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Necropolítica, zumbis, COVID-19 e Jung

necropolítica e psicologia

Uma das maiores preocupações de C. G. Jung (2012) foi a questão do ser humano massificado. No decorrer das Obras Completas, o autor discorre cerca de 150 vezes sobre este assunto, segundo a pesquisa de doutorado de Torres (2020) que fez um levantamento bibliográfico do tema para sua tese sobre Contágio Psíquico. E mais, para Jung (2012), o maior perigo futuro não seria o das catástrofes naturais, mas o da contaminação psíquica que levaria o ser humano ao estado de massa, inaugurando novos “-ismos”.

Este futurismo de Jung já está em processo: um dos índices mais alarmantes no Brasil é o do analfabetismo funcional. Segundo o Instituto Paulo Montegro (INAF)  um terço dos brasileiros enquadram-se neste perfil: indivíduos que possuem conhecimento básico de leitura e escrita, isto é, sabem quanto deverá ser o troco no supermercado e assinar seus nomes. E, por esse motivo, possuem dificuldades em interpretar textos, identificar ironias e principalmente identificar Fake News. 

Neste ritmo, um estudo sobre cibersegurança nomeado “Iceberg Digital” revela que 62% dos brasileiros não são capazes de identificar uma fake news. Já na América Latina o índice chega a 70%. Cerca de 16% sequer conhecem o termo “fake news”, ou seja, grande parte da população acredita piamente em notícias falsas. Conforme Aral et al. (2018), as fake news tem 70% mais chance de serem compartilhadas em detrimento de notícias verdadeiras, pois elas normalmente tocam em emoções humanas como o “medo, repulsa, surpresa e preconceitos”, ou seja, coisas ditas ruins. Jung (2013a) refere-se a tal estado como  “carência acidental de uma perfeição”, em que só se reconhece o que é bom em si mesmo e o mau é projetado no outro. Dessa forma, o julgamento sobre “bem e mal” se torna subjetivo, fica a cargo da moral dos indivíduos, que não segue um padrão único, ninguém pode dizer com certeza o que é bom ou mau. E, na medida que alguém se vê capaz de tal feito, “que se consideram situados para além do bem e do mal, em geral, são os importunos mais incômodos da humanidade, que se contorcem no tormento e no medo da própria febre (JUNG, 2013a, §97)”. Ao receber informações de forma não oficial (whatsapp, facebook e similares) sem averiguar a veracidade das fontes, se é tocado pelo julgamento moral e subjetivo de “bom ou mau”, então, a obrigação de alertar outras pessoas sobre tais questões vêm à tona. 

O nível de manipulação das massas parece se dar atualmente em um grau jamais visto. Não somente Jung (2012) previu tal fenômeno como Harari (2016) discorre que o futuro será marcado por uma massa inútil comandada pelos algoritmos. Este fenômeno não é novo, se lançarmos o olhar ao passado, de acordo com Mackay (2002), encontraremos tendências de manipulação das massas pelo clero e pelos aristocratas que conseguiam convencer e prescrever, em certa medida, algumas percepções para as cidades e até países. O autor exemplifica com a caçada às bruxas na Idade Média. Porém, não há na história nenhum outro momento em que houve tanta informação apreendida pelos algoritmos, abrindo oportunidades ímpares de manipulação da massa em escala global; e também, nunca houve uma tecnologia que disseminasse conteúdos com tanta amplitude e rapidez como a internet. 

No fundo, não há tempo para dúvidas e reflexões. Esta questão já fora colocada por Jung (2013a, p. 513) quando apontou que a massa garante uma proteção muito sedutora ao indivíduo, já o tomar consciência demanda tempo, esforço e sofrimento.

Contrera (2002) aponta que isto é um tipo de censura, pois a ignorância da massa é criada graças à hipervelocidade que as informações correm: ninguém acompanha, reflete e integra. Em pesquisa recente, a autora relaciona a sociedade atual com a figura dos zumbis:

O andar constante do zumbi e sua eterna busca pela devoração dos cérebros [em busca de consciência] não deixa de ser uma metáfora perfeita para esse modo de vida pautado pelo consumo nas sociedades capitalistas: ansiedade e compulsão, criadas para mover os lucros advindos do consumo, para em seguida serem tratadas com medicamentos que as controlam, promovendo assim mais consumo. No momento em que esse ciclo perde qualquer referência de seus limites, o consumo transforma-se no autoconsumo. (CONTRERA e TORRES, 2018, p. 13). 

Jung (2012) (2013a) aponta que a grande preocupação dos séculos modernos deveria ser as epidemias psíquicas, advindas deste estado “zumbizógeno” ou do fenômeno da massa. Sedentos por uma consciência reduzida a um racionalismo oco, a humanidade hoje vive em um momento agudo de cegueira, assim como Saramago relata no romance “Ensaio sobre a Cegueira”. Infelizmente, o analfabeto funcional não consegue compreender as metáforas e simbolizara vida, transformando informações rasas em literalidades e unilateralidades, como verdades absolutas, sem compreenderem que o que chamamos de realidade nada mais é do que o resultado da nossa imaginação.

É diante desta cegueira que podemos observar a necropolítica no mundo, principalmente ao se tratar da propagação de fake news relacionadas a saúde e política, como pudemos perceber com as últimas eleições norte-americanas e brasileiras, bem como com tamanha desinformação sobre vacinas, tratamentos e características do coronavírus. 

O termo necropolítica foi cunhado por Archille Mbembe, historiador e cientista político camaronês, e, relaciona-se com o movimento decolonial originário de pensamentos sociais africanos e latinos entre os séculos XIX e XX, que buscam descentralizar os saberes colonizadores, ou seja, europeus (MBEMBE, 2018). Necropolítica diz respeito à política voltada na produção de mortes, tanto físicas como simbólicas, uma vez que o mercado de consumo exige produção de trabalho e capital, e, a mão de obra são pessoas vivas. Mas, uma vez que certas pessoas deixam de ser útil ao sistema, passam a ser descartáveis (MBEMBE, 2018). Por exemplo: a negligência do governo em relação à saúde de determinados grupos sociais durante a pandemia de Covid-19, em que os dados estatísticos mostram que os maiores afetados são pessoas pobres e idosas – grupos que precisam de maior investimento econômico[i].

Embora o termo “necropolítica” seja posterior a Carl Gustav Jung, algumas de suas pontuações sobre Estado e sociedade caminham próximas à questão. Jung (2013a) alerta que não podemos ignorar as influências psíquicas de pressupostos que distorcem a realidade e dessa forma massificam comportamentos, pois desse movimento surgem organizações e o próprio Estado, que se responsabilizam por “pensar pelo indivíduo”. A satisfação das massas e do Estado seguem a mesma lógica do mercado de consumo, o coletivo, “a razão de Estado decide o que se deve ensinar e aprender (§499)”, a necropolítica aponta que também se escolhe o que deve morrer.

Em lugar da diferenciação moral e espiritual do indivíduo, aparecem os serviços públicos e a elevação do padrão de vida. O sentido e a finalidade da vida individual (a única vida real!) não repousam mais sobre o desenvolvimento individual, mas sobre uma razão de Estado, imposta de fora para dentro do homem, ou seja, na objetivação de um conceito abstrato cuja tendência é colocar-se como a única instância de vida. A decisão moral e a conduta de vida são, progressivamente, retiradas do indivíduo que, encarado como unidade social, passa a ser administrado, nutrido, vestido, formado, alojado e divertido em alojamentos próprios, organizados segundo a satisfação da massa (JUNG, 2013a, §449).

Ao retomarmos o problema apontado por Jung (2013b) sobre mensurar objetivamente o bem o mau,  percebemos outra ligação com as questões apontadas dentro da necropolítica: “a presença do outro me impede de ser totalmente eu mesmo. A relação não surge de identidades plenas, mas da impossibilidade da constituição das mesmas” (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 125). Jung (2015) explica a necessidade de disseminar o fim desse outro tão diferente de mim pela incapacidade de recolher as projeções outrora feitas: “minha modéstia de forma alguma permitiria que eu me identificasse com o demônio. Além de ser isso uma incrível presunção, colocar-me-ia em conflito com meus valores supremos. E meu “déficit” moral também não o permitiria (§394)”. Ou seja, a morte (física e simbólica) do outro vem como alívio pela falta de integração da própria consciência – o cérebro tão buscado pelos zumbis. 

Vale entender que tanto a figura do zumbi como o termo necropolítica, apesar de serem figuras que representam a morte, não parecem estar ligadas à dinâmica da transmutação e renascimento, provindos do simbolismo alquímico da morte. E sim, da ideia da putrefação eterna, de acordo com a etimologia, ficar eternamente podre (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2017, p. 748-749), por não dar continuidade ao processo alquímico psíquico, proposto pela teoria de Jung. A Necropolítica se assemelha com a figura do Zumbi: não está nem morto, nem vivo – no limbo, à espera do fim. 

E por quê nós, para além do âmbito pessoal, enquanto analistas, devemos nos preocupar com isso? Deixamos essa reflexão a cargo das palavras de Jung:

Por razões práticas, a psicoterapia médica deve se ocupar da totalidade da psique. Nesse sentido, ela precisa discutir e considerar todos os fatores que influenciam de maneira decisiva a vida psíquica, sejam de ordem biológica, social ou espiritual. A situação de uma época como a nossa, conturbada em alto grau pelas paixões políticas, abalada pelo caos de revoluções de Estado e pela derrocada dos fundamentos de sua cosmovisão, afeta de tal maneira o processo psíquico do indivíduo que o médico não pode deixar de dedicar uma atenção especial aos efeitos que provoca na psique individual. A avalanche dos acontecimentos de uma época não é perceptível apenas no lado de fora, isto é, no mundo exterior e distante. Ela atinge também a tranquilidade do consultório e a privacidade das consultas médicas. O médico é responsável por seus pacientes e por isso não pode, de maneira alguma, isolar-se na ilha distante e tranquila de seu trabalho científico. Precisa descer à arena dos acontecimentos do mundo e participar da luta das paixões e opiniões, pois do contrário só conseguirá perceber as inquietações do seu tempo de modo distante e impreciso, tornando-se incapaz de compreender ou mesmo de ouvir o sofrimento de seus pacientes. Ele não saberá qual a linguagem mais adequada para lidar com o paciente e retirá-lo do isolamento em que se encontra, já que a sua incompreensão reforçará ainda mais esse estado. Por essa razão, o terapeuta não pode prescindir de uma discussão com o seu tempo por mais que o alarido político, o embuste da propaganda e o grito desafinado dos demagogos lhe causem repugnância. O que aqui ressaltamos não são os seus deveres de cidadão que exigem algo semelhante mas, essencialmente, os seus deveres como médico que lhe impõem uma obrigação ainda mais elevada, o compromisso com o homem.” (JUNG, 2012, p. 11-12)

Alethéia Skowronski Vedovati – Analista em formação pelo IJEP

Leonardo Torres – Analista em formação pelo IJEP

REFERÊNCIAS

CONTRERA, M. S. Mídia e Pânico: saturação da informação, violência e crise cultural na mídia. São Paulo: Annablume, 2002.

CONTRERA, M. S.; TORRES, L. O zumbi no imaginário mediático: Zumbi e Pulsão de Morte na Sociedade Mediática. E-Compós, v. 22, n. 1, 21 dez. 2018.

HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Cia das Letras, 2016. 

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo 5.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

JUNG, Carl Gustav. Aion – estudos sobre o simbolismo do si-mesmo 10.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b.

JUNG, Carl Gustav, 1875 – 1961. Presente e futuro. 8.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013a.

JUNG, Carl Gustav. Aion – estudos sobre o simbolismo do si-mesmo 10.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2013b.

JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. 27.ed. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

LACLAU, E.; MOUFFE, C. (1985) Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics. Verso, London. 

Levantamento identifica quais grupos sociais estão mais propensos à Covid-19. G1. 01/07/2020. https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/07/01/levantamento-identifica-quais-grupos-sociais-estao-mais-propensos-a-covid-19.ghtml Acessado em 09 de dez. 2020.

MACKAY, Charles. Ilusões Populares e a Loucura das Massas. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.

MBEMBE, Archille. Necropolítica. São Paulo: n1, 2018.

TORRES, Leonardo. Contágio Psíquico na Mídia Eletrônica. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Comunicação da Universidade Paulista – UNIP, para obtenção do título de Doutora em Comunicação. 2020.

1 – https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/07/01/levantamento-identifica-quais-grupos-sociais-estao-mais-propensos-a-covid-19.ghtml acessado em 09 dez. 2020. 

Alethéia Skowronski Vedovati & Leonardo Torres

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