus filhos, por acreditarem que mentes ocupadas e fascinadas com aparelhos eletrônicos não dão trabalho. Dar um celular é mais fácil que proporcionar a vivência de limites!  Como consequência, crianças com mentes cada vez mais aceleradas, com dificuldade de centrar atenção no cotidiano e em relacionamentos reais. Vale lembrar que no mundo da tecnologia, utilizam-se todas as técnicas avançadas para despertar e prender a atenção do indivíduo, mas não podemos esquecer que a medida do seu uso somos nós que escolhemos.

A tecnologia surgiu e tomou uma dimensão grande em nossas vidas. Tem seu lado importante, útil e necessário, porém não pode tomar todo o espaço das relações reais, principalmente dos valores que são passados no espaço sagrado da família, independente da forma que esse espaço é constituído. As consequências refletem nas escolas. Como estas mesmas crianças vão ter estímulos para as aulas expositivas? É necessário lembrar que grande parte das escolas não está equipada com aparelhos de tecnologia atualizados e muitos professores não têm a formação específica para trabalhar com o mundo digital. Não podemos entrar num processo de enantiodromia, ficarmos presos no pólo oposto e afirmar que a tecnologia é a grande culpada de não darmos conta da educação das crianças. A saída criativa é o limite para encontrar a harmonia: nem ausência, nem excesso. E além do mais, dar orientações para seu uso adequado.

Ao caminharmos na história e entrando um pouco mais no contexto escolar, verificamos que os Direitos da Criança foram assegurados na Constituição de 1988, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Marco Legal 13.257, de 2016, específico para crianças de 0-6 anos, assegurando o cuidado integral, um olhar holístico e coletivo, sugerindo o envolvimento de diferentes abordagens e áreas. De forma similar, em 1998, surgiu o Referencial Curricular Nacional, com um novo olhar para a educação: guia de reflexão de cunho educacional sobre objetivos, conteúdos e orientações didáticas para os profissionais da área, respeitando estilos pedagógicos e a diversidade cultural brasileira. Foi um marco que produziu a possibilidade de cada Estado e o Distrito Federal organizarem seus currículos, favorecendo o desenvolvimento das capacidades física, afetiva, cognitiva, ética, estética, de relação interpessoal e inserção social, com orientações para entender a instituição familiar com diferentes modelos em mutação, sujeita a determinações culturais e históricas.

Na mesma época, surgiu o Relatório da Unesco (1999), em que Jacques Debors contribuiu significamente com os Quatro Pilares da Educação, que ao meu ver, envolvem a base da estruturação da educação das crianças: aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a ser e aprender a conviver. Aprender a aprender, para se beneficiar das oportunidades oferecidas; aprender a fazer para estar apto a enfrentar situações de mudança e agir sobre o meio; aprender a ser para desenvolver a personalidade e responsabilidade pessoal eaprender a viver junto para desenvolver a compreensão do outro e a percepção da interdependência. Ao mesmo tempo, podemos estabelecer uma conexão simbólica entre os quatro pilares e as funções psicológicas de Jung: pensamento, sensação, intuição e sentimento.  

Hoje, as propostas curriculares estão centradas nos eixos cuidar, educar, brincar e interagir, que se complementam, permeados pelos eixos transversais diversidade, cidadania, sustentabilidade e educação em direitos humanos. São propostas que incluem a singularidade e a diversidade, que ao mesmo tempo envolvem um conjunto de olhares. Para tanto, não existem receitas prontas, mas podemos ampliar a sua compreensão citando a metáfora da montagem de um quebra-cabeça, atividade que as crianças muito apreciam, que para formar o todo é necessário utilizar e encaixar todas as peças. Cada peça representa simbolicamente o olhar das diferentes áreas, que ao serem unidas, alcançam de modo eficaz o resultado almejado.

Para finalizar, vale lembrar que as necessidades emocionais básicas do ser humano, desde que é gerado e até a sua morte, são o amor e o reconhecimento, que podem ser expressados pelo acolhimento, pela escuta, por olhares e ações diferenciadas e de diversas áreas para o alcance de uma educação integral da criança, consolidada na educação emocional. O limite harmonioso se estabelece na expressão do amor e do reconhecimento!

            Claci Maria Strieder, Pedagoga, Psicóloga, Especialista em Psicossomática e Psicologia Junguiana, Analista em formação pelo Ijep.

           Brasília/DF –  Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com

Leituras de apoio:

DELORS, J. (org.). Educação um tesouro a descobrir – Relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI. Editora Cortez, 7ª edição, 2012.

DISTRITO FEDERAL. Currículo em Movimento da Educação Básica: Educação Infantil.  2ª Edição. Brasília: SEEDF, 2018.

JUNG, C. G. A natureza da psique. Petrópolis. Vozes, 2013.

__________O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis. Vozes, 2013.

__________O livro vermelho – Liber Novus: edição sem ilustrações. 2ª                              Reimpressão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil/Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental – Brasília: MEC/SEF, 1998.

Claci Maria Strieder 

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