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Omulu, nosso curador-ferido afro-brasileiro

OMULU, NOSSO CURADOR-FERIDO AFRO-BRASILEIRO Psicologia Junguiana

Este artigo pretende apresentar o arquétipo do curador ferido com uma cara mais brasileira. Ou afro-brasileira. Pretende buscar na cultura religiosa do nosso povo um mito que represente o potencial curador presente em cada doente, assim como a ferida presente em cada curador. Para tanto escolhi dois mitos sobre Omulu, dentre os muitos recolhidos por Reginaldo Prandi sobre este orixá do Candomblé.

Obalúayê ou Omolu (ou Omulu) são os nomes dados ao orixá Sànponná, (ou Xapanã ou Sapatá), cujo nome é perigoso de ser pronunciado. (VERGER, 2018). Na mitologia Iorubá é o Orixá senhor da peste, da varíola, e das doenças contagiosas, conhecedor dos seus segredos e também da sua cura. É ao mesmo tempo adorado e temido, pois, por extensão da doença, acaba sendo também o Orixá da Morte. É tido como o médico dos pobres, e é a quem recorrem os praticantes da religião em casos de suas doenças  próprias ou de familiares e amigos.

O primeiro mito escolhido é intitulado “Omulu ganha pérolas de Iemanjá”:

Omulu foi salvo por Iemanjá quando sua mãe, Nanã Burucu, ao vê-lo doente, coberto de chagas, purulento, abandonou-o numa praia. Iemanjá o recolheu e o lavou com água do mar, o que secou suas feridas. Omulu tornou-se um homem vigoroso, mas ainda guardava as cicatrizes da varíola. Iemanjá confeccionou para ele uma roupa feita de ráfia para esconder as marcas da doença. Ele era um homem poderoso. Andava pelas aldeias, deixando um rastro ora de cura, ora de saúde, ora de doença. Mas continuava sendo um homem pobre. Iemanjá não se conformava com a pobreza do filho adotivo. Ela pensou: “Se eu dei a ele a cura, a saúde, não posso deixar que seja sempre um homem pobre”. Ficou imaginando quais riquezas poderia dar a ele […] Iemanjá resolveu então ver suas joias. Tinha algumas, mas enfeitava-se mesmo era de algas. Mas Iemanjá tinha uma grande riqueza e essa riqueza eram as pérolas, que as ostras fabricavam para ela. […] chamou Omulu e lhe disse “De hoje em diante, és tu quem cuidas das pérolas do mar. Serás assim chamado de Jeholu, o Senhor das pérolas”. Por isso as pérolas pertencem a Omulu. Por baixo de sua roupa de ráfia, enfeitando seu corpo marcado por chagas, Omulu ostenta coares e mais colares de perola. (PRANDI, 2001, p. 215)

O segundo mito escolhido é intitulado “Omulu cura todos da peste e é chamado Obaluaê”:

 Quando Omulu era um menino de uns doze anos saiu de casa e foi para o mundo fazer a vida. De cidade em cidade, de vila em vila, ele ia oferecendo seus serviços, procurando emprego. Mas Omulu não conseguia nada. Ninguém lhe dava o que fazer, ninguém o empregava. E ele teve que pedir esmola, mas ao menino ninguém dava nada, nem do que comer, nem do que beber. Tinha um cachorro que o acompanhava e só. Omulu e seu cachorro retiraram-se no mato e foram viver com as cobras. Omulu comia o que a mata dava: frutas, folhas, raízes. Mas os espinhos da floresta feriam o menino. As picadas de mosquito cobriam-lhe o corpo. Omulu ficou coberto de chagas. Só o cachorro  confortava Omulu, lambendo-lhe as feridas. Um dia quando dormia, Omulu escutou uma voz que dizia: “Estás pronto. Levanta e vai cuidar do  povo”. Omulu viu que todas as feridas estavam cicatrizadas. Não tinha dores  nem febre. Obaluaê juntou as cabacinhas, os atós, onde guardava água e remédios que aprendera a usar com a floresta, agradeceu a Olorum e partiu. Naquele tempo uma peste infestava a Terra. Por todo lado estava morrendo gente. Todas as aldeias enterravam seus mortos. Os pais de Omulu foram ao babalaô e ele disse que Omulu estava vivo e que traria a cura para a peste. Todo lugar aonde chegava, a fama precedia Omulu. Todos esperavam-no com  festa, pois ele curava. Os que antes lhe negavam até mesmo agua de beber agora imploravam por cura. Ele curava a todos e afastava a peste.[…]Quando chegou em casa, Omulu curou seus pais e todos estavam felizes. Todos cantavam e louvavam o curandeiro e todos o chamavam de Obaluaê, todos davam vivas ao Senhor da Terra, Obaluaê . (PRANDI,  2001, p. 204)

Antes de abordarmos o arquétipo do curador-ferido, antes algumas palavras sobre os arquétipos propriamente ditos.

Arquétipos são potencialidades inatas de comportamento. O conceito de arquétipo leva em consideração a existência de uma base psíquica comum a toda humanidade, o que permite compreender porque em culturas diferentes, em épocas diferentes e regiões geográficas distantes, surgem temas muito semelhantes, que aparecem nos contos de fadas, nos mitos, nos ritos das religiões, nas artes, na filosofia e em todas as expressões que derivem em algum nível do inconsciente (Cf. SILVEIRA, 1981, p. 78).

De acordo com Silveira (1981, p. 77) “arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas instintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma”.

Arquétipos são, portanto, formas sem conteúdo, semelhante ao sistema axial de um cristal. É vazio e formal em si, uma possibilidade dada a priori da forma da sua representação. A imagem primordial herdada só adquire conteúdo à medida que é preenchida com o material da experiência consciente. (Cf. JUNG, 2014, p. 86-87). Tem um caráter numinoso, ou seja, espiritual, mágico e arrebatador.

 Segundo Guggenbühl-Craig existe o arquétipo do terapeuta-paciente que se constela sempre que uma pessoa adoece. Ativa-se assim o médico interior como condição sine qua non para a cura. “As feridas não se fecham nem as doenças se vão sem a ação curativa do terapeuta interior”(GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 85). O médico externo não será suficiente sem o auxílio do terapeuta interior.

E dentro do médico constela-se o arquétipo do curador-ferido, pois existe um paciente dentro de cada médico. A temática do terapeuta sensível ao sofrimento do paciente se faz aqui presente pelo motivo de o terapeuta/médico também ter a sua ferida. E ser conhecedor da sua ferida é de fundamental importância.

Jung ressalta que “cada tratamento complicado representa um processo dialético individual, do qual o medico participa tanto quanto o paciente” (JUNG, 2013, p. 132), onde o médico deve saber de si mesmo tanto quanto espera de seus pacientes. Estes casos ressaltam a humanidade tanto do médico quanto do paciente.

A palavra humildade torna-se um aprendizado vivo, na medida em que o terapeuta destitui-se do poder e está presente na relação apenas como um acompanhante daquele processo ainda que para tanto disponibilize todo o seu estudo, o seu preparo, a sua vocação.

Nos mitos apresentados Omulu sofre da ferida do abandono, materno como vemos contado no mito, e paterno nas linhas não escritas. Sofre das chagas, da doença e do preconceito. É acolhido por Iemanjá, a Orixá dos mares, das águas profundas do inconsciente, que o lava em suas águas para curar-lhe as feridas. A Grande Mãe arquetípica, que o acolhe, lhe cura as feridas e lhe presenteia com pérolas.

Atentemos para o fato de que pérolas são formadas a partir de um invasor na ostra, como um grão de areia. Como uma resposta de defesa, a ostra recobre este invasor com madrepérolas para se proteger. Isto forma a pérola, a única pedra preciosa de origem biológica. Com elas são fabricadas jóias valiosíssimas. Iemanjá o presenteia com uma preciosidade, produzida como defesa a um sofrimento, a uma ferida.

Omulu, embora já estivesse curado de suas chagas, continuava sendo um homem pobre, até que recebe, do princípio feminino, as pérolas que simbolizam justamente a doença e o sofrimento transformados em joia.

No segundo mito, ainda muito jovem, Omulu não é ajudado por ninguém. A vida não anda, os caminhos não acontecem. É discriminado e mais uma vez, abandonado, desta vez pela sociedade. É obrigado a viver do que a mãe terra lhe oferece como alimentos e também sofrer das doenças que lhe surgem. Apenas um cão a lhe lamber as feridas.

Segundo Chevalier e Geerbrant (2021, p. 226) “a primeira função mítica do cão, universalmente atestada, é a de psicopompo” com a função de orientar a alma no sentido da sua trajetória.

 E lá fica Omulu, num profundo e doloroso processo de cura até estar pronto. Neste momento já não é mais um menino, e sim um homem. E então pode sair mundo afora exercendo o seu terapeuta, curando. Curando até mesmo seu pai e sua mãe, os complexos parentais, tão primitivos e enraizados na psique.

Omulu representa pois este arquétipo, daquele terapeuta que sim, apresenta cicatrizes. Não as exibe, posto que estão sob a palha, mas elas estão lá. Estão lá para lembra-lo das feridas e do sofrimento.

Cicatrizes não desaparecem. Frente a uma lesão, a pele tenta se reconstruir, mas nunca será a mesma. Restará ali uma marca para contar uma história. Marcada na pele, ou na consciência.

E de acordo com Jung, esta deve ser a postura do médico, conhecer-se, ocupar-se também do seu tratamento, pois “o paciente só pode obter a sua própria segurança interior através da segurança de sua relação com a pessoa humana do médico” (JUNG, 2013, p. 132). Pois o médico só poderá curar na medida da consciência seu próprio ferimento.

Selma de Fátima Silva Canoas – Analista em formação pelo IJEP.

Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata responsável

Bibliografia:

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 35. ed. Rio de Janeiro: José Olympio: 2021.

GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

ZACHARIAS, José Jorge de Morais. Ori axé: a dimensão arquetípica dos orixás. São Paulo: Vetor, 1998.

JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

______ Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no novo mundo. 1. ed. SalvadorFundação Pierre Verger, 2018.

Selma Canoas – 30/11/2021

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