Eu não sou daqui.
Isto, para muitos que me conhecem, não deve causar surpresa. No entanto, quando digo que moro no Brasil há quase três décadas, todos dizem: “Ah, você já é brasileiro”.
E, se de fato eu conheço quase todos os estados do Brasil e morei em várias de suas capitais, eu nunca fui me deitar com um beijo do gordo, nunca vi o show da Xuxa nem achei graças nos trapalhões. Vivi até jovem adulto na Europa, mais especificamente na França, e a outra metade da minha vida aqui, onde disseram que não existe pecado neste sul do Equador.
E essa dicotomia existencial sempre me deixou com dúvida. Falo e escrevo português e já aconteceu, em um restaurante em Paris, que o garçom ao ouvir meu pedido me respondeu em inglês por conta do meu sotaque ao falar em francês.
Teria então, já me metamorfoseado? Seria eu agora brasileiro?
Estava quase me convencendo disso ao assistir os jogos olímpicos, sempre torcendo pelos atletas brasileiros. E confesso ter ficado muito emocionado quando a Judoca Larissa Pimenta venceu na repescagem o direito de lutar e conquistar a medalha de bronze.
E isso durou até a final do judô por equipes, onde a seleção da França enfrentava o poderoso time do Japão. Comecei a ficar estranhamento ansioso ao ver que o “país do sol nascente” estava liderando com certa facilidade. E permaneci numa sensação de intensa angústia até a luta dos pesos pesados quando ele entrou no tatami. Ele, o nosso herói, Teddy Riner.
E tudo mudou. Em mim e no estádio inteiro; foi uma explosão de alegria quando ele ganhou de um Ippon m agistral, (a pontuação máxima nessa luta), revirando no chão o atleta japonês de cem quilos como se fosse um bom e tradicional crepe francês. Ele, nesse momento, confirmou o que todos especulavam antes dos jogos: que ele era o maior de todos os tempos. E como todo bom e verdadeiro herói, devolveu ao time a gana de lutar. E, assim, levou o “nosso” time ao segundo ouro olímpico consecutivo,
Estava bem claro.
Esse momento de grande emoção revelou aquilo que estava na sombra, dormente, mas bem presente. Eu, sim, sou francês!
Essa anedota esportiva que poderia parecer corriqueira, me fez repensar dois conceitos muito importantes que a psicologia analítica nos apresenta e que aparecem em muitas conversas junguianas. E que, apesar de parecerem bem distantes uma da outra, iremos perceber, são indissociáveis quando procuramos encontrar seu sentido real.
A primeira é a importância da experiência.
Somos o que vivemos, o que experienciamos. Jung nos fala um pouco a respeito em dois livros aparentemente singelos, mas que vale a pena ler, “Sobre sentimentos e a sombra” e, especialmente, “Um mito moderno sobre as coisas vistas no céu”. Nessas obras, ele nos apresenta uma explicação daquilo que esta presente em toda sua obra, mas nunca de forma perfeitamente clara: o que é ter consciência.
A segunda é a importância dos Mitos e, em particular, o do Herói e de sua jornada.
Se pensarmos bem, enxergar atletas como heróis tem um sentido pois, na mitologia grega, os heróis eram figuras semidivinas, muitas vezes descendentes de deuses e humanos, que realizavam feitos extraordinários e enfrentavam grandes desafios. Dotados de força, coragem e inteligência, eles representavam virtudes e fraquezas humanas, como honra, bravura e orgulho.
A busca pela glória e o enfrentamento de dificuldades extremas faziam parte de seu destino, o que os tornavam exemplos de superação e resistência. Esses heróis, como Hércules e Aquiles, eram celebrados por suas façanhas que iam além das limitações humanas e, em alguns casos, até alcançavam um status quase divino após a morte.
A ideia de heroísmo na mitologia grega influenciou profundamente a cultura esportiva, especialmente nos Jogos Olímpicos. Assim como os heróis mitológicos, os atletas olímpicos são vistos como símbolos de excelência física e mental. Eles enfrentam desafios intensos e competem por honra e reconhecimento, exaltando virtudes como disciplina, dedicação e a busca constante pela superação de limites. Os Jogos Olímpicos antigos, realizados em homenagem a Zeus, também celebravam esse espírito de heroísmo, onde os atletas competiam em diversas modalidades, buscando se destacar e eternizar seu nome.
Assim, o conceito de “herói” migrou da mitologia para o esporte onde atletas olímpicos são celebrados como heróis modernos, inspirando milhões com sua força e determinação, mantendo viva a essência do heroísmo grego.
Existem muitas histórias de heróis e, de acordo com Joseph Campell, todas seguem a mesma narrativa que ele descreve em seu livro “O herói de mil faces” como baseada numa estrutura de 12 etapas, mas que é frequentemente simplificada em 6 passos que destacam os principais momentos da narrativa e ainda mantém o arco de transformação do herói.
- Chamado à Aventura: O herói começa em um mundo comum, mas recebe um chamado para entrar em uma aventura ou missão. Esse chamado pode vir de várias formas — uma crise, uma descoberta ou um encontro inesperado — que leva o herói a perceber que algo novo precisa ser feito.
- Recusa do Chamado: Inicialmente, o herói pode resistir ou recusar o chamado devido a medo, dúvida ou lealdades que o prendem ao seu mundo comum. Essa etapa mostra a relutância inicial, que torna o herói mais humano e vulnerável.
- Encontro com o Mentor: O herói encontra um mentor ou guia que lhe oferece apoio, sabedoria ou equipamentos para enfrentar a jornada. Esse mentor pode ser um personagem (como Gandalf para Frodo ou Yoda para Luke) ou uma experiência que lhe fornece coragem e direção.
- Travessia do Limiar: Aqui, o herói finalmente aceita o desafio e cruza o “limiar” para o mundo desconhecido. Ao fazer isso, ele entra em uma realidade nova e muitas vezes hostil, onde precisará enfrentar testes e adversários que colocam à prova suas habilidades e determinação.
- Provação ou Abismo: Esse é o ponto central da jornada, onde o herói enfrenta seu maior desafio ou “provação”. Ele pode encarar uma grande batalha, superar uma perda, ou confrontar algo em si mesmo. É uma experiência transformadora e, muitas vezes, simboliza uma “morte” e renascimento, onde ele abandona antigas crenças ou atitudes para evoluir.
- Retorno Transformado: O herói volta ao seu mundo original, mas agora transformado pelas experiências da jornada. Ele traz consigo um “elixir” ou conhecimento que beneficia a si mesmo e/ou sua comunidade. O retorno marca a conclusão da jornada e a integração do herói renovado ao seu ambiente original.
Mas, saber isso tudo serve para que?
Nenhum de nós é Apolo nem Hercules e, certamente, bem poucos são atletas de alto nível como o Teddy, a Larissa e outras figuras emblemáticas. Ademais, o esporte olímpico, para nós que formamos a plateia, fornece um divertimento carregado de emoções, que pode, como toda experiência afetiva quando entendida, trazer algo de relevante. Mas, depois da alegria da vitória dos nossos heróis, depois que toda a adrenalina caiu, o que permanece deste acontecimento? uma memória feliz, só?
Mircea Eliade ao nos explicar que os mitos são arquétipos transmitidos por meio de uma narrativa nos dá um início de caminho para entender por que eles continuam tão importantes aos olhos de muitos.
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: um ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.
ELIADE, Mircea, 2011, p.11
Mas a conceito principal aqui não é sobrenatural ou de cosmos, é que os arquétipos fazem parte de toda criação desde seu princípio.
E como Jung nos ensina, os arquétipos são imagem primordiais “sempre coletivas, no mínimo comum a todos os povos e tempos” e “provavelmente são comuns a todas as raças e épocas os principais motivos mitológicos” (JUNG, 2015, 764).
Em outras palavras, os arquétipos são as representações internas de todos os comportamentos, desejos, emoções, qualidade e defeitos, ideias e conceitos potenciais que nos definem como espécie humana e que mitos, contos e outras formas de narrativas e expressões artísticas retratam de forma transcultural e atemporal, e dentro delas, evidentemente a referência ao Herói.
E por mais que estejamos fartos de ler e ouvir que os mitos nos contam sobre quem nós somos, evidenciando nossa luz e, particularmente, nossas sombras, ainda me parece que ainda falta muito para que este grande ensinamento de Jung passe a ser realmente entendido e útil para todos. Se os mitos e contos de fadas deixam amostra nossas sombras, é para que nós, dentro e fora do consultório, possamos crescer e evoluir ao lembrar dos segredos que carregam.
E se todos os humanos, através do planeta, se conectam e são afetados por obras como “A guerra das estrelas”, “O senhor dos Anéis”, “Matrix”, “Rei Leão”, entre outros, é porque têm essa jornada do herói gravada em seu DNA. Portanto, cada um de nos, de alguma forma, tem algo de herói em si. Cada um pode pensar e agir como herói.
Parece papo de coach, mas se tentarmos aproximar a narrativa mitológica, simbólica, de conceitos psicológicos e científicos, percebemos que observações empíricas confirmam hoje o que Jung e Campbell nos contaram anos atras.
Durante doze anos, os psicólogos James O. Prochaska professor de psicologia da universidade de Rhode Island, medalha de honra de pesquisa clinica da sociedade do Câncer Norte americana e um dos cinco autores em psicologia mais citados (sociedade americana de psicologia), John Norcross, professor da universidade de Scranton e Carlo DiClemente, professor emérito da Universidade de Maryland e diretor do centro de pesquisa em vício em cigarro,“MDQuit tonbacco”, estudaram histórias de pessoas que conseguiram se livrar de vícios e padrões complexos de repetição e, dessa forma, transformar suas vidas. O estudo procurava entender se havia algo em comum, uma forma de receita que explicasse como essas transformações eram possíveis, muitas vezes, sem ajuda de psicoterapia.
Esse estudo levou Prochaska, Norcross e DiClemente a construir um modelo empírico, transteórico, de mudança de comportamento, que levou centros renomados de tratamento como a unidades de prevenção de câncer da Universidade de Duke, o centro de tratamento de vícios de Harvard, ambos nos estados unidos, e da universidade de Criton na Australia a reformular seus procedimentos clínicos para aplicar esse método considerado disruptivo por seus diretores.
Esse método deu origem a um livro chamado Changing for Good, no qual eles explicam que a mudança comportamental ocorre em estágios pelos quais a pessoa progride ou retrocede, dependendo de sua prontidão e motivação.
Nessa obra publicada em 1994, eles detalham que a mudança acontece em seis passos obrigatórios e sucessivos:
- Pré-contemplação: A pessoa ainda não reconhece o problema e não pensa em mudança. Ela pode estar em negação ou simplesmente não perceber as consequências de suas ações.
- Contemplação: A pessoa começa a reconhecer o problema e pensa em fazer mudanças, mas ainda sente ambivalência e incertezas.
- Preparação: A pessoa está pronta para mudar e começa a fazer planos concretos para isso, buscando estratégias ou ajuda profissional.
- Ação: Neste estágio, a pessoa implementa ativamente mudanças em seu comportamento, desenvolvendo novas habilidades e adotando novos hábitos.
- Manutenção: A pessoa foca em manter as mudanças e evitar recaídas, integrando o novo comportamento ao seu estilo de vida.
- Encerramento: O comportamento problemático já não representa uma ameaça significativa, e a nova mudança se tornou estável. Esse estágio nem sempre é alcançado em casos de comportamentos complexos, como vícios.
Fica fácil perceber que esse modelo de transformação pessoal, que eles mostraram ser inato e transcultural, ou em outras palavras, arquetípico, segue o processo da jornada do herói.
A pre-contemplação se assemelha ao chamado à aventura com suas hesitações e falta de certezas. A contemplação ainda não permite ir para a ação, tanto quanto a recusa do chamado mantém o herói imóvel. A preparação que precisa da ajuda de outros, do apoio de patrocinadores, nada mais é que um encontro com mentores. Fica também muito evidente que a etapa da ação é a travessia do limiar em que a aventura da transformação pode de fato começar.
Em seguida há de vir a prova, e todos que já acompanharam processos de desintoxicação podem testemunhar que a fase de manutenção é uma guerra de constantes provações que exigem do sujeito a maior capacidade de luta contra desejos ainda presentes. Na última fase, o herói volta para casa transformado tanto quanto o enceramento do processo de mudança permite vislumbrar uma vida nova, uma volta ao lugar de partida, mas com outras referências e novos hábitos.
Ambos os modelos apresentam uma estrutura cíclica de transformação.
A Jornada do Herói narra uma mudança épica e simbólica, com obstáculos externos e internos, enquanto o modelo de Changing for Good foca na mudança de comportamentos práticos e pessoais. Em ambos, o protagonista (o herói ou a pessoa) passa por resistência, apoio, transformação e retorno, simbolizando que a verdadeira mudança exige autoconhecimento, perseverança e apoio externo em momentos críticos.
Mas há um recado importante que os autores passam no livro. Muitas pessoas não conseguem transitar com êxito até o passo 4 e ficam presos, indo e vindo entre contemplação e preparação, as vezes iniciam uma ação, mas acabam recaindo para uma das fases anteriores.
Mostraram que um dos fatores importantes para o sucesso é a “tomada de consciência” que quase sempre passa por uma percepção física das consequências da não transformação. É o fumante que percebe que não consegue mais subir escadas, o alcoolista ou o viciado em jogo que perde sua família por teimosia em não querer aceitar o que todos lhe falam: é preciso mudar.
Jung, como sempre nos ajuda a entender isso melhor quando descreve o processo de conscientização:
Mas, quando o conteúdo inconsciente aparece, quer dizer, entra no campo da consciência, então, também já se dividiu em “quatro”. Ele só pode se tornar objeto de experiência, através das quatro funções básicas da consciência: é percebido como algo existente (sensação), reconhecido como tal e diferenciado do objeto da experiência (pensamento), revela-se aceitável, “agradável” ou não (sentimento), e, finalmente, pressente-se de onde vem e para onde vai (intuição).
JUNG, CG, 2013a, 774
Isso explica por que certos traumas não se curam, projetos não se concretizam e resoluções de fim de ano não vingam.
Somente adquirimos consciência plena de algo, quando o ocorrido foi processado por cada uma das funções psicológicas descritas por Jung. Ou, em outras palavras, somente quando mente, corpo, coração e espírito age juntos podemos pretender ter um entendimento real do assunto. Quando desenhamos, pintamos ou moldamos em barro sonhos, histórias e fantasias, quando registramos projetos e uma ideias à caneta no papel com a mão, quando dançamos sobre um tema, imagens, emoções e conceitos saiam do cérebro racional e se materializam através do movimento, permitindo que sintamos, tocamos, ouçamos com todas as dimensões do ser. Só assim ativamos a plena capacidade de entender.
Não basta querer, saber que é necessário para que uma mudança aconteça. Precisa sentir na pele, nos pulmões, nas batidas aceleradas do coração quando sobe a escada para, de fato, entender que é necessário parar de fumar. Tudo precisa de um preparo, de um planejamento, mas a idealização racional da transformação não é suficiente. Necessita dar asas a um desejo, permitir a percepção física da necessidade da transformação, que também precisa fazer sentido para que estejamos prontos para ação.
Tanto quanto a jornada do herói nos conta que cada um de nós tem potencial de transformar sua vida, os mitos, contos de fada e todas as formas de narrativas arquetípicas dizem tudo a nosso respeito. Mas o que a leitura aprofundada da obra de Jung, corroborada pela ciência e as pesquisas académicas contemporâneas, nos ensina e que é juntando a teoria a prática, aproximando o simbólico e o concreto, confrontando o real e o imaginário, vivenciando materialmente a fantasia que a transformação acontece para que, como o disse Cazuza, se heróis morrem de overdose, que possa ser de alegria.
Sebastien Baudry – Analista em formação IJEP
Maria Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP
Referências:
CAMPELL, J. O Herói de mil faces. 10 ed. São Paulo, SP: Editora Pensamento LTDA, 1997.
JUNG, C. G. A prática da psicoterapia. 16/1 Obra Completa. 16 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
__________ Um mito moderno sobre coisas vistas no céu. 10/4 Obra Completa. 6 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013a.
__________ Tipos psicológicos. 6 Obra Completa. 9 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
PROCHASKA, J. 0, NOCROSS J.C. DICLEMENTE C.C, Changing for good, Avon Books, New York, 1995.
Canais IJEP:
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