Envelhecer é um processo vital inerente ao viver. Vai do nascimento à morte, mas ganha maior visibilidade após os 40 anos. Basta darmos uma olhada rápida no espelho para percebermos as marcas deixadas pelo tempo em nosso corpo, este é um fato inexorável.
Além das mudanças deixadas no nosso corpo, o tempo também deixa marcas em nossa alma. Envelhecer é uma grande experiência que põe à prova a nossa caminhada existencial, que pode ser uma aventura ou um desastre a depender das escolhas que fazemos.
Cada um de nós tem o dever de descobrir a verdade e a riqueza do envelhecer, pois, se é um processo inerente à vida, então tem um sentido. A pergunta que surge é: Qual o sentido do envelhecer?
Jung considera que o processo vital de desenvolvimento humano é constituído por dois ciclos: o natural e o cultural.
O ciclo natural estende-se do nascimento até a meia-idade. É a fase heroica da expansão do ego, com lutas e enfrentamentos principalmente focados na adaptação ao mundo externo. A libido ou energia vital concentra-se principalmente no campo sexual e no profissional.
O padrão heroico – imagem ideal de realização – é o padrão arquetípico esperado do jovem.
Nesse processo de expansão e conquistas, criam-se as máscaras sociais, ou personas, com a finalidade de ter uma melhor adaptação e aceitação na sociedade.
A persona é um personagem criado pelo indivíduo para desempenhar a forma como deseja mostrar-se ao mundo, selecionando e medindo seus gestos, palavras e atitudes. Todo esse esforço demonstra a necessidade humana de acolhimento, aceitação e inclusão. Contudo, o sujeito neste movimento corre o risco de ficar aprisionado por essas máscaras e escravizado pelos valores impostos pela sociedade.
Quando ficamos identificados com o papel que desempenhamos, excluímos das nossas experiências partes essenciais da nossa totalidade. Jung ressalta que, “em benefício de uma imagem ideal, à qual o indivíduo aspira moldar-se, sacrifica-se muito da sua humanidade” (JUNG, 2015).
Após a meia-idade, inicia-se a fase cultural. O desenvolvimento físico começa a apresentar o declínio das funções orgânicas, aparecem rugas, flacidez e dores como lembretes constantes da passagem do tempo e da finitude humana.
Nessa fase ocorre uma inversão natural da energia psíquica, visando ao desenvolvimento interior e à conscientização das projeções externas, a fim de tornar-se fiel à expressão de sua totalidade. O indivíduo é convidado à introspecção, ao autoconhecimento, aos questionamentos dos antigos valores, à busca do sentido para a vida. Jung esclarece que “a causa fundamental de todas as dificuldades dessa fase de transição é uma mudança singular que se processa nas profundezas da alma” (JUNG, 2013a).
A meia-idade é o ponto de desequilíbrio, onde as certezas da juventude se foram e as incertezas da velhice se iniciam.
A finitude bate na porta e o que sentimos é medo. Vivencia-se um momento mágico e trágico. Surgem vários questionamentos…
Como deixar para trás a proteção e a aceitação social e buscar a individualidade?
E o que significa individualidade? Podemos entendê-la como a liberdade para ser quem realmente somos.
Mas como lidar com a liberdade depois de tantos anos acolhidos e envolvidos por um padrão social?
Jung descreve o conflito entre o padrão social que sacrifica a individualidade e as centelhas aparentemente apagadas que fazem renascer a esperança:
“Só se alcança o objetivo social com sacrifício da totalidade da personalidade. São muitos os aspectos da vida que poderiam ser igualmente vividos, mas jazem no depósito de velharias, em meio a lembranças cobertas de pó; muitas vezes, no entanto, são brasas que continuam acesas por baixo de cinzas amarelecidas” (JUNG, 2013b).
Principalmente próximo à meia-idade, ocorre a metanoia, momento em que surgem sentimentos ambíguos e conflitantes que representam um convite para mudança, a partir do abalo das certezas que até então nos amparavam. É um momento importante de reavaliação, um jogo de forças entre o papel social e a liberdade do indivíduo de ser quem realmente é, de captar o não vivido, o não realizado, e de tornar-se cada vez mais si-mesmo.
Romper barreiras e quebrar paradigmas não é fácil, pois implica abrir mão da segurança do que é conhecido para realizar um mergulho no desconhecido. Compreender as mudanças que ocorrem nesta fase é essencial para lidar com os conflitos e medos que nos atravessam neste novo ciclo.
As escolhas precisam ser feitas e a dor pelas perdas é inerente à vida. Resta-nos a certeza de que, quando acolhemos os conflitos, ocorrem mudanças em nosso mundo interior, e, com esse novo arranjo, surgirão possibilidades que compensarão a travessia angustiante.
Surge o desespero de ser e de não ser, que ocorre pelo paradoxo entre o papel vivido até então e a vontade de se assumir quem se é potencialmente.
Na visão de Jung, aquele que busca individuar-se não tem a mínima pretensão de se tornar perfeito. Ele visa a completar-se, o que é muito diferente. Para completar-se, terá de aceitar o fardo de conviver conscientemente com tendências opostas, ou seja, reconhecer que sombra e luz convivem juntas em nós. Essa atitude corajosa nos dá a possibilidade de acessar o reino da nossa interioridade profunda.
O filósofo Kierkegaard considera o envelhecer como a dimensão religiosa da existência e coloca, nesta fase da vida, como objetivo para a alma, desenvolver a experiência originária da fé.
Interpreta a fé como um salto no absurdo, onde nada mais faz sentido, a não ser a verdade de cada um. A fé proposta pela vivência está acima da moral imposta pela sociedade, onde o indivíduo se orienta pela norma geral.
Na fé, há o movimento de dobrar-se sob essa moral, mas também ir além dela. A fé não se baseia mais em regras estabelecidas, mas, sim, na voz do coração, na voz do íntimo.
A proposta é passarmos do sujeito moral, ainda preso às normas sociais, para a descoberta mais plena possível do sentido existencial.
As regras desse sentido são dadas pelo self e pelas relações que vamos estabelecendo com as pessoas, porém, não mais no modo teatral da performance, e sim no modo da descoberta de si mesmo e do outro ao longo da imensa teia de relações que a vida nos faz tecer.
Para Monteiro, “esse processo só é acessado à consciência pelo dia a dia, pelo viver e pelo conviver. Leva um longo tempo de maturação. No envelhecer, estamos diante das mais radicais experiências. Cada vez mais o exterior tornar-se relativo, e o interior remete à voz do íntimo” (MONTEIRO, 2008).
As vicissitudes impostas pelo envelhecimento, como as limitações do corpo, as doenças, a morte de pessoas queridas, o afastamento das atividades sociais e laborais, podem nos levar à reflexão sobre a finitude do ser humano, fato que é essencial para o enfrentamento deste novo ciclo, ou seja, o tão necessário burilamento da alma.
Quando o indivíduo não consegue realizar essa ressignificação do sentido para a vida, acaba adoecendo, pois se coloca contra o seu estado natural de desenvolvimento.
Porém, quando o indivíduo se abre para esta nova experiência, a sua condição de vida o coloca diante de uma renovada perspectiva. Tem o seu chamado interior ativado, visto que, nesta fase, a voz do íntimo está menos sujeita aos ruídos e exigências impostas pelas ocupações externas, antes tidas como “urgentes”.
Há pouco houve a divulgação nos meios de comunicação sobre um ator famoso que demonstrou desejo de recorrer ao suicídio assistido em um país onde há esta previsão legal. Em uma das suas entrevistas ele relata ser a favor da pessoa ter o direito de partir sem precisar sentir dor e passar por hospitais, ou seja, se submeter às vicissitudes que na maioria das vezes são inexoráveis ao envelhecimento.
Será que diante deste posicionamento ele compreendeu a importância desta fase para o burilamento da alma e a preparação para o novo ciclo da vida?
Na visão de Jung, o indivíduo sofre influência do mundo onde vive e das situações que acontecem à sua vida, e tudo o que acontece pode ser usado a favor do seu desenvolvimento. Diante desta perspectiva, como seria promover o diálogo com a alma, a fim de compreender qual o sentido de ela passar por determinadas vicissitudes? O que o indivíduo teria para aprender com essas experiências? Para que é necessário passar por tudo isso?
Jung enfatiza que a segunda metade da vida é o momento crucial da fé, ou seja, do religare: conexão do consciente ao inconsciente. Um apelo íntimo à viagem ao mundo interior.
Nesse momento é necessária uma abertura para possibilidades ainda não exploradas, o que exige a aceitação das condições remetidas à fase noturna da vida, ou melhor, ao envelhecer. Isso não pode acontecer sem uma profunda transformação, uma conversão ao valor decisivo, à descoberta do significado mais amplo do si-mesmo.
“Compreender este processo resulta numa nova consciência, a de que o envelhecimento não significa perda de capacidades, mas sim transformação, metamorfose de forças” (GARDIN, 2017).
Os valores pessoais deveriam agora dar lugar a valores mais humanitários, e à preocupação de se concentrar na família universal e não apenas na individual.
É necessário disponibilizar sua sabedoria para o mundo e sentir a maravilha que é colocar seu patrimônio interior a serviço do desenvolvimento da humanidade.
Infelizmente, no contexto contemporâneo, esse envelhecer rico e pleno de significado é cada vez mais difícil, porém não podemos esquecer e perder de referência a certeza de que existe em nosso íntimo algo de sublime que pode ser expresso na medida em que o indivíduo se entrega ao mundo interior.
Caroline Santos Costa – Analista em Formação pelo IJEP
Analista didata – Waldemar Magaldi
REFERÊNCIAS
JUNG, Carl Gustav. Aion– estudo sobre o simbolismo do si-mesmo. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
_____ A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b
_____ O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
MONTEIRO, D.M.R.(Org.). Metanoia e meia-idade: trevas e luz. São Paulo: Paulus,2008.
GARDINI, Nilo de (2017). Envelhecimento: combatê-lo ou compreendê-lo? O climatério como exemplo. In: Arte Medica Ampliada. Disponível em: http://abmanacional.com.br/wp-content/uploads/2017/07/37-1-Envelhecimento.pdf. Acesso em: 02 de jun. 2021.