Fiquei positivamente surpreso com o segundo filme de “Frozen: uma aventura congelante”. Não que o primeiro não tenha sua graça, mas especialmente o segundo me prendeu a atenção pelas diversas passagens que ilustram o processo de individuação pelo simbolismo da alquimia. Alerto aos que ainda não assistiram ao filme de que necessariamente este artigo contém spoilers.
No primeiro filme, o qual não me aprofundarei, Elsa, personagem principal, se liberta da persona de rainha “perfeita”, quando assume a sua magia, cantando a belíssima canção “Let it go” (Deixe ir), traduzida para o português como “Livre estou”, que também representa a ideia de libertação de algo. Mas para isso ela se isola, deixando o reino de Arendelle, herdado após a morte trágica de seus pais num acidente de navio. Para resgatá-la e tirá-la deste isolamento, partem Kristoff, um aldeão que coleta gelo, Sven, seu alce de estimação (ou seria uma rena?), Olaf, o boneco de neve que ganhou vida pela magia de Elsa, e a encantadora Anna, sua irmã que revela facetas óbvias para qualquer ser humano, mas curiosas quando observadas numa princesa da Disney: ela baba involuntariamente quando dorme, acorda descabelada, é bem desastrada e tem sardas na pele – algo tido até pouco tempo atrás como não compatível com a beleza estética do ponto de vista mercadológico. Anna guarda um amor incondicional pela irmã e, apesar de demonstrar ingenuidade em certas situações, é articulada e cheia de iniciativa.
No segundo filme, já devidamente reinstalada em Arendelle com sua trupe e assumindo publicamente sua capacidade mágica de gerar e moldar gelo, Elsa passa a escutar uma voz que introduz uma bela melodia. Ela questiona seus colegas e irmã para saber se também escutam, mas não, é um chamado para ela.
Dá-se então a canção tema do filme, a “Into the unknown” (Rumo ao desconhecido), traduzida para o português como “Minha intuição”. Na cena que permeia a canção, olhares mais atentos perceberão que são apresentados os quatro elementos: terra, fogo, água e ar. Tal como outros contos da Disney e seguindo a narrativa mítica do herói, num primeiro momento Elsa tenta ignorar a voz, se negando de ir rumo ao desconhecido, para depois entender que essa voz era um chamado.
A voz que Elsa escuta de maneira projetada, atribuída como uma voz do exterior, mas ouvida apenas por ela, pode ser entendida na visão junguiana que é potencialmente a “voz” do self, ou seja, algo em nós que nos convida a fazer um mergulho dentro do desconhecido. É por isso que apenas Elsa escuta a voz e mais ninguém. Aliás, tudo que é mostrado externamente no filme, parece configurar uma totalidade, ou seja, poderíamos pensar Elsa como o ego, e os outros personagens e locais como aspecto da psique da própria Elsa. A dúvida que pairava sobre a Elsa era: por que ela, filha de pais humanos e “normais”, possuía poderes mágicos? É como se o ego perguntasse: o que há além (ou antes) de mim?
Elsa não parte sozinha ao desconhecido, leva consigo Anna, Kristoff, Sven e Olaf. Num dado momento ela encontra uma massa densa de nuvens. O vento (ar) afasta as nuvens e ela adentra num espaço, que é a Floresta Encantada, local conhecido por ser “aonde a magia se origina”. Mas pouco se explica ali, e inesperadamente o fogo aparece. Ao mesmo tempo que atordoa e queima a floresta, o fogo estimula em Elsa o interesse por um aprofundamento em sua história pessoal. É na Floresta Encantada, e após o incêndio, que ela descobre que sua mãe salvou magicamente o seu pai de uma grande guerra quando eles eram jovens.
Ciente da inclinação mágica da mãe, Elsa continua sua jornada, ao saber que as respostas de suas dúvidas estariam num local além do mar, chamado Ahtohallan. Para isto ela se desvencilha de seus amigos e de Anna. Essa passagem é interessante, pois demonstra a responsabilização de Elsa pelo seu processo. Em termos junguianos, apesar da individuação ser uma meta, estimulada pelas sincronicidades e chamados do self, ela também precisa ser uma escolha consciente, que não pode ser feita por outro senão pelo indivíduo.
Em seguida uma das passagens mais marcantes acontece: Elsa precisa atravessar o mar com ondas violentas e gigantes para chegar em Ahtohallan. Ela se prepara para enfrentá-lo, tirando o laço do cabelo, tirando algumas peças de roupa e ficando descalça. Chama atenção o detalhe dela ficar descalça, pois parece um entrar em contato com a realidade, tocar genuinamente a situação, se colocar em pé, sustentada pelos seus próprios recursos, diante de um desafio tão grande.
Ao entrar no mar pela primeira vez, mesmo usando de seus recursos mágicos, congelando a superfície da água para atravessá-la, ela não obtém sucesso. Na segunda vez, surge um cavalo formado pela água. Eles travam uma luta, ele tenta afogá-la, mas em meio a este embate eles entram numa espécie de harmonia, e o cavalo que era seu inimigo, torna-se seu aliado, cavalgando por sobre as águas do temível mar, proporcionando a chegada em Ahtohallan.
Marie-Louise von Franz, menciona que “A função inferior é como um cavalo que não pode ser domado” (von Franz & Hillman, 2016, Pág. 37). Neste contexto, von Franz se refere mais à tipologia inferior, aquela que faz oposição ao tipo psicológico dominante na consciência, e conclui dizendo que esse cavalo não deve ser adestrado, e sim respeitado. No filme, a Elsa precisamente doma o cavalo, mas ficará claro no decorrer do filme que eles chegaram à um bom termo, ou seja, ele não fica submisso a ela, mas sim ao lado dela. Pode ser adequado pensar no cavalo como o tipo psicológico inferior da Elsa, mas me parece que ele se apresenta como o psicopompo, ou seja, aquele que acompanha e guia a descida ao mundo interior.
De maneira geral, Elsa é uma princesa que rompe o padrão Disney, que é “salva” por um príncipe encantado. Isso até fez com que parte do público pedisse à Disney que colocasse Elsa como sua primeira princesa homossexual. Mas precisamos lembrar que em termos psicológicos, Jung nos apresenta a existência dos simbolismos arquetípicos do masculino e do feminino na psique humana, fazendo contraponto ao gênero de identificação na consciência. Esses arquétipos fazem oposição ao gênero identificado pelo ego. Ele chama de anima o simbolismo do feminino para o ego identificado com o gênero masculino e de animus o simbolismo do masculino para o ego identificado com o gênero feminino (Jung, 2013, v. 7/2). É também o animus (ou a anima) que faz simbolicamente a condução para o mundo interior. É ele que viabilizará entrada de contato com a nossa profundidade psíquica. Nesse sentido, o cavalo psicopompo que se apresenta a Elsa, é também uma potência do seu animus, que a conduz diretamente à Ahtohallan, auxiliando-a nesta travessia e aprofundamento.
Adicionalmente, este cavalo é composto de água e atravessa a água. Em Símbolos da Transformação Jung afirma que a simbólica da água pode estar associada à imago materna (Jung, 2012, v. 5). Neste ponto do filme, Elsa sabe que a sua magia tem relação com história de sua mãe. Ela está sendo conduzida para compreensão de sua imago materna. A caminhada de Elsa pelo seu passado, também pode ser compreendida como o movimento de regressão da energia psíquica (Jung, 2002, v. 8/1).
Ao chegar em Ahtohallan, Elsa fica assustada, pois deve descer uma espécie de caverna. Não deveria ser diferente, já que entrar em contato com a nossa profundidade pode ser amedrontador, tal como menciona Jung: “No fundo, o medo e a resistência que todo ser humano experimenta em relação a um mergulho demasiado profundo em si mesmo é o pavor da descida ao Hades” (Jung, 2012, v. 12, pág. 355, § 439).
Ao terminar a descida, Elsa é possuída pelos 4 elementos, terra, fogo, água e ar. Ao mesmo tempo ela acessa acontecimentos dos seus antepassados, seu vestido fica branco e ela congela, como se morresse dentro daquela profundidade. Seu último ato foi enviar um “sopro” ao mundo superior, antes de congelar totalmente. Já falaremos do sopro, pois são diversas transformações que acontecem neste ponto que precisamos detalhar cada fase.
Ao ser possuída pelos 4 elementos, Elsa se torna a quintessência. A quintessência, segundo von Franz, “não é outro elemento adicional, mas, por assim dizer, a essência dos quatro e, todavia, nenhum deles; é o quatro em um” (von Franz & Hillman, 2016, Pág. 102). Em Estudos Alquímicos, Jung afirma que a lapis philosophorum (pedra filosofal) dos alquimistas, também é chamada de quintessência (Jung, 2013, v. 13). Ela é a meta máxima da alquimia. É como se Elsa conseguisse finalmente entrar em contato tanto com a sua história particular, mas também com a dos seus antepassados, tocando de alguma forma o inconsciente coletivo. A partir disso, ela passa por um processo de purificação alquímica, daí a razão do seu vestido ficar branco. Seu congelamento seria sua morte simbólica, que é aquela que encerra um ciclo para permitir o início de outro.
Jung resume a descrição acima nesta passagem: “A partir da “nigredo”, a lavagem (ablutio, baptisma) conduz diretamente ao embraquecimento, ou então ocorre que a alma (anima) liberta pela morte é reunida ao corpo morto e cumpre a sua ressureição; pode dar-se finalmente que as múltiplas cores (omnes colores) – a “cauda pavonis” (cauda do pavão) – conduzam à cor branca e una, que contém todas as cores. Neste ponto, a primeira meta importante do processo [alquímico] é alcançada: trata-se da “albedo”, “tinctura alba”, “terra alba foliata”, “lapis albus” etc., altamente valorizada por muitos alquimistas como se fosse a última meta” (Jung, 2012, v.12, pág. 248).
Na perspectiva do processo de individuação, se por um lado Elsa faz a descida e se adapta ao mundo interior, é preciso que o mundo exterior não seja relegado. Em termos psicológicos, se perder no mundo interior pode indicar a instalação de uma psicose. É pela função transcendente (Jung, 2014, v. 7/1), aquela que faz a união dos opostos e representa uma ponte na brecha entre consciente e inconsciente, que Elsa terá a possibilidade de ressignificar sua história pessoal.
A Elsa alquímica alcançou a albedo, mas sua adaptação ao mundo interior pareceu lhe privar do contato com o mundo exterior. Mas o seu último sopro foi captado intuitivamente pela sua irmã Anna, que logo entende o que precisa fazer: destruir uma barragem de água que representa o aprisionamento da Floresta Encantada nas nuvens densas. Sabendo de sua incapacidade de fazer isso sozinha, Anna provoca seres de pedras gigantes, que no contexto do filme representam o elemento terra. Passa a impressão de que é a função psicológica da sensação que aparece aqui. É como se ela lembrasse de que é preciso também lidar com a realidade exterior para resolver nossos dilemas. Nesse sentido, Anna é, simbolicamente, a função transcendente de Elsa (a exemplo do que acontece no primeiro filme), que é aquela que permite a Elsa interior resolver também os problemas do mundo exterior.
Ao passo que Anna cumpre com sua obrigação, orientada pelo sopro da irmã, Elsa descongela, volta à superfície e vai impedir que a água lançada pelo rompimento da barragem destrua o reino de Arendelle. Para fazer isso ela cavalga em seu cavalo aquático, como se fossem unos, Elsa e o cavalo, o animus.
Vale notar que do primeiro ao segundo filme, Elsa vai desconstruindo sua imagem de perfeição para poder entrar em contato com seu mundo interior. Neste sentido, Jonhson (1987) diz que todos nós temos sombras que nos salvam nos momentos críticos, e que perfeição não é totalidade. Elsa parecia ser perfeita, mas quem a salva é sua irmã Anna, que também representa aspectos de sua sombra (a princesa descabelada, etc.). Anna faz Elsa se lembrar de que é humana.
Ao término da narrativa, já recuperada, Elsa se torna uma rainha “alquímica” na Floresta Encantada, que é local de nascimento de sua mãe, e que explica a origem de sua magia – sua mãe também possuía poderes mágicos. Ela passa a usar o vestido branco, andar descalça e a cavalgar seu cavalo aquático, se despindo totalmente da persona de rainha perfeita.
A verdade é que este filme é muito rico em representações simbólicas. Segundo Jung, “Os símbolos funcionam como transformadores, conduzindo a libido [energia psíquica] de uma forma ‘inferior’ para uma forma superior”. (Jung, 2013, v.5, pág 277). São as diversas representações simbólicas que permitem fazer uma aproximação do processo de transformação de Elsa com as etapas do processo alquímico e por consequência com a individuação.
A leitura analítica do filme apresentada neste texto é apenas uma dentre as diversas possíveis. Também não houve uma intenção em fazer uma análise da psicologia do feminino. A ênfase nos aspectos descritos aqui cumpre com seu objetivo, que era fazer uma ampliação simbólica dos aspectos relacionados à alquimia e o processo de individuação contidos no filme Frozen 2. Outras visões e ampliações são bem-vindas do conto/filme.
Rafael Rodrigues de Souza, membro Analista em formação do IJEP.
Referências:
JOHNSON, Robert A. She: a chave do entendimento da psicologia feminina: uma interpretação baseada no mito de Eros e Psiquê, usando conceitos psicológicos junguianos. São Paulo: Mercuryo, 1987.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica, v. 8/1. 8ª ed. corrigida. Petrópolis: Vozes, 2002.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia, v. 12. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Estudos alquímicos, v. 13. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente, v. 7/2. 25ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação, v. 5. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente, v. 7/1. 24ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
VON FRANZ, Marie-Louise & HILLMAN, James. A tipologia de Jung: ensaios sobre psicologia analítica. 2ª ed. São Paulo: Cultrix, 2016.