Site icon Blog IJEP

Mecanismos diabólicos para a dominação mental (ou os fundamentos do fascismo) 2ª parte: patriotismo e religião

brasil totalitário psicologia

Na primeira parte dessa reflexão exploramos a questão da importância da aceitação da dúvida em nossas vidas para que possamos ter uma atitude religiosa e/ou científica coerentes frente aos acontecimentos dos mundos interno e externo.

Nessa segunda parte exploro a relação entre patriotismo e religião e como a fusão (ou confusão) das duas coisas pode contribuir para o crescimento de pensamentos e movimentos extremistas onde a figura de Deus, apesar de citada muitas vezes, é completamente deixada de lado enquanto imagem primordial que deveria direcionar nossas escolhas eticamente, para ser substituída por figuras egoístas que refletem a identificação sombria daqueles que não suportam olhar para o mal que existe dentro deles mesmos.

No primeiro texto utilizei trechos das cartas didáticas enviadas a um diabrete por seu tio, um diabo de alta patente na hierarquia infernal de nome Maldanado. Essas cartas têm como objetivo ensinar ao aprendiz maneiras de afastar os seres humanos dos caminhos que os levariam à Deus. Os textos dessas correspondências estão no brilhante livro de C. S. Lewis, “Cartas de um diabo a seu aprendiz”, de 1942. Foi escrito e publicado durante a segunda guerra mundial e no ápice do movimento nazista.

No trecho que segue, Maldanado explica a seu sobrinho e aluno a importância de causar uma confusão de ideias na cabeça de seu paciente (maneira como eles se referem aos seres humanos) com relação ao que ele acredita ser o patriotismo e a religião. O plano do mundo infernal é fazer com que ocorra uma inversão de valores onde as causas do partido sejam maiores e mais importantes do que a própria religião em si.

“… seja qual for a seita que ele adotar, sua tarefa principal será a mesma. Comece por fazê-lo tratar o patriotismo ou o pacifismo como parte de sua religião. Depois, deixe-o, sob a influência do espírito partidário, chegar a se referir a isso como a parte mais importante. Depois, silenciosa e gradativamente, cuide para que ele alcance um estágio em que a religião se torne meramente parte da “causa”…” (carta VII)

Essa mistura disforme e errática de ideias contribui para que a pessoa se perca no meio da massa. Isso é causado principalmente por um deslocamento da importância daquilo que é muitas vezes considerado correto pelo indivíduo, para aquilo que é aceitável pela multidão em que ele se encontra inserido, conceito junguiano de persona coletiva. Existe dentro de cada um de nós a potencialidade para a correção dos desvios de personalidade que sofremos durante o nosso desenvolvimento. Metaforicamente, se soubéssemos ouvir a voz de Deus, junguianamente a vós do Self, escolheríamos o caminho que consequentemente nos levaria ao processo de individuação. Porém, por escolhas, ou incapacidade de escolha, do ego, muitas vezes influenciado por complexos, conteúdos sombrios e questões transgeracionais que carregamos, acabamos andando na direção oposta. A figura de salvação fica então projetada fora do indivíduo, que passa a se comportar de maneira cega e apenas obedece a aquilo que é ditado pelo detentor de tal projeção. Em suas cartas, Jung respondendo ao questionamento de Günther Däss sobre o que estava por trás do comportamento do povo alemão durante a segunda guerra, escreve: 

“No que se refere ao “centro”, o senhor tem razão; os pares de opostos da psicologia alemã deslocaram-se para os extremos porque o centro foi perdido. Este centro foi produzido indiretamente por uma fraude infernal através da figura do Führer. Isto acontece naquelas sociedades em que se perdeu o centro espiritual. Somente neste centro espiritual existe uma possibilidade de salvação. O conceito de centro foi designado como Tao pelos chineses, e que os jesuítas da época traduziram por Deus. Este centro está em toda parte, isto é, em cada pessoa, e quando o indivíduo não possui o centro ele contagia todas as pessoas com essa doença. Então os outros também perdem o centro.” (C. G, Jung, Cartas Vol. 2, pág. 76, grifo nosso)

Refletindo sobre as atitudes e falas de uma grande parte da população e da maioria dos nossos governantes atuais, fica claro que vivemos uma época de extremismos, o que significa que o centro simbólico, referido na citação acima por Jung, está perdido. Com apoio de uma população evangélica extremista, o presidente Jair Bolsonaro já disse inúmeras vezes que acredita ser um enviado de Deus, cito apenas uma de suas falas como exemplo: “Eu tenho uma missão de Deus, vejo assim. Foi um milagre estar vivo e outro milagre é ter vencido as eleições.” (19 de junho de 2019)

Impressiona também o fato de dizer ter sido um milagre a sua salvação do atentado que sofreu e outro ele ter vencido as eleições. Se coloca assim como um ser humano especial e favorecido por Deus. Nessa mesma fala já podemos perceber sua intenção de misturar política e religião, fazendo com que a massa desprovida de reflexão acredite se tratar da mesma coisa. Em sua visão, venceu as eleições por vontade divina. Cito uma frase agora de um outro homem que acreditava estar agindo em nome de Deus: “E, assim, eu creio, como sempre, que o meu comportamento está de acordo com a vontade do Onipotente Criador.” (Adolf Hitler, Mein Kampf, Pág. 65)

Esse tipo de fala, no momento oportuno e com a dramaticidade correta, faz com que o povo passe a acreditar cegamente que aquele que se apresenta na sua frente é mesmo um messias. Assim foi construído o mito de Hitler, e assim tentaram (talvez ainda estejam tentando) construir o mito de Bolsonaro no Brasil. Parafraseando Jung, o centro perdido se encontra identificado numa figura infernal travestida de um grande líder enviado por Deus. 

A partir daí podemos observar um movimento que leva à dissolução do indivíduo, transformando-o numa parte infinitesimal da massa não reflexiva que acredita estar perante o salvador. O fracasso negado, lançado para a esfera do inconsciente, de não conhecer a si mesmo leva à uma forte identificação com essa figura. O eu é enaltecido nessa relação de vínculo doentio com o grupo, enquanto o si-mesmo é esquecido, deixado para trás. 

“O grupo enaltece o eu, isto é, a pessoa torna-se mais corajosa, mais pretensiosa, mais segura, mais atrevida e imprudente, mas o si-mesmo é minimizado e relegado ao plano de fundo em benefício da média geral. Por isso os fracos e inseguros querem pertencer a sociedades e organizações…” (C. G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 387)

Imprudência é uma ótima expressão para ilustrar as atitudes atuais do nosso governo e de seus apoiadores frente à crise que estamos enfrentando. Fracos e inseguros internamente precisam se armar de todas as formas como uma maneira de compensar aquilo que lhes falta. Jung ainda diz sobre a fantasia coletiva de segurança: “No grupo o sentimento de segurança é maior e o sentimento de responsabilidade é menor.”(C.G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 386)

É exatamente a ausência de qualquer responsabilidade que podemos observar nessa parcela da população identificada com o patriotismo religioso que prega o capital acima da vida humana. Pensam apenas nos seus ganhos pessoais mostrando nenhuma preocupação com o todo. Não existe nenhuma reflexão de como as atitudes individuais afetam e influenciam o bem estar geral.

O slogan do governo atual: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não passa de um apelo religioso hipócrita de uma equipe que não consegue perceber que o mundo hoje (na verdade desde sempre) está conectado numa relação de interdependência. Um time que destrói relações diplomáticas por picuinhas pessoais, afetando diretamente a saúde, a vida e a morte de milhares de pessoas em troca da satisfação egoísta de publicar desaforos em redes sociais. Por trás disso fica a ideia de uma nação soberana, olhada e cuidada pelo próprio Deus literalizado que fará a sua parte desde que seus enviados, responsáveis por levar a população à suposta salvação, recebam o dízimo e os votos.

O diabo Maldanado continua sua explicação de como direcionar os seres humanos diretamente para o inferno: 

“Uma vez que você tenha feito do mundo um fim e da fé um meio, terá quase conquistado o seu homem. E faz muito pouca diferença que tipo de fim mundano ele esteja perseguindo. Desde que os encontros, as panfletagens, as políticas, os movimentos, as causas e as cruzadas importem mais para ele do que as orações, os sacramentos e a caridade, ele será nosso – e quanto mais “religioso” (nesses termos) forem os homens, mais seguramente os teremos em nossas mãos. Há jaulas repletas de gente desse tipo aqui embaixo.” (Carta VII)

O diabo é ardiloso! Deixa claro que não importam os objetivos terrenos perseguidos pelas pessoas para que estejam no caminho para cair em seu reino. O mais importante é que ele acredite que sua causa é religiosa e existe por um bem maior. Suas ações absurdas e egoístas são sempre justificadas com a prerrogativa de que são ordens divinas. Não percebem que, quanto mais agirem assim, mais afastados de Deus estarão.

Na construção do mito nazista não foi inventado um novo inimigo. Eles simplesmente projetaram todo o mal, já descrito nos textos cristãos, em todos aqueles que não faziam parte do movimento. Na figura do Führer estava a salvação de todo esse mal. Nesse estado psicológico a massa se entrega para a morte, do outro e de si, como se estivesse tomado por um vírus. Encerro esse ensaio com as seguintes palavras de Jung, retiradas de uma carta de 1949, que resume com muita clareza o momento político que estamos vivendo e mostra que talvez ainda não tenhamos aprendido nada com a história:

“Uma situação política é a manifestação de um problema psicológico paralelo em milhões de indivíduos. Este problema é em grande parte inconsciente (o que o torna particularmente perigoso). Consiste num conflito entre um ponto de vista consciente (ético, religioso, filosófico, social, político e psicológico) e um inconsciente, que se caracteriza pelos mesmos aspectos, mas é representado numa forma “inferior”, isto é, mais arcaica. Em vez da “alta” ética cristã, temos as leis do rebanho, repressão da responsabilidade individual e submissão ao chefe tribal (ética totalitária). Em vez de religião, credo supersticioso numa doutrina ou verdade ad hoc; em vez de filosofia, um sistema doutrinário primitivo que “racionaliza” os apetites do rebanho; em vez de uma organização social diferenciada, uma aglomeração caótica e sem sentido de indivíduos desenraizados, mantidos submissos pela força e pelo terror, cegados por mentiras convenientes; em vez do uso construtivo do poder político com o objetivo de conseguir um equilíbrio das forças desenvolvidas livremente, a tendência destrutiva de estender a repressão ao mundo inteiro para obter mera superioridade de poder; em vez de psicologia, o uso dos métodos psicológicos para extinguir a centelha individual e inibir o desenvolvimento da consciência e da inteligência.” (C. G. Jung, Cartas vol. 2, pág. 142) 

*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, membro analista em formação pelo IJEP, especialista em medicina tradicional chinesa, e Sifu (mestre) de Kung Fu.

E-mail: balestrini@lungfu.com.br

Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo – Av. Ibijau, 236 – Moema

Consultório: (11) 98207-7766

Referências

JUNG, C. G. Cartas, Volume 2, Petrópolis, RJ, Editora Vozes, 2018

LEWIS, C.S. Cartas de um diabo a seu aprendiz, Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2017

Jose Luiz Balestrini Junior 

Exit mobile version