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Entre a dádiva e o titanismo: a marca da contemporaneidade

prometeu dádiva e titanismo

Autores como Max Weber (2004), Walter Benjamin (2013), Waldemar Magaldi (2009) e Muniz Sodré (2015) já discorreram brilhantemente sobre a mercantilização do mundo. A partir da história, Eric Hobsbawn (1995) afirma que a ideia de “Globalização” é a priori um movimento titânico que tem a intenção de expandir seu domínio e concentrar a renda. A Era da Informação, pautada pela comunicação eletrônica e sua velocidade, vascularizou-se em todas as culturas injetando o espírito do capitalismo. Neste momento, de acordo com E. Morin (1997), a cultura autêntica torna-se de massa, os deuses são esquecidos e as celebridades enaltecidas, os ritos e rituais se enfraquecem para dar lugar às receitas de bolos, etc. Tudo se torna mercadoria.

Pensando na Psicologia Analítica, tornar-se mercadoria nada mais é do que um processo final do reforço do meio externo e uma expectativa de que o que vem de fora supra as necessidades da alma. “O meio não tem condições de fornecer de maneira imediata aquilo que o homem só pode adquirir através do esforço e do sofrimento. Ao contrário, a sugestão do meio reforça a tendência perigosa de se esperar que a transformação venha de fora.” (JUNG, 2013a, 10/1 p. 537)

Qualquer resignação ao que vem de fora, embalado e pronto para consumo deveria ser questionado. Jung (2013) sempre demonstrou como os deuses tornaram-se doenças – reducionismos da real potencialidade da essência arquetípica; ou então, tornaram-se movimentos unilaterais, isto é, os “ismos” da contemporaneidade. 

As velhas religiões, com seus símbolos sublimes e ridículos, carregados de bondade e crueldade, não nasceram do ar, mas da alma humana, tal como vive em nós neste momento. Todas essas estranhas coisas, suas formas originárias nos habitam e podem precipitar-se sobre nós a qualquer momento, com uma violência destruidora, sob forma de sugestão das massas, contra a qual o indivíduo é impotente. Os deuses terríveis mudaram apenas de nome, eles rimam agora com “ismo”. (JUNG, 2016, p. 469)

Podemos citar inúmeros movimentos que carregam essa essência em seus próprios nomes, por exemplo: comunismo, nazismo, fascismo, cientificismo, trumpismo, bolsonarismo, e muitos outros. Porém, além desses grupos específicos que parecem unir para na verdade dividir uma sociedade que já se encontra cindida, existe um movimento muito maior, global e que invade nossas vidas de maneira descontrolada: o capitalismo associado ao neoliberalismo. Hoje não há nada que não seja medido, quantificado e usurpado de sua carga simbólica dentro do modelo capitalista predatório em que vivemos. Tudo é transformado em produto e a mercantilização do mundo necessita dessa objetividade. Por exemplo, aquele indivíduo é importante pois tem 1 milhão de seguidores; o outro é o mais sexy do mundo pois corresponde ao padrão de beleza simétrico estipulado pela Revista Y, entre outros. Pode-se depreender disso que a mercantilização necessita não somente que produtos tornem-se mercadoria, mas que o ser humano e suas relações também se reduzam a este status. Não à toa serviços como Sugar Baby e Sugar Daddy tem crescido nestes últimos anos. 

Este momento de cultura de massas, que a sociedade perpassa, vai na contramão do caminho para o processo de individuação explicado na psicologia analítica. C. G. Jung demonstra que o indivíduo não deve tentar tornar-se perfeito, como no modelo atual do self made man. Seu objetivo deveria ser encontrar a sua totalidade, ou seja, reconhecer a sua luz e sombra, seus anjos e demônios, seu céu e seu inferno. Esta é uma dimensão que o status de mercadoria não permite, afinal, quem compraria um produto sabendo que ele possui uma sombra, um desvio, um demônio? Esse ato iria diretamente contra os ditames da propaganda.

Por outro lado, não propagar sobre seus demônios não quer dizer que eles não estejam lá. O nazismo e a propaganda foram por anos uma dupla imbatível. Isso leva a seguinte equação: quanto maior o esforço da propaganda, maior a negação do mal e mais oportunidades este mal tem de crescer. 

A visão do mal acende o mal na própria alma, não é só a vítima aquele que sofre o mal. Também o assassino e todo o âmbito humanoide rodeia o crime são por ele maculados. Algo irrompe do sinistro abismo do mundo, envenenando o ar e contaminando a água cristalina com um gosto repugnante de sangue. (JUNG, 2016, p. 410)

Exatamente por isso é uma responsabilidade individual e social lidar com o mal que existe em cada um de nós. De outra forma, esse mal fica sempre projetado fora, no outro. Isso não significa aceitar o comportamento abusivo de maneira alguma, ao contrário, nos dá referência para relativizar e compreender para que possamos lutar contra ele de maneira mais consciente. O autor aponta que o individualismo resulta no contra-ataque do homem coletivo, isto é, por não enxergar o que está dentro, ele não consegue entender que o mal reside também nele próprio. Esse mal projetado em grupos específicos está no fundamento de movimentos coletivos de massificação do indivíduo. Em um âmbito mais pessoal, a individuação seria a solução, afinal, é o contrário disso. “É perceber-se parte do todo enquanto encontra o mito do significado individual”. (JUNG, 2016, p. 462). 

O processo de individuação poderia surgir de maneira ampliada e coletiva se prestássemos mais atenção a reflexões como a de Waldemar Magaldi, (2019) que nos últimos anos tem apontando que a sociedade somente sairia desta lógica de trocas mercantilizadas pelo viés da alteridade, isto é, a consciência da interdependência dos seres e recursos planetários. Por isso mesmo, resgatar a contribuição de Marcel Mauss (1974) sobre a Dádiva pode ser interessante. O autor aponta que nas sociedades primevas, os contratos de guerra, tréguas, alianças e casamentos se faziam por meio da troca coletiva de presentes – tribos trocam coisas entre si e não indivíduos com seus interesses egóicos/pessoais – isto é, a dádiva está intrinsecamente interligada com o “servir”. 

De acordo com a Psicologia Analítica, a individuação também possui este vetor do “servir”. Esta só pode acontecer quando compartilhamos com a coletividade o elixir que buscamos nas profundezas, no mundo das trevas da nossa psique individual. Do contrário surgirá um sentimento de culpa, assim como a cobrança da própria sociedade de uma postura coletiva por parte do indivíduo. A pessoa em processo de individuação não é egoísta.

A renúncia do si-mesmo em favor do coletivo corresponde a um ideal social; passa até mesmo por dever social e virtude, embora possa significar às vezes um abuso egoísta. O egoísta (“selbstisch”) nada tem a ver com o conceito de si-mesmo, tal como aqui o usamos. Por outro lado, a realização do si-mesmo parece ser o contrário do despojamento do si-mesmo. Este mal-entendido é geral, uma vez que não se distingue corretamente individualismo de individuação. Individualismo significa acentuar e dar ênfase deliberada a supostas peculiaridades, em oposição a considerações e obrigações coletivas. A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculdades que em si mesmas são universais. Cada rosto humano tem um nariz, dois olhos etc., mas tais fatores universais são variáveis e é esta variabilidade que possibilita as peculiaridades individuais. A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna “egoísta”, no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo ou do individualismo. (JUNG, 2015, §267)

Enquanto não criamos valores unicamente positivos para a coletividade, não acontece a individuação. O que podemos observar, na verdade, em nossa sociedade contemporânea são indivíduos completamente identificamos com a persona, que por definição é coletiva porque tem a função de adaptar o indivíduo para o mundo exterior. Sem a diferenciação e desidentificação da persona não é possível entrar em contato com aquilo que é essencialmente individual. Quando conseguimos abrir mão dos aspectos unilaterais ou fixos da persona e criar valores que produzam a autonomia do indivíduo na coletividade, estaremos trilhando o processo de individuação. É nesse caminhar entre o encontro da individualidade e da devolução através do “servir” para a sociedade que encontramos a realização do mito do significado, ou o nosso sentido de vida na concepção mais profunda do conceito. Essa devolução deve ser oferecida a coletividade por um processo de expiação. Segundo Jung: 

Só na medida em que alguém produz valores objetivos pode ele individualizar-se. Todo passo para a individuação gera nova culpa que precisa de nova expiação. Por isso a individuação só é possível enquanto são produzidos valores substitutos. A individuação é exclusivamente adaptação à realidade interna e, por isso, um processo ‘místico’. A expiação é adaptação a mundo externo. Ela deve ser oferecida ao meio ambiente, com o pedido de que a aceite. (JUNG, 2012, p. 1095)

Se tudo é mercadoria, tanto sujeito quanto objeto são centrados na persona. No entanto, no passado primevo, vale lembrar que os objetos nunca foram apenas objetos e/ou utensílios. Eles possuíam alma, portanto, eram uma extensão de seus donos. A Participação Mística, estudada por Levy Bruhl (1923) demonstra que em cada objeto cultural existia ali uma extensão do dono e dos donos anteriores. Isto conduz o paradigma da troca para um nível além do presente material, isto é, para uma troca de valores psicossociais, ou melhor, uma troca de alma. Significando que as tribos arcaicas não trocavam quantificando os presentes, mas qualificando-os.

Talvez valha atentar para as nossas posses e refletir quais almas foram trocadas, neste momento em que a ganância, a corrupção e titanismo tem dominado. Talvez a resposta não seja agradável, e por isso mesmo a pergunta deve ser feita: qual é a minha contribuição para que o mundo esteja assim? 

Através da cultura ocidental tem sido difícil reconhecer o titanismo, inclusive hoje em dia, quando sua presença é tão opressiva. Para Platão os titãs eram um enigma, pois não eram nem deuses nem homens e, para nós, o que poderíamos chamar de natureza titânica também continua sendo um enigma e continua sendo difícil detectar sua presença em nós mesmos. Neste sentido, Ernst Junger (1993) contribui com a visão profética do século XXI como o século em que o coletivo será dominado pelo titanismo. No mundo atual existem suficientes sintomas reveladores, onde predominam a tecnologia científica titânica, as comunicações globais, a política e a criminalidade por toda parte, para se acreditar na profecia de Junger. Portanto, será cada vez maior o desafio que o titânico coletivo apresenta para a consciência individual. (LÓPEZ-PEDRAZA, 2002, p. 15)

Se pensarmos no conceito de amor como uma atitude e não somente um sentimento, encontraremos nele a saída para esse dilema. Amar é permitir ao outro que se manifeste. Esse outro pode ser objeto externo ou interno. Faz-se necessário amar a si mesmo e, nesses termos, permitir também a si mesmo, manifestar-se em toda a sua completude. Só podemos oferecer aquilo que temos, portanto, é imprescindível um trabalho de aprofundamento em si mesmo para aceitar nossas próprias antinomias. Dessa maneira desenvolvemos a capacidade reflexiva para relativizar, o que também nos oferece a possibilidade de escapar do unilateralismo e literalismo impostos pelo sistema atual em que vivemos abrindo o caminho para uma vida simbólica e metafórica.

José Luiz Balestrini Junior, membro analista em formação pelo IJEP

E-mail:balestrini@lungfu.com.br

Leonardo Torres – Membro Analista em Formação pelo IJEP

E-mail: leosouzatorres@gmail.com

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, W. O capitalismo como religião. São Paulo: Boitempo, 2013.

HOBSBAWN, E. J. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995. 

JUNG, C. G.; WILHEIM, R. O Segredo da Flor de Ouro: um livro de vida chinês. Petrópolis: Ed. Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo 5.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2016.

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Ed. Vozes, 2015. 

JUNG, Carl Gustav, 1875 – 1961. Presente e futuro. 8.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013a.

JUNG, C. G. A Vida Simbólica – Vol.2. Petrópolis: Ed. Vozes, 2012.

LÉVY-BHRUL, Lucien. Primitive Mentality. Londres: George Allen & Unwin LTD, 1923.
LOPEZ-PEDRAZA, R. Dioníso no Exílio – sobre a repressão da emoção e do corpo. São Paulo: Paulus, 2011.

MAGALDI, W. Dinheiro Saúde e Sagrado. 2.ed. Eleva Cultural, 2009.

MAGALDI, W. A Prática da Psicoterapia e a Masculinidade Tóxica na Abordagem Junguiana. 2019 Disponível em: https://ijep.com.br/artigos/show/a-pratica-da-psicoterapia-e-a-masculinidade-toxica-na-abordagem-junguiana Acessado em 10 dez. 2019. 

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In : _____. Sociologia e Antropologia. v. II. São Paulo : Edusp, 1974.                                    

MORIN, E. Cultura de Massas no Século XX. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1997. 

SODRÉ, Muniz. Mídia, Ideologia e Financeirização. In: Oficina do Historiador. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 8, n. 1, 2015. Disponível em: < http://goo.gl/DESnUr>. Acesso em: 5 nov. de 2015. 

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2004.

Leonardo Torres & José Luiz Balestrini Junior

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