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O Mítico Círculo de Eranos (parte 1) (Eranoskreis)

PARTE 1 – ORIGEM E LONGEVIDADE

            Um pouco ao acaso, me deparei com uma menção ao Círculo de Eranos (Eranoskreis) em um artigo de J. Hillman (artigo este intitulado “Abandonando a Criança”, que compõe a obra “Estudos de Psicologia Arquetípica” – 1981, do mesmo autor). Ao final, Hillman menciona que o artigo fora apresentado no Congresso Eranos de 1971, fazendo parte do Anuário 40, e essa breve alusão ao tempo e à longevidade desse evento foi suficiente para produzir uma “faísca divina” de curiosidade. Sendo assim, como afirmam os gnósticos, já que estamos falando do Círculo de Eranos, agora, ela só poderá ser liberada, a faísca, através da gnose, isto é, do conhecimento profundo dessa mesma faísca. Não sei se chegarei a tanto, mas talvez tenha chegado o momento de conhecer um pouco mais sobre o Círculo.

            Vale ressaltar que o presente artigo e o que será escrito na sequência fazem parte de um momento inicial dessa jornada de conhecimento, daí acredito que, ao serem publicados, ambos apresentarão um tratamento muito mais intuitivo e cheio de entusiasmo do que propriamente rico de conteúdo teórico para os já iniciados no tema. Que sirvam, pois, de faíscas divinas para que outros não-iniciados como eu sintam também curiosidade e resolvam pesquisar mais sobre o Círculo de Eranos, um dos eventos coletivos de caráter interdisciplinar mais instigantes e longevos, com 55 encontros durante seu ciclo tradicional (1933-1988), retomando, após breve interrupção,  em 1990 com a inauguração de um novo ciclo.

            Já tinha ouvido falar de modo muito en passant – como no movimento de xadrez, sem ocupar espaço na minha mente – dos míticos encontros do Círculo de Eranos, que aconteciam todo verão a partir do ano de 1933 às margens do Lago Maggiore, em Ascona, na Suíça, e dos quais Jung participou ativamente proferindo quatorze conferências, mas não podia imaginar a importância que esses eventos tiveram na construção de uma nova tipologia de estudo, propondo uma abordagem verdadeiramente interdisciplinar e antecipando uma tendência que seria mais observável a partir da segunda metade do século XX.

            Apesar de reconhecidamente riquíssimas, o Círculo de Eranos vai além de suas contribuições científicas, porque, desde o início, esses encontros se revestiram de um mistério, de uma simbologia e de uma mitologia toda própria, presentes no nome do evento e da casa, no local onde se realizava, na anfitriã que os promovia, nos convidados ilustres que advinham das mais diversas áreas do saber, na definição dos temas, na ordem das conferências e na contribuição singular de cada um dos presentes, tornando o “banquete” de ideias algo da mais alta finesse gastronômica em termos intelectuais.

            Não pense o leitor que seja superficial relacionar o Círculo de Eranos à alta gastronomia, porque a palavra grega Eranos significa, justamente, “banquete frugal”, onde cada participante leva um prato ou uma bebida para partilhar. O significado original do termo, que aparece pela primeira vez no mito grego da Odisseia de Homero, faz referência a um núcleo espiritual, onde cada participante tem a liberdade e espontaneidade de expressão por meio da arte e de textos que retratem a es­sência do ser humano, numa espécie de “dança de mentes criativas” (ERANOS FOUNDATION, n.d.).

            Nascido como um espaço aberto e como local de encontro entre Ocidente e Oriente, o Círculo de Eranos é fundado por Olga Fröebe-Kap­teyn, tendo Rudolf Otto como padrinho e Carl G. Jung como spiritus rector. O intuito era promover um diálogo interdisciplinar e intercultural, algo muito interessante para a época, visto que, justamente no ano de 1933, explodem na Europa os movimentos de separação racial, de ódio e de limpeza étnica. Diante desse eclipse da razão, e de um Ocidente que ressuscitava velhos mitos de poder e de expansão territorial, a experiência de Eranos revelou-se uma resistência simbólica, requerendo de todos os participantes uma capacidade empática que tornou possível, além da troca de saberes, a instituição de um núcleo comum de pesquisa e interesse sobre a essência do ser humano (BARONE – 1995).

            Olga Fröebe-Kap­teyn (1881-1962), estudiosa holandesa que possuía uma invulgar curiosidade em relação aos temas espirituais e teosóficos do Ocidente e do Oriente, hoje considerada por muitos historiadores como uma das maiores promotoras da cultura e da ciência de seu tempo, era a elegante anfitriã que recebia em sua casa um seleto grupo de pesquisadores das mais diversas áreas, como ciência da religião, antropologia, sociologia, psicologia, história da religião, mitologia, fenomenologia, biologia, física, história da arte, dentre outras. Mesmo antes do início dos encontros do Círculo, já se reuniam em sua casa poetas, pintores e intelectuais que se dedicavam ao estudo mais profundo de suas especialidades.

            A figura de Fröebe-Kap­teyn aparece em minha mente revestida de muito mistério e fascínio, mas também de muita força, pois se trata de uma viúva cujo marido morreu em um acidente aéreo em setembro de 1915, quatro meses após o nascimento de suas filhas gêmeas, Ingeborg e Bettina, sendo que a primeira, portadora de grave retardamento mental, foi vítima do programa de eugenismo e eutanásia da Alemanha nazista. Essa incansável ativista se revela também uma produtiva pintora, criando 80 obras entre 1926 e 1934.

            Em 1920, Fröebe-Kap­teyn recebe a casa de Ascona como herança do pai e batiza o local com o nome de Casa Gabriela. Começa a projetar um espaço de encontro, uma sala de conferências, onde pudesse reunir as mentes mais proeminentes de sua época. Como boa promotora que era, foi capaz de atrair para seus encontros nomes como Gilbert Durand, Carl Gustav Jung, Richard Wilhelm, Károly Kerényi, D. T. Suzuki, Heinrich Zimmer, Mircea Eliade, Erich Neumann, Henry Corbin, Adolf Portmann, Joseph Campbell, Max Knoll, dentre dezenas de outros.

            O primeiro encontro do Círculo aconteceu em 1933, fatídico ano em que Hitler foi nomeado chanceler na Alemanha, e continuou a ser organizado anualmente até 1988, mesmo sem a presença física da anfitriã a partir de 1962, ano de seu falecimento. Foram 55 anos de ininterruptos encontros às margens do Lago Maggiore, conferindo ao Círculo de Eranos uma longevidade impressionante, o que contribui para aumentar seu aspecto mítico e sua aura de mistério e simbolismo. Apesar dos encontros anuais terem continuado a acontecer de 1990 até os dias de hoje, sob a organização da Fundação Eranos e da Associação “Amici di Eranos”, não se comparam, penso eu, em curiosidade e caráter de ineditismo aos encontros do Círculo de Eranos Tradicional (1933-1988).

            O formato dos encontros correspondia ao princípio interdisciplinar, já que cada um dos conferencistas apresentava sua visão sobre um tema previamente proposto, sendo que a mesma deveria refletir a essência espiritual de Eranos, isto é, a orientação primordial dos encontros definida por Froebe-Kapteyn, Wilhelm e Jung. Talvez aqui se faça necessário um retorno no tempo para analisarmos a pré-história de Eranos e para resgatarmos como e quando os fundadores se conheceram e chegaram à formulação dos princípios básicos dos encontros.

            Froebe-Kapteyn, no primeiro decênio do século XX, interna-se no sanatório de Monte Verità, em Ascona, para uma curta estadia. Em 1920, resolve se fixar na cidade. O Monte Verità era um dos centros europeus que promoviam diversos movimentos reformadores, os chamados “Lebens­reformbewegungen” (movimentos de reforma da vida), e estava ligado aos grupos esotéricos de Munique. Froebe-Kapteyn manteve estreito contato com ambos os centros, de Ascona e de Munique.

            A ânsia pela sabedoria orien­tal estava em voga nos vários círculos dos movimentos reformadores. Entre 1920 e 1930, outro centro reformador intitulado “Schule der Weisheit” – a Escola da Sabedoria de Hermann Keyserling (1880-1946) organizou, em Darmstadt, dez seminários onde, então, se en­contraram Froebe-Kapteyn, Jung e Wilhelm. Muitos dos conferen­cistas da “Schule der Weisheit”, depois do seu desaparecimento, frequenta­ram, a partir de 1933, as conferências de Eranos.

            Nos vários depoimentos dos participantes do Círculo, podemos observar referências ao espírito de liberdade e espontaneidade que reinava durante os oito dias de evento. Na organização do programa, na ordem das conferências ou nas atividades sociais propostas, Froebe-Kapteyn se empenhava em conferir ao encontro um ar de ineditismo e criatividade, propondo atividades complementares de caráter interdisciplinar que aconteciam também no jardim sempre repleto de pessoas de “todos os lugares da Terra” e animado por intensos e estimulantes diálogos realizados normalmente em torno do tema proposto. (CORBIN, 1963).

            As conferências aconteciam sempre na segunda quinzena de agosto, sendo que ali, na Casa Gabriela, naquele “lugar de encontro entre o Ocidente e o Oriente”, Jung, proferiu, em 1933, a conferência intitulada “O empirismo do processo de Individuação”, sob o tema Yoga e Meditação no Oriente e no Ocidente, seguida, em 1934, pela conferência “Sobre os arquétipos do Incons­ciente coletivo”, sob o tema Simbolismo Oriental e Ocidental e a Orientação da Alma, e de outra, datada de 1948, “Sobre o Self”, dentro do tema Sobre o Humano, onde podemos ver claramente refletidos os contornos espirituais de Eranos que o próprio Jung ajudou a delinear. Isto para citar apenas três das catorze conferências proferidas por ele ao longo dos anos em que participou.

            A importância de Jung como Spiritus Rector dos encontros é observada também na sugestão que este fez à anfitriã de que um gênio desconhecido parecia animar o lugar. Daí terem decidido instalar, no terraço da Casa Gabriela, uma espécie de pequeno al­tar de pedra contendo uma escultura denominada Genius Loci Ignoto, de autoria do escultor Paul Speck, sim­bolizando o Espírito de Eranos, ou seja, a força real e criativa que animava o “banquete”.

            Convidados pelo Genius Loci Ignoto a uma reflexão interdisciplinar, muitos acadêmicos discutiram e amadureceram ali conceitos que vieram a fazer parte dos fundamentos de suas obras. Conceitos como Arquétipo, Numinoso, Mitologema e Imaginal (Mundus Imaginalis), respectivamente, foram desenvolvidos por Jung, Otto, Kerényi e Corbin em muitos dos encontros. Mesmo não tendo proferido conferências no Círculo de Eranos, a presença de Rudolf Otto e de seu conceito “Numinoso” era mencionada e fortalecida pelas referências que se fazia a ambos nas apresentações dos outros participantes. Falaremos mais especificamente na segunda parte desse artigo sobre como esses autores se influenciaram mutuamente no desenvolvimento desses conceitos em suas obras durante os encontros do Círculo de Eranos.

            Através da diversidade dos saberes filosófico, antropoló­gico, psicológico, biológico, histórico­-religioso e teológico, os conferencistas de Eranos tentavam contrastar com seus conceitos, o materialismo positivista e o racionalismo cartesia­no da modernidade, voltando-se para a tradição român­tica e os seus valores de “verdade” do mito, do politeísmo da imaginação e da arte, da pluralidade da psique, e, como diria DURAND (1975), da essência da “alma tigrada”. Nesse sentido, podemos afirmar com TILO SCHABERT (2004), que o “Círculo de Eranos” representa um movimento multicultural de revitalização da he­rança espiritual eclipsada pela moder­nidade, visando, enfim, novos olhares para desvelar a “alma do mundo”.

            O Genio Loci Ignoto certamente inspirou também os 57 anuários produzidos pelo Círculo de Eranos, compreendendo o período de 1933 a 1988, tendo havido duas publicações extras.  Os Eranos-Jahrbürcher atestam a quantidade e qualidade das produções científicas promovidas por esses encontros. Contendo preciosas contribuições de pensadores das mais diversas áreas, eles também confirmam o espírito de Eranos, isto é, seu tom aberto à interdisciplinaridade e à inovação nas relações entre os saberes da época e se revelam muito à frente de seu tempo. Uma análise atenta de seu conteúdo poderá oferecer material inédito para uma nova reflexão cultural do século XX.

Isa Fernanda Vianna Carvalho

Membro Analista em Formação

Agosto de 2018

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Referências Bibliográficas:

BARONE, E. Eranos tagungen. Dal mito alla filosofia? – Filosofia e Teolo­gica, v. 8, n. 1, p. 149-165, 1995.

CORBIN, H. Mundus imaginalis or the imaginary and the imaginal. Zürich/New York: Spring, 1972.

_______.Eranos. Eranos­-Jahrbuch, XXXI, 1963, p. 9-12. [Cor­respondente à sessão realizada em 1962].

DURAND, G. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1988.

_______. As estruturas antropológicas do imaginário. Ed. Presença, Lisboa, 1997/2007.

_______. O imaginário.

_______. LÉthique du pluralisme et le problème de la cohérence. Era­nos-Jahrbuch, n. 44, p. 267-343, 1975.

ERANOS FOUNDATION. Disponível em http://www.eranos.org/content/html/start_english.html. Acesso em 16.06.18

JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Ed. Vozes, Petrópolis, 2002.

SCHABERT, T. The Eranos Experience. In: BARONE, E. Eranos tagungen. Dal mito alla filosofia? p. 149-165, 1995.


 Rudolf Otto, padrinho do Círculo de Eranos e um de seus idealizadores, nunca chegará a proferir uma conferência no evento, porque, além de já estar aposentado em 1929, sofria de profunda depressão, de acordo com alguns historiadores. Em 1936, cai de uma torre de mais de 20 metros e vem a falecer de pneumonia em 1937.

Isa Carvalho – 16/06/2019

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