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O amor, o poder e o abusador que nos habita

Em que medida a incapacidade de aceitar, compreender e acolher aspectos de si mesmo, tidos como inferiores e frágeis, tem relação com a formação de um abusador? Em que medida não é o abusado, num movimento contrafóbico, que se transforma no abusador? Como a incapacidade de conciliar as antinomias que nos constituem, como amor e poder, luz e sombra, feminino e masculino, torna-nos vulneráveis às “nossas” piores versões? Este artigo é uma reflexão, numa perspectiva junguiana, sobre as dinâmicas por trás da concepção de uma personalidade abusadora e de que maneira elas estão associadas à incapacidade do indivíduo em enxergar, na própria fragilidade, sua principal fonte de força e humanidade.

Uma das definições da palavra abuso é “uso excessivo ou imponderado de poderes”. Alguém poderoso, então, naturalmente tem mais chances de ser abusivo do que pessoas menos poderosas, o que não significa, todavia, que será. O poder se expressa de diversas maneiras e em diferentes níveis. A palavra poder tem relação com a ideia de posse, seja de objetos, capacidades, autoridade, conhecimento e, por mais absurdo que possa parecer, também de pessoas. Nesse último caso, não se trata apenas de regime de escravidão, pelo menos não na acepção clássica do termo. Tem mais a ver com vínculos de dependência de diversas ordens: financeira, afetiva, psicológica.

É desse tipo de dependência, mais especificamente de quem se aproveita, de forma abusiva, da dependência do outro, que trata este artigo. Ou seja, escrevo sobre o abusador, esse ser que se alimenta das carências alheias para nutrir as suas próprias, num ciclo vicioso e, muitas vezes, paranoico. Não trato de um abusador específico, notório, mas daquele que vive em mim, em você, em todos nós, porque todos nós precisamos e temos algum poder e, consequentemente, podemos ser abusadores.

Na psicologia analítica de C. G. Jung, o conceito de poder tem papel central.

Para ele, o contrário do amor não é o ódio, mas o próprio poder — e, aqui, é importante observar que Jung concebe o funcionamento psíquico como resultado da tensão, e da consequente busca pela harmonização, dos opostos: masculino e feminino, bem e mal, luz e sombra, amor e poder etc. Considerando que o amor se opõe ao poder, pode-se afirmar que a maior demonstração de amor é o perdão, palavra que vem do latim perdonare. Per, como prefixo, significa completo. Donare quer dizer doar.

Amar é doar-se por completo. O contrário do perdão, assim, é apoderar-se completamente. Amar-se a si mesmo, então, é doar a si próprio o seu máximo. Quando se é capaz disso, descobre-se o poder do amor. Se poder é ter, ao amar-me a mim mesmo, dou e recebo amor e, assim, tenho o que busco sem precisar receber do outro, certo? Ao menos parcialmente, sim, mas, em alguma medida, também não.

Sem dúvida, amor próprio é sinônimo de raízes fortes e a dinâmica descrita acima, embora bela, desejável e até realizável, é uma autossuficiência que nem os vegetais alcançam. Por mais que pareça um atributo de enorme autonomia, a fotossíntese — processo pelo qual a energia das plantas é produzida — pressupõe a existência de uma luz que vem de fora. Nossa psique também precisa da “luz” (e do outro) para se projetar e crescer. Por mais agradável que seja pensar numa vida de puro autoamor, é na relação com o outro que surge a oportunidade de nos descobrirmos e aprendermos a nos amar. Só os relacionamentos podem provar o nosso amor próprio, além de, inexoravelmente, também mostrar como lidamos com o (nosso) poder.

Uma das frases mais propaladas de Jung nas redes sociais é: “Onde o amor impera, não há desejo de poder; e onde o poder predomina, há falta de amor. Um é a sombra do outro”.

Se pensarmos que nos constituímos de opostos e que harmonizá-los, diariamente, é o mais imperativo dos nossos deveres na vida, é impossível sermos só uma das faces. Não dá para ser “só amor” nem “só poder” sem pagar um alto preço psicológico. Se estamos falando de princípios antagônicos e complementares, negar uma das faces do par é negar a outra.

O camarada que apenas busca o poder, por mais poderoso que se torne, nunca se sentirá satisfeito, porque, sem amor, o poder é estéril e, nesse caso, o amor se revela, às avessas. Ou seja, na falta, numa incorrigível carência que torna todo o poder alcançado sempre insuficiente. Já quem nega o poder e tende a julgar-se fruto exclusivo do amor, negligenciando seu anseio de poder, pode se tornar uma presa fácil de abusadores, ou seja, o poder inconsciente e relegado à sombra da consciência pode se revelar projetado no mundo, tornando-o vítima do desejo de poder que não quer aceitar em si mesmo.

O contrário também é possível: cego pela ideia de ser a personificação da amabilidade, o sujeito, ao colher os frutos de sua “autodoação”, pode se descobrir altamente amado, respeitado, idolatrado e poderoso, mas, ao mesmo tempo, estará vulnerável aos pruridos do poder.

O que dizer sobre líderes espirituais como João de Deus e Yadunath Maharaj. Este último inspirou a história do filme “O rei do povo”, “em cartaz” na Netflix. Ambos os exemplos são de abusadores vistos como representantes do amor divino, possivelmente, o maior poder a que se possa aspirar.

Contudo, também pode acontecer algo menos trágico e talvez não tão incomum para olhos otimistas: indivíduos desejosos de poder, mas que, por uma felicidade do destino, são malsucedidos em sua missão mesquinha e depois de inúmeras frustrações em suas tarefas ambiciosas — sem conseguir disfarçar a dor da decepção —, são consolados e compensados pelo amoroso acolhimento de almas bondosas e desavisadas, que acabam, muitas vezes, inconscientemente, por despertar esses frágeis gananciosos para o valor curativo de suas vulnerabilidades, valor que apenas o amor é capaz de identificar.

O fracasso, ao inspirar um olhar com consideração para a nossa sombra, para o nosso homem inferior, para a nossa criança ferida, para o covarde que nos protege da vergonha, mas nos envergonha pelo medo inconfessável que sente, pode ser o nosso maior sucesso.

Isso porque, sem a consciência de todas essas facetas “menores” que nos constituem, seremos desumanizados, e desumano é um adjetivo bastante apropriado para um abusador.

Quando se analisa a biografia de abusadores sexuais, não é incomum descobrirmos que eles próprios foram vítimas de abuso, geralmente, na infância, quando, muitas vezes, carece-se de palavras para nomear alegrias, que dirá tristezas, traumas e culpas. Lembro-me de uma criança que nutria um sincero e vivo medo de lobisomens. Lembro-me de vê-la encontrar, depois de passar um tempo pensando em como se livrar dessa ameaça imaginária, uma resposta contrafóbica poderosa: “eu sou um lobisomem”, dizia.

Depois de um bom tempo negando a monstruosa e persecutória culpa de um prazer pecaminoso, doloroso, vergonhoso e capaz de deformar e obliterar toda e qualquer memória, o adulto vítima de abuso na infância tem chances nada desprezíveis de dar a mesma resposta contrafóbica. Tornando-se incapaz de olhar o abusador que vive em si, tamanha a dor que inspira em sua inaceitável contraparte frágil, há uma nada desprezível possibilidade de essa pessoa se deixar engolir pela sombra e virar o monstro que temia.

A sombra na psicologia analítica

Antes de seguirmos, é importante explicar que a sombra na psicologia analítica é o termo que designa a força de “aspectos ocultos reprimidos e negativos [ou nefandos]” da personalidade projetada pela mente consciente do indivíduo (Cf. JUNG, 2008, p. 152-4). Assim, carrega complexos afetivos e imagens arquetípicas que são a riqueza indispensável à toda transformação e aquisição de autoconhecimento (Cf. JUNG, 2011a, p. 19).

Em outras palavras, a sombra reúne os conteúdos psíquicos que carregamos, mas não os reconhecemos como parte do que nos constitui, projetando-os, por isso, nos outros e no mundo, como se fossem alheios a nós mesmos. Porém, pela necessidade imperativa de serem conscientizados, tais conteúdos sombrios não se satisfarão com a marginalidade a que os relega a consciência unilateral. Como a sombra é ameaçadora e está projetada no próximo, sob o pretexto da autodefesa, podemos ser, para o próximo, tão vis quanto supomos que ele será para nós.

Nas palavras de Jung:

O reconhecimento das sombras conduz à modéstia fundamental de que precisamos para admitir imperfeições. Esse reconhecimento e constatação conscientes devem sempre acompanhar as relações humanas. Estas não repousam sobre a diferenciação e a perfeição, pois apenas ressaltam as diferenças ou trazem à tona exatamente o oposto; ela se baseia sobretudo nas imperfeições, naquilo que é fraco, desamparado e necessita de ajuda e apoio. O que é perfeito não necessita do outro. Já o fraco se comporta diferentemente, buscando apoio no outro e, por isso, não se contrapõe ao parceiro nada que o coloque numa situação inferior ou mesmo que o humilhe.

(Jung, 2013, §579)

O abusador é, sobretudo, incapaz de reconhecer que não há nada mais corajoso e superior do que aceitar, compreender e acolher a própria inferioridade.

Sobre o valor psicológico do reconhecimento de nossas fragilidades e inferioridades, James Hillman (2010, p. 161) escreve: “Crescemos e vivemos de nossos pontos fracos. Assim, qualquer fantasia de cura que perca de vista esse sentido de inferioridade orgânica […] também perde […] o próprio sentido de alma”. É sempre importante entender “inferior” e “inferioridade” em termos relativos. Não se trata de um juízo de valor universal, mas daquilo que se encontra mais distante da consciência, embora seja tão “nosso” quanto o que é mais acessível “à luz” do ego. É nesse sentido que entra o termo sombra, cuja função é dar uma medida mais ampla dessa “criatura inferior” que vive em nós.

Podemos, contudo, ser mais específicos quanto a essa criatura, recorrendo ao conceito de complexo de inferioridade, que pode se manifestar em diferentes áreas da vida, a depender das experiências do indivíduo. Assim, é possível que um homem, em razão de suas vivência, sobretudo na infância e adolescência, passe a ver, na própria feminilidade, uma ameaça à sua masculinidade e, a partir dessa íntima desarmonia, estabeleça relações abusivas com as mulheres nas quais projeta seu lado feminino — em termos junguianos, a anima — sob o inconsciente pretexto de estar se defendendo.

Ao pensar na relação de superioridade e inferioridade, não é preciso ser muito sagaz para compreender que, num mundo em que predominam os valores patriarcais, os atributos masculinos tendem a ser vistos, ao menos socialmente, como superiores àqueles que, tradicionalmente, são associados ao feminino.

Nas palavras de Hillman:

“‘A psique compartilha traços tanto masculinos como femininos’, e da infância em diante identificamos não somente fraqueza e inferioridade com o feminino, mas também a ambivalência causada pela fraqueza”.

(2010, p. 164)

Porém, um indivíduo atento e sensível há de notar que essa relação é sempre relativa e circunstancial, o que significa dizer que, em diversos momentos, a energia feminina, a que os chineses chamavam yin, será mais apropriada e forte do que a yang (masculina). Atributos como intuição, criatividade, sabedoria, jogo de cintura (flexibilidade), amorosidade e acolhimento. são associados à energia feminina. Enquanto a masculina dialoga, por exemplo, com a ideia de lógica, força, agressividade, orgulho e inteligência. Não é incomum haver situações em que o jogo de cintura, a sabedoria e a amorosidade nos tornam mais fortes do que a inteligência, a agressividade e o orgulho.

É interessante pensar, então, como o relacionamento “amoroso”, em seu caráter de comunhão, expressa os dois princípios — amor e poder — que inspiraram esta reflexão sobre o abusador.

O poder, claramente, está mais associado ao masculino, ao patriarcado. Não é por acaso que as coisas que me pertencem são meu patrimônio, palavra cujo prefixo patri- quer dizer pai e monium, recebido, ou seja, “recebido do pai”. Já a ideia de doação por completo é socialmente consagrada, sobretudo, na figura materna. É o famoso: “nada se compara ao amor de mãe”. Quando se pensa em relacionamento e, mais precisamente em sexo, os dois princípios se combinam: há e sempre haverá, a um só tempo, poder e amor nos relacionamentos e, por conseguinte, no sexo e no que ele simboliza.

Contudo, não necessariamente o poder é prerrogativa do homem e o amor da mulher.

Os princípios masculino e feminino — e ambos têm luz e sombra — pulsam nos dois gêneros, assim como o abusador e o abusado, embora os casos de abusadores homens sejam muito mais notórios, o que nos leva a crer que sejam também a maioria. No entanto, nada impede que as mulheres também sejam abusadoras. Aliás, infelizmente, não são tão raras quanto gostaríamos que fossem histórias de mães que abusam dos próprios filhos e não “apenas” emocionalmente, mas também física e sexualmente.

Em síntese, a incapacidade de conciliar os opostos de que somos constituídos e de aceitar que, como escreveu Hillman (2010,  p.104), “existem coisas na psique que não são mais ‘minhas’ do que ‘animais na floresta […] ou pássaros voando no ar’” nos torna vulneráveis a essa “fauna” que precisa ser reconhecida e revelada numa perspectiva individual e metafórica. “Fauna” que demanda um sentido simbólico e não literal, por meio do qual sejamos capazes de ampliá-la e nos transmutar naquele que só nós, mais ninguém, podemos ser. Um trabalho íntimo, permanente e hercúleo de harmonização das antinomias universais — amor e poder, superior e inferior, luz e sombra e por aí vai — das quais é feita a nossa alma. Sem essa disposição, todos podemos nos tornar aquele ou aquilo que tememos.

Wagner H. P. Borges – Membro Analista em Formação pelo IJEP

Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP

Referências:

HILLMAN, James. Ficções que curam: psicoterapia e imaginação em Freud, Jung e Adler. Campinas: Verus, 2010.

JUNG, C. G. Aion — estudo sobre o simbolismo do si-mesmo, 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011a

_________. O homem e seus símbolos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

_________. Presente e futuro. 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

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