Resumo: Este artigo, fundamentado na psicologia analítica de Carl Gustav Jung, propõe uma leitura simbólica do conto de fadas João e Maria, explorando a jornada arquetípica dos protagonistas como metáfora para a integração dos princípios masculino (animus) e feminino (anima) na psique e a sua importância para o processo de individuação. O artigo mostra que quando integramos essa força complementar dentro de nós, construímos um eu mais consciente e integrado, um verdadeiro retorno ”para casa”.
Nesse artigo, através do conto João e Maria, faremos uma leitura sobre a integração dos princípios masculino e feminino na nossa psique e a sua importância para o processo de individuação.
Os contos de fadas narram histórias que nos permitem através delas acessar nosso inconsciente. Desde criança ficamos fascinados com as histórias contadas, as quais mexem com nossos sentimentos, medos, desejos e fantasias, nos deixando envolvidos com suas imagens e narrativas, aguardando o tão esperado ‘’felizes para sempre’’.
Segundo Verena Kast (2009) ‘’ os contos de fadas contêm imagens arquetípicas que refletem processos profundos da psique. São metáforas para os desafios que enfrentamos na vida e nas relações.”
Ao ouvir ou ler um conto de fadas refletimos sobre a vida e aspectos de nós mesmos.
Os contos expressam necessidades primárias do ser humano, mas também sofrimentos e medos. Dessa forma, o conto João e Maria trata da necessidade de sobrevivência, mas também da nossa ‘’fome’’ interior.
Von Franz (1981) reforça que “contos de fadas são a expressão mais pura e mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo. Consequentemente, o valor deles para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa”.
João e Maria é um conhecido conto de fadas de tradição oral que foi coletado por dois irmãos, os Grimm, ambos acadêmicos, poetas e escritores que se dedicaram ao registro de várias fábulas infantis e viveram na hoje conhecida Alemanha nos séculos XVIII e XIX.
O conto João e Maria, sobre a perspectiva que vamos trabalhar nesse artigo trata da libertação de dois irmãos, que através da sua união vencem a bruxa e acham o tesouro.
Essa narrativa dos irmãos representa o processo de individuação, mostrando a integração do masculino e feminino internos. Temos Maria como representação da anima e João como representação do animus ambos impulsionando o crescimento mútuo dos irmãos.
João e Maria é um conto que fala de almas famintas, onde os desafios da vida os leva para a floresta, abandonados pela madrasta e pelo pai em virtude da pobreza. A presença da madrasta, como representação de uma anima negativa, e a ausência da mãe, demonstram que há uma carência de afeto. O pai, por sua vez, simboliza um animus fraco que se deixa levar pela madrasta. Há fome de afeto e de alimento. Eles são abandonados na floresta pelo pai e pela madrasta, sentem medo e desejam voltar para casa, porque ainda que não seja um lugar bom, é um lugar conhecido. Muitas vezes ficamos em lugares e situações que não nos fazem mal, por medo de enfrentar o novo, ‘’a floresta’’.
João e Maria são dois aspectos de uma mesma psique (anima e animus), ou seja, dois aspectos dentro de nós. No início da história, se apresentam como crianças vulneráveis, abandonadas na floresta. Podemos ver esse abandono como um símbolo do afastamento do ser humano de sua totalidade psíquica.
Jung denominou esses princípios opostos existentes na psique do homem e da mulher, respectivamente, de anima e animus.
Anima como sendo o princípio feminino, ou seja, o componente feminino na personalidade de um ego que se identifica com o masculino e a anima, por sua vez, o princípio masculino, ou seja, o componente masculino na personalidade de um ego que se identifica com o feminino.
Buscando a origem dois princípios masculino e feminino, vemos que na Mitologia Grega os primeiros seres eram andróginos, ou seja, concomitantemente masculinos e femininos, possuindo uma enorme força. No Banquete, Platão apresenta o chamado “mito do andrógino” por meio do discurso de Aristófanes. Segundo essa narrativa, originalmente, os seres humanos eram completos, compostos por duas metades: masculina e feminina. Esses seres possuíam grande força e poder, o que despertou a ira de Zeus. Para enfraquecê-los, Zeus os dividiu ao meio, criando os humanos como somos hoje, o que também contribuiu para que a humanidade se tornasse debilitada e carente, buscando sua outra metade, para recuperar a totalidade perdida no intuito de novamente estar unida em um só corpo e se tornar inteira. Mas, conforme trazido por Jung, a lembrança dessa unidade persiste no inconsciente coletivo.
Em nossa sociedade, extremamente patriarcal e machista, aprendemos a crescer desconectados de nosso feminino e masculino internos, projetando essas qualidades em nossos parceiros e vivendo, assim, relações desequilibradas.
Para Jung, o princípio feminino (anima) está ligado ao eros materno que é a função da conexão, emoção, intuição e relação, enquanto que o princípio masculino (animus) corresponde ao logos paterno que está associado ao conhecimento e à razão.
Anima e animus são arquétipos das representações essenciais de construção da estrutura da psique de todo homem e de toda mulher. São arquétipos que permitem a relação com o mundo interno, intermediando o inconsciente e consciente e, como mediadores do Ego e o mundo interno, são essenciais para o processo de individuação.
“Se o encontro com a sombra é obra de aprendiz no desenvolvimento de um indivíduo, então o trabalho com a anima é a obra-prima”. (JUNG, 2002)
Emma Jung (2020), reforça ainda que anima e animus são arquétipos investidos de grande significado, pois, ‘’pertencendo por um lado à personalidade, e por outro estando enraizados no inconsciente coletivo, eles constroem uma espécie de elo ou ponte entre o pessoal e o impessoal, bem como entre o consciente e o inconsciente’’.
Anima e animus agem, assim, de forma compensatória em relação à personalidade externa, a anima trazendo características femininas no homem e o animus como aspectos masculinos na mulher que, entretanto, ‘’não são determinados apenas pela respectiva estruturação no sexo oposto, sendo condicionado ainda pelas experiências que cada um traz em si do trato com indivíduos do sexo oposto no decurso de sua vida e por meio da imagem coletiva que o homem tem da mulher e a mulher tem do homem’’.
São, portanto, estruturas da nossa psique de grande relevância para o processo de individuação, intervindo na nossa vida individual como um estranho, uma outra pessoa que nos habita, às vezes se mostrando de forma positiva, mas muitas vezes também incômodo e destrutivo.
Podemos, dessa forma, analisar a jornada de João e Maria como um caminho para a maturidade emocional e a integração do animus e da anima.
Voltando ao conto, no início da narrativa é João, representando o logos, que tomado pela razão, tranquiliza Maria e toma a iniciativa de atitudes para tentar tirá-los da floresta, enquanto Maria aparece frágil e amedrontada.
Entretanto, quando João e Maria encontram a casa de doces, João já está faminto e enfraquecido e ambos são seduzidos por sua aparência tentadora. No momento que são capturados pela bruxa, eles são separados. João, que representava a razão, está agora enfraquecido e é aprisionado. Maria se vê sozinha com a bruxa e separada do irmão e da proteção que ele representava, o que causa angústia e medo. Há a dor dessa separação, da sua outra metade, ‘’o irmão’’. Entretanto, a dor faz com que Maria amadureça e assuma uma postura ativa, conseguindo derrotar a bruxa ao empurrá-la para o forno. Aqui, a energia da anima se torna consciente e forte, equilibrando-se com a racionalidade (animus).
Esse momento simboliza a integração da anima e do animus, onde a intuição e a força emocional se unem à razão e à ação. Com isso, João e Maria saem da casa da bruxa transformados, mais maduros, e encontram o caminho de volta para casa – ou seja, alcançam a totalidade psíquica.
Após essa união dos dois aspectos da psique, vem o tesouro, o ‘’felizes para sempre’’ que é a recompensa por terem vencido, amadurecido e por terem se tornados um ser inteiro. Os irmãos então atravessam um caminho novo e voltam ‘’para casa’’ transformados.
Concluímos assim, como os contos de fadas, sob a ótica da psicologia junguiana, são mais do que histórias infantis, representando símbolos profundos da psique humana e do processo de individuação. O conto de João e Maria, além de narrar uma jornada de sobrevivência, simboliza a busca pelo equilíbrio entre esses dois aspectos, o feminino (anima) e o masculino (animus) dentro de cada um de nós.
Quando resgatamos nossas próprias qualidades perdidas, não buscamos fora e no outro aquilo que nos falta, e nos relacionamos a partir da plenitude, como seres inteiros.
João e Maria precisaram resgatar seu feminino e masculino internos para se tornarem emocionalmente inteiros, reconhecendo que são duas personalidades que compartilham uma mesma alma. Ao enfrentarmos nossas sombras, integrando todas as nossas partes, reconhecendo a nossa dualidade, encontramos o caminho de volta para nossa totalidade psíquica e construímos relações mais saudáveis e equilibradas. Um retorno para nossa casa.
Itala Resende – Membro Analista em Formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP
REFERÊNCIAS:
BRANDÃO, J. S. Mitologia grega (Vol. 3). Petrópolis, RJ: Vozes.Harding, M. E. 1970.
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.
.JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Vol. VII/2. Petrópolis, RJ: Vozes. 2008.
KAST, Verena, O amor nos contos de fadas: O Anseio pelo outro, Vozes, 2009.
JUNG, Emma, Anima e Animus, Pensamento-Cultrix, 2020.