É cada vez mais recorrente a atenção dada por empresas, instituições e até pelo meio político ao tema da maior participação das mulheres em seus quadros. Especialmente nas grandes organizações existem metas muito claras para aumentar a quantidade de mulheres, prioritariamente nos níveis de liderança.
Mas o que a psicologia junguiana pode dizer sobre isso? Muitas coisas.
Por um lado, precisamos destacar que este movimento de dar mais espaço às mulheres se trata de uma reparação histórica, oriundo da conquista pela igualdade e liberdade de gênero em termos de participação social, cultural e política. Por outro lado, sabemos que há muito ainda para caminhar quando nos distanciamos da ideia mais literal de gênero e refletimos sobre o simbolismo do feminino nas organizações. Dito de outra forma, apoiamos e valorizamos que exista um movimento que incentive a maior participação de mulheres nas empresas, mas isso está longe de significar uma paridade ou integração entre feminino e masculino em termos simbólicos, como princípios arquetípicos e não como gênero.
Ainda que algumas mulheres questionem tal propositura, a dominância dentro de uma estrutura empresarial típica é masculina, e mesmo as mulheres, de certa forma, precisam assumir este modelo, se “masculinizando” psiquicamente para conseguir respeito e valor dentro desse universo patriarcal. Muitas vezes há uma confusão sobre esta perspectiva, pois algumas mulheres considerarão que não precisam desta “masculinização” psíquica para atuarem nas empresas, pois se consideram “muito vaidosas” e “muito femininas”. Isto é meia verdade, pois vestir-se de determinada maneira ou expressar determinada vaidade estética, se refere num primeiro momento à persona, que, neste sentido, pouco ou nada tem a ver quando evocamos os feminino e masculino simbólicos e arquetípicos. Em outras palavras, é possível que uma mulher seja muito feminina, no sentido da persona, mas bastante masculina no inconsciente, até mesmo por uma questão adaptativa – isso nada tem a ver com orientação sexual. Em alguns casos, que não parece ser a maioria, observamos mulheres que, por exemplo, refutam a ideia de licença maternidade de 6 meses por “deixar a mulher muito tempo fora da organização” ou dizerem que “preferem trabalhar com homens pois esses são mais objetivos” – extração essas da experiência do autor no mundo corporativo assim como das conversas em consultório, sem querer com isso generalizar estas falas.
Naturalmente quando abordamos a temática de masculino e feminino na psicologia junguiana evocamos os arquétipos de anima e animus. Tais estruturas da psique objetiva têm passado por um certo revisionismo por serem tidas como binárias e heteronormativas. Como qualquer ciência o conhecimento deve ser constantemente edificado e não nos opomos às discussões criativas e profundas sobre isto, mas refutá-las sob o argumento exclusivo de binarismo e heteronormatividade, sem aprofundar em pesquisa, num primeiro momento, nos parece uma argumentação empobrecida, porque parte de um princípio errado, que é associar “anima” com mulher/vagina e “animus” com homem/pênis. É verdade que no momento que Jung descreveu tais arquétipos, ele fizera uma descrição mais ou menos simplificada, do animus sendo a parcela masculina inconsciente da mulher e a anima a parcela feminina inconsciente do homem (OC 9/1). Mas ao adentrarmos na profundidade do simbolismo destes arquétipos, observaremos que estes são, na verdade, princípios criativos do inconsciente coletivo, que permitem ao ego conectar-se com o inconsciente, e isso nada tem a ver, exclusivamente, com os gêneros homem-mulher; são princípios arquetípicos, portanto humanos e atemporais, sem compromisso com gênero – como qualquer arquétipo. Relembremos dos princípios de yin e yang da filosofia antiga chinesa que também comungam da ideia de oposição entre feminino e masculino como princípios criativos: “Desde os tempos mais remotos da cultura chinesa, o yin está associado ao feminino e o yang, ao masculino” (Capra 2006, p. 33).
Adicionalmente, é muito comum a discussão sobre anima e animus girar em torno de relacionamentos afetivos, haja visto alguns livros clássicos na psicologia junguiana, tais como We (Robert Johnson), O casamento está morto, viva o casamento (Adolf Guggenbühl-Craiga) e Parceiros Invisíveis (John Sanford). Contudo, a força arquetípica de anima e animus vai além disso e pode ensinar muito sobre a ausência, ou menor participação, do feminino nas organizações.
Para melhor explicarmos nossas argumentações, tomemos as organizações como se estas fossem um único ser humano. Em termos tipológicos junguianos, a consciência desse humano-empresa seria muito provavelmente do tipo pensamento extrovertido (princípio de Logos) com sensação auxiliar, e sua função inferior seria o sentimento introvertido (princípio de Eros). A afirmação de Jung “A psicologia da mulher se baseia no princípio de Eros, que une e separa, ao passo que o homem, desde sempre, encontra no Logos seu princípio supremo” (OC 10/3, §255), já nos ajuda a identificar que sentimento e Eros, estão mais associados ao feminino, e em nossa acepção estão na função inferior da humano-empresa, portanto, a menos reconhecida e integrada na consciência.
Adicionalmente às argumentações acima, ao fazer o profundo estudo das tipologias (uma teoria junguiana bastante deturpada no universo corporativo) Jung dissera num primeiro momento que o pensamento era uma função exclusivamente do homem e o sentimento exclusivamente da mulher (OC 6). Depois ele perceberia que isso não se sustentava, podendo ser homens e mulheres tipos pensamento ou sentimento. Ainda assim, ao descrever o tipo sentimento, ele menciona que este é mais comumente encontrado na consciência das mulheres (OC 6). Com isso, voltando ao nosso humano-empresa, fica claro que o princípio regente na consciência das organizações é masculino, ficando os aspectos femininos na sombra.
O pensamento é qualificação e quantificação. O sentimento é valorização, empatia, sensatez.
Citemos algumas das características do animus (princípio arquetípico masculino):
“O animus, portanto, também tem o poder mágico da palavra, e assim os homens que atuam pela palavra podem, no bom e no mau sentido, exercer grande poder sobre a mulher” (Emma Jung, 2006, p. 32).
“O que o animus tem a transmitir é mais o sentido que a imagem” (Emma Jung, 2006, pág. 39).
“[…] o inconsciente contém as imagens as quais, mediadas pelo animus, tornam-se manifestas, quer como imagens da fantasia, quer inconscientemente como a vida atuante e vivida (OC 9/1, §350).
O animus evoca uma ideia de racionalidade cartesiana, mediador, estabelecedor de sentido; é a flecha de Apolo (Bolen, 2002). Se incrementamos essa perspectiva com os atributos do yang da filosofia chinesa teremos os adjetivos: expansivo, exigente, agressivo, competitivo, racional, analítico; céu, sol, dia, verão, secura, calidez, superfície (Capra, 2006).
Olhemos agora paras as características da anima:
“A anima […] possui justamente essa receptividade e falta de preconceito em relação ao irracional, e por essa razão ela é qualificada de mensageira entre o inconsciente e a consciência” (Emma Jung, 2006, p. 68).
“A anima, por sua vez, na medida em que se distingue da sombra, personifica o inconsciente coletivo”(OC 9/1, §439).
A anima é a própria imagem do inconsciente, é relação, integração, acolhimento, regeneração, maternagem. Na perspectiva do yin temos os adjetivos: contrátil, conservador, receptivo, cooperativo, intuitivo, sintético; terra, lua, noite, inverno, umidade, frescor, interior (Capra, 2006).
Nos parece que apresentando este olhar, fica mais claro quando dizemos que as organizações além de carecerem de mais mulheres, carecem de mais feminino – isso significa, especialmente, o estabelecimento de um bom termo dos homens com suas animas, mas também um reestabelecimento do feminino egoico da mulher, de forma que não precise se “masculinizar” em sentido simbólico, para poder atuar numa empresa.
Parece irônico, por exemplo, que algumas organizações usem o termo “colaborador” quando se referem aos seus funcionários, uma vez que, na maneira como as relações de trabalho são estabelecidas na atualidade, a ideia de colaboração não passa de uma ilusão, pois na prática o que se tem nas empresas são relações de comando e controle, porém, estabelecidas de maneiras mais sofisticadas nos últimos anos, com uma persona que sugere uma ideia de colaboração. Colaboração é feminina, é anima. Integração, escuta, acolhimento, humanização das relações, tudo isso é feminino. Cuidar do meio-ambiente, ter políticas internas e externas (com os fornecedores) em prol do meio-ambiente, reciclar, cuidar de Gaia (planeta Terra), é feminino. Construir um legado social genuíno (e não performático), mudando o papel das empresas de instituições que visam unicamente o lucro para instituições que contribuam para a redução das desigualdades sociais, desigualdade educacional, liberdade de expressão, liberdade religiosa e consciência política, é feminino. Desenvolver políticas organizacionais que levem em conta as necessidades das mães e dos pais, é feminino – está mais do que comprovada que a licença paternidade estendida contribui para o bem-estar do filho e da mãe. A licença maternidade de 4 ou (6 meses nas empresas “cidadãs”) no Brasil ainda é bastante inferior ao dos países nórdicos, por exemplo, que já reconheceram a necessidade de 2 anos de dedicação materna ao bebê – mas sabemos que estes países estão na vanguarda. Oferecer garantias de que uma mulher possa voltar da licença maternidade sem perder o emprego e garantir ao pai a liberdade de se ausentar do trabalho para ajudar mães recentes e bebês recém-nascidos, é feminino. Integrar gênero, cor, credo, raça, é feminino. As pautas raciais e LGBT+ nas empresas são absolutamente insuficientes quando olhamos para a maioria empresas que não são as grandes corporações – estas puxam o debate, mas ainda de maneira tímida, pois a maioria dos trabalhadores brasileiros, por exemplo, trabalham em pequenas e médias empresas. Diversos outros exemplos poderiam ser listados aqui, mas estes parecem ser suficientes para nosso texto. E cabe lembrar que existem iniciativas que caminham nesse sentido, portanto, nosso texto não é um sopro no vazio. Temos, por exemplo, políticas empresariais alinhadas ao ESG (governança social, ambiental, corporativa) que visam o cuidado com o meio-ambiente, social e político em sentido amplo, empresas com espaços para aleitamento dos bebês, fábricas com creches in loco para os bebês, empresas que adotaram a premissa do capitalismo consciente (aquele que oferece uma contraparte social de seu trabalho) e outras.
Por fim, para não sermos injustos e parecermos unilaterais em nosso texto, como se o princípio feminino fosse eminentemente bom e o masculino ruim, convém mencionar que, agora sim enviesando para o gênero, é importante para o ego feminino ter um bom termo com seus aspectos masculinos simbólicos inconscientes. O que nos preocupa, de um lado ou de outro, é justamente a unilateralização. Quando dizemos que as empresas precisam de mais feminino é porque este está no inconsciente corporativo, não reconhecido, portanto, produzindo doenças, burnout, destruindo o meio ambiente, colocando pessoas contra si. É necessário que as qualidades mais nobres da anima venham à tona. No que tange o masculino, seus atributos típicos como qualificar, quantificar ou de dar sentido, são necessidades humanas, que precisam fazer parte de uma organização saudável, mas se integrando ao feminino, e não atuando de maneira unilateral, que muitas vezes é bárbara, querendo “destruir a concorrência”, como se isso fosse algo bom para a humanidade.
Sendo otimista, acho que nunca tivemos uma chance na história de começar desde já fazer esses movimentos, começando pelo olhar sobre a nossa própria psique individual.
Rafael Rodrigues de Souza – Analista Didata em formação
Analista Didata – Waldemar Magaldi Filho
Referências:
BOLEN, Jean Shinoda. Os deuses e os homens: uma nova psicologia da vida e dos amores masculinos. São Paulo: Paulus, 2002.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 2006.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos (OC 6). 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (OC 9/1). 8 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição (10/3) 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Emma. Animus e anima. São Paulo: Cultrix, 2006.