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Individuação: a arte de tornar-se quem você é

Vivemos hoje numa sociedade politicamente polarizada, que enfrenta uma pandemia que agrava a saúde física, emocional e mental, abalando a economia – principalmente das minorias e periferias – e causando incerteza em relação ao futuro. Neste contexto, o processo de individuação pode ser mais importante do que nunca

Este desafiante momento global nos convida a nos voltar para dentro de nós mesmos, num movimento introspectivo que pode soar muito difícil – por vezes até insuportável –para quem não busca conhecer a si mesmo. 

Não por acaso, a meta, por assim dizer, da Psicologia Junguiana é o processo de individualização. Como diz Magaldi:

O processo de individuação é um caminho do Ego e para o Ego, potencialmente presente no Self, que é a totalidade psíquica, possibilitando a realização do Si-mesmo, a serviço da Alma, que também chamamos de Psique. Esse processo não tem fim, mas sua finalidade é o autoconhecimento, por meio do confronto com o inconsciente até surgir o despertar do amor e, consequentemente da ética e da necessidade de servir cada vez mais para poder ser! (MAGALDI, 2019).

O alvo seria desvelar o que há de único, de individual, de específico para aquele ser humano. Nesse processo, ocorrem momentos em que é preciso deixar ir aspectos que não mais servem àquela pessoa. 

Nas sociedades primevas, os ritos de passagem marcavam este momento de transição, quando por exemplo o menino passava por uma prova de coragem para poder se juntar aos homens na próxima caçada. Ou, dependendo do momento histórico, trocava os calças curtas por cumpridas. Embora também fosse uma questão de vestimenta, era sobretudo uma troca de papeis sociais, onde o menino dava lugar ao jovem adulto. Como diz Contrera:

E a ideia de renascimento não pode ser compreendida sem que consideremos que o renascimento se segue sempre e necessariamente a uma morte. Daí compreendermos que se não somos capazes de morrer para algumas coisas e para certos padrões, para relacionamentos e papeis, para personas e funcionalidades específicas, não estamos no caminho da individuação (CONTRERA, 2020).

Recentemente eu estava lendo um livro que reúne as entrevistas concedidas por C. G. Jung e me deparei com esta frase fantástica:

[…] todo o meu trabalho foi direcionado para mim; todos os livros que escrevi são apenas subprodutos de um processo íntimo de individuação[1] (JUNG, 1987, p. 395, tradução nossa).

Fiquei absolutamente tocada por esta afirmação. Só um ser humano que havia testado em si mesmo todo seu arcabouço metodológico ao longo de toda sua vida, de forma empírica, poderia se dar ao luxo de fazer tal confissão. Alguém auge da sabedoria dos 84 anos,  que morreria dois anos depois e que se via como um inconsciente que se realizou (JUNG; JAFFÉ, 1989, p. 19)

Jung elaborou seus métodos e técnicas porque ele tinha uma dada história de vida, porque estava instalado numa dada cosmovisão de mundo que funcionava como raiz da árvore conceitual que propôs. 

Da mesma forma que Sigmund Freud elaborou sua teoria sobre o complexo de Édipo, entre outras. Sabemos por vários relatos que o fundador da psicanálise teve uma relação muito intensa com sua mãe, que via nele o germe de um ser humano notável, por quem aquela criança era platonicamente encantada (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 313).

Já Alfred Adler, por seu lado, teve uma mãe que o colocava para baixo (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009, 364). Ainda assim, e provavelmente por conta desta relação, Adler acabou propondo uma teoria que abarca o processo de inferioridade em sua compensação com pensamentos, sentimentos e ações relacionadas com o poder. 

Para mim, o que Jung quer dizer com tal frase – e o que os exemplos de Freud e Adler entre outro ilustram – é que temos várias teorias, métodos e técnicas à nossa disposição. Muitos são os professores que vieram antes de nós. E é maravilhoso que o tenhamos. Afinal, em muitos momentos da vida, é o amparo de psicólogos e analistas que não nos deixam nos perder nas profundezas da noite escura da alma. 

Neste contexto, o processo de análise junguiana é uma das muitas formas de se compreender profundamente quem somos, incluindo as partes que não apreciamos.  Mas na hora H, temos de saber ir além destes ensinamentos para fazer o nosso caminho. 

E, assim, descobrir o processo de individuação que funciona para nós mesmos. Como diz outro pensador, o mitólogo estadunidense Joseph Campbell, esses professores nos ensinam o caminho. Mas é preciso descobrir qual é o nosso caminho (CAMPBELL; MOYERS, 1990) para que a mágica da descoberta funcione.

Senão corremos o risco de não viver nossa vida, de ficarmos papagueando, de forma livresca e sem alma, teorias, métodos e técnicas que não são feitos sob medida para o nosso desenvolvimento psíquico. 

Monica Martinez – Analista em formação pelo IJEP

Para saber mais

CAMPBELL, J.; MOYERS, B. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. 

CONTRERA, M. S. O processo de individuação e o caminho do renascimento. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/o-processo-de-individuacao-e-o-caminho-do-renascimento>. Acesso em: 8 abr. 2021. 

JUNG, C. G. C. G. Jung Speaking: interviews and encounters. New Jersey: Princeton University Press, 1987. 

JUNG, C. G.; JAFFÉ, A. Memórias, sonhos e reflexões. 11. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. 

MAGALDI, W. Autoconhecimento como caminho de cura pessoal e social: individuação e ego. Disponível em: <https://www.ijep.com.br/artigos/show/autoconhecimento-como-caminho-de-cura-pessoal-e-social-individuacao-do-ego>. Acesso em: 8 abr. 2021. 

SCHULTZ, D. P.; SCHULTZ, S. E. História da psicologia moderna. 12. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2009.

[1] Do original: “all of my work has been directed towards myself; all of the books that I have written are but by-products of an intimate process of individuation” (JUNG, 1987, p. 395).

Monica Martinez

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