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Evento em Suzano num período de mania egocêntrica

O evento em Suzano suscitou várias reflexões. Algumas delas buscam aliviar o sofrimento e a angústia de não entender o que aconteceu diagnosticando e categorizando os que realizaram o atentado ou colocando-o como monstruosidade ou desumanidade.

            Em entrevista ao blog A Protagonista, o psiquiatra forense Guido Palomba, mesmo alertando que é preciso cautela para formar opiniões afirma que: “Mas o que podemos saber com absoluta certeza é que esse crime foi praticado por doente mental. Não há outra possibilidade. Qualquer outra possibilidade está errada”. O presidente Bolsonaro coloca na rede social o evento como desumano, uma monstruosidade e covardia.

O que a narrativa junguiana poderia contribuir nesta reflexão?

            Uma das marcas importantes da perspectiva junguiana é não separar o que acontece nos extremos do que acontece no habitual. Os produtos de uma doença seriam exageros de ocorrências normais. E, é exatamente por exagerarem o que acontece em todos que a “patologia” mostra de maneira mais evidente o que acontece habitualmente (JUNG C. G., 1964, p.34). Como se o que protegesse a psique fosse a colaboração de todos os complexos, suas alternâncias e flutuações produzindo, numa transformação constante, um equilíbrio que se modifica a cada momento de acordo com o contexto presente. Como cada ser seria a realização singular de uma composição de universais, seria o crescimento unilateral de qualquer padrão, que entrando em cisão e oposição com outros produziria sintomas ou inimigos (como sintomas projetados). Afinal, nada do que se configura na consciência individual (valores, características, atributos etc.) seria exclusivo daquele vivente, embora a forma como a composição se dá, naquele momento e sujeito, seja singular. Os valores coletivos afetariam e comporiam complexos que funcionando como sistemas parciais autônomos podem invadir a consciência (individual e coletiva) como ameaças e serão vividos como sintomas ou inimigos personificados ou mesmo pode haver uma possessão de um sujeito ou de um grupo que em identificação com um destes sistemas parciais seja tomado e saia atuando concretamente estes padrões.

            O que é considerado problema maior na perspectiva junguiana é a unilateralidade da consciência quer seja num sujeito ou num coletivo. Jung já apontava no “Segredo da Flor de Ouro” (JUNG C. G., 2001) que o monoteísmo da consciência tem sido vivido como uma religião, uma possessão que nega, fanaticamente, a existência de sistemas parciais autônomos. O colapso, a crise seria então o efeito desta consciência desenraizada que acederia a uma liberdade prometeica exaltada e unilateral. Quando o que move a todos, faz pensar, sentir, chorar; quando os valores que conduzem não são reconhecidos apareceria o que Jung chama de uma “mania egocêntrica” e desta viria a doença. A “doença” mostraria o exagero unilateral da consciência que não pode ouvir outros lados, não contou com a composição e colaboração da multiplicidade que é constitutiva da psique.

            Reconhecer o que move, influência, interfere na vida de cada um, reconhecer o estar imerso e se constituir nesta infinitude de temas e valores, que são historicamente trabalhados pela psique, seria reconhecer que o inconsciente coletivo está afetando a todos em todos os momentos e isto não desresponsabiliza qualquer sujeito. Ao contrário, aumenta a responsabilidade pelo cuidado, não apenas com o que está diretamente envolvido, mas para com o mundo que o constitui e no qual vive. Entretanto Jung aponta o ato como fundamental. Pode-se não decidir que sentimentos, ideias ou fantasias surgirão na consciência, mas a responsabilidade pelos atos é do vivente. Ato como o resultado de impulso, sucessão e realização, um evento que abarca a totalidade anímica (JUNG C. G., 1978, p.72). As motivações e os deuses podem ser múltiplos, mas o mortal é responsável pelos atos.

            O reforço de valores coletivos como de disputa, guerra, ataque às diferenças e aos vulneráveis etc. interferem sobre a força com que os complexos atuam no inconsciente coletivo e nos sujeitos. Estes valores autorizam formas de viver. O “neoliberalismo”, por exemplo, é o nome dado a forma de vida que coloca como valores maiores a propriedade privada e o mercado competitivo. O mal não seria a existência destes valores em si, mas o predomínio destes nas famílias, nas escolas, nas igrejas, nas relações de trabalho, não poderia levar a que alguns, mais identificados com os mesmos, tomem para si a tarefa de realizá-los ou punir e atacar quem é visto como problema na realização dos mesmos?

            Interessante que os realizadores do massacre pediram ajuda literalmente de um fórum virtual onde se discute abertamente a prática de crimes, violação de direitos humanos, além de racismo e misoginia. Espaço virtual que já teve dois de seus administradores anteriores presos. Escrevem os que realizaram os atos agradecendo ao site dizendo: “Nascemos falhos, mas partiremos como heróis.” (SIQUEIRA & GUIMARÃES, 2019). Como se falhas não pudessem ter lugar ou valor. E quantos outros “fóruns virtuais”, metaforicamente falando, não fomentam revogação dos diretos humanos, racismo, misoginia etc. na consciência coletiva atualmente? O atual administrador do site (DPR) diz que Luiz era um “rapaz injustiçado”, enquanto Guilherme, de apenas 17 anos, era “inocente a ponto de transparecer sua natureza completamente infantil”. Qual o padrão coletivo que agindo nestes sujeitos e no coletivo busca que tipo de justiça que produz tantos culpados e inocentes?

            Faria sentido isolar estes atos de violência do contexto coletivo em que se vive atualmente? Estaria este ato isolado do grande ataque que tem sofrido as minorias? Afinal numa perspectiva ego centrada e neoliberal se você não conseguir ser “bem-sucedido” é porque não teve coragem, esforço e capacidade para competir no mercado livre para ser um vencedor. Haveria uma privatização do sofrimento, se você é um perdedor, “falho” a culpa e problema é seu! Não seriam estes valores que tem mais crescido e dominado ultimamente na consciência coletiva? Não haveria uma dominação unilateral nesta consciência da importância do ego? Os mais “doentes” mostrariam com mais clareza o que existe de monstruoso e desumano nos padrões que estão sendo vividos no presente e apresentados como mais importantes e valorosos? Assim, os mais doentes seriam aqueles que não podendo tomar distância destes ideais, não podendo ouvir outras vozes são tomados pela “mania egocêntrica”!

Referências

JUNG, Carl Gustav & WILHELM, Richard. O Segredo Da Flor De Ouro – um livro de vida chinês .Petrópolis: Vozes, 2001.

JUNG, Carl Gustav. La psicologia de la transferencia. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1978.

JUNG, Carl Gustav, et al. O Homen e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964.

SIQUEIRA, Filipe, e Caíque Guimarães GUIMARÃES. Noticias. 20 de 03 de 2019. https://noticias.r7.com/sao-paulo/em-forum-extremista-atiradores-pediram-dicas-para-atacar-escola-13032019.

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