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Toth e a Inteligência Artificial

Pégaso, o cavalo alado, ou Crisaor, o gerador de monstros? Como colocar compreensivamente um “e” onde nossa cultura prefere um “ou”, que ordinariamente nos atola no pântano do dualismo e nos transforma em vítimas de unilateralidades perversas? O símbolo (syn+ballein) une, em vez de separar.

Pégaso, o cavalo alado, ou Crisaor, o gerador de monstros? Como colocar compreensivamente um “e” onde nossa cultura prefere um “ou”, que ordinariamente nos atola no pântano do dualismo e nos transforma em vítimas de unilateralidades perversas? O símbolo (syn+ballein) une, em vez de separar.

– Uma grande merda!

Amon Rá, como posso imaginar, estava de saco cheio. Toth, seu subordinado no panteão egípcio, não parava de inventar coisas. E lá vinha ele de novo com mais uma de suas novidades – a mais maravilhosa de todas elas, nas palavras dele!

Todo alegre – aliás, eufórico! – Toth tinha explicado ao deus supremo os encantos e benefícios da técnica da escrita. Era isso o que ele desta vez tinha inventado.

– Uma beleza! – ele comentou. – Os egípcios, juntando essas letrinhas meio esquisitas e formando as palavras e as frases, irão ter de agora em diante condições de encher folhas e mais folhas de papiro com todos os seus muito lindos e respeitáveis conhecimentos! Já pensou?

– Não pensei, e nem quero pensar – respondeu Amon Rá, para lá de irritado.

– Como assim Grande Amon, não gostou? Não quer experimentar o senhor mesmo escrever neste momento uma sábia mensagem que os egípcios irão poder guardar para a posteridade?!

Não! Amon Rá não queria.

– Uma merda! Uma grandessíssima merda! – insistiu. – É isso que eu acho dessa bosta que você inventou. Uma verdadeira droga!

Toth gostaria tanto de saber por quê. Ele não apreciou nem um pouco a reação muito mal-educada do grande deus. “Uma merda!” Onde já se viu dizer uma coisa dessas? Um deus que se preze não pode ser ignorante. Muito menos um deus Sol!

Luz!

Brilho!

Consciência!

– Com essa tal de escrita, essa merda aí que você diz que inventou, ao invés de mais inteligentes, como você imagina, Sr. Toth, os egípcios vão se tornar cada vez mais preguiçosos, e mais burros!

Para Amon Rá, a técnica da escrita não passava de uma maldição: pura droga, que mata. Para Toth, pelo contrário, constituía uma bênção: remédio, que cura

Um vê o lado sombrio da coisa, e o outro, o luminoso.

Como se houvesse dois mundos absolutamente distintos, separados e independentes, sem os ordinários e necessários caminhos de ida e vinda entre um e outro. Como se alguma coisa humana existisse sem o selo, às vezes muito horroroso, da concupiscência! Parece que os deuses apreciam ser unilaterais.

Não só os deuses egípcios, gregos, os que forem, também o Deus judaico-cristão não escapa dessa verdadeira sina, tão nós mesmos eles são, tão grandes e pesadas acabam sendo as projeções que sobre as costas deles depositamos! Se você tem alguma dúvida do que Jung tem a dizer sobre o tema da unilateralidade do deus javista, do Antigo Testamento, leia o Resposta a Jó que ele escreveu. E prepare-se para o confronto com o mistério.

Voltemos ao tema da técnica: bênção ou maldição? Remédio ou droga?

Eis aí uma boa pergunta a ser feita à técnica, qualquer técnica e de qualquer tempo. Uma ótima pergunta a ser lançada à Inteligência Artificial (IA), a menina dos olhos da gula tecnológica do momento – a bola da vez dos encantos e desencantos tecnológicos, a dama de vermelho da nossa neurótica sofreguidão por esconder de algum modo neste momento histórico, pela via das luzes que piscam, nossas muito comuns insignificâncias.

Na língua que Sócrates utiliza para conversar com o amigo Fedro sobre a história do deus Toth – o grego –, há um termo que chama a atenção para essa condição dual das coisas, do mundo, da própria vida: phármakon.

Aquilo que me pode curar pode também decretar o meu fim, e isso tanto física quanto psiquicamente.

Platão e a indecência da escrita

Sócrates assume um dos lados da questão quando se expressa sobre a técnica da escrita. Para ele, escrever não era coisa de gente direita. Como ilustre defensor da razão humana, no dia em que lembrou a Fedro a história do Hermes egípcio, não teve nenhuma dificuldade de mostrar de que lado ele se colocava nessa briga. A longa conversa com o amigo Fedro teve lugar às margens do rio Ilissos, fora dos muros de Atenas, numa linda manhã de verão, à sombra frondosa de um plátano. Eita vidão!

Sócrates nunca escreveu nada. Não quis. Abominava simplesmente a ideia. A palavra Razão saía de sua boca e atravessava o ar sempre com inicial maiúscula, ao ser pronunciada pelas ruas e praças e no grande mercado de Atenas.

Assim, não se tratava certamente dessa Pequena Razão contra a qual se voltaria Nietzsche, mas que tinha lá a sua dose de unilateralismo, tinha! Por isso, não é de admirar que, colocando bem lá no alto o ideal de uma Razão Sábia do filósofo, Sócrates estava muito mais propenso a ver os limites e as mazelas da democracia ateniense do que as suas prováveis virtudes, que, aliás, ele achava que nem existiam.

Platão concordava com o mestre que escrever era indecente.

No mínimo, exigia muita precaução. Apesar disso, Platão escreveu sem parar (inclusive o diálogo em que Sócrates conversa com Fedro sobre a indecência da escrita, considerado por Schleiermacher o mais perfeito resumo da filosofia do discípulo de Sócrates). Se alguém ventilava a hipótese de o fundador da Academia estar agindo de forma incoerente, Platão se defendia: o que escrevia era obra de Sócrates – ele dizia.

Acredite se quiser.

Conta-se que certa vez Platão chegou a escrever uma carta, mas anotou ao final que, logo que fosse lida e relida, o destinatário deveria… queimá-la!

É igualmente conhecida a birra de Platão contra a democracia. Bom mesmo seria se os reis fossem filósofos, como ele deixou registrado em sua República.

Idealista dos bons, Platão não conseguia engolir toda aquela retórica democrática cultivada na Ágora, uns dizendo umas coisas e outros, outras. No dicionário socrático-platônico parece só haver lugar para a luz irradiante da Razão, da Verdade, do Bem!

Summum Bonum!

É assim que isso se deixaria mais tarde traduzir na teologia cristã.

Jung sentia verdadeiros calafrios toda vez que se defrontava com essa ideia.

A coisa e a sombra da coisa

No início de seu diálogo Timeu, ao mencionar o tema – tão caro a Jung – do três e do quatro, Platão “se refere a algo muito significativo”, como aponta o próprio Jung: “Percebemos que se trata do dilema entre o que é somente imaginado e a realidade concreta ou, mais precisamente, da sua realização”, Jung escreve – e os grifos são dele –, acrescentando que Platão “teve experiências pessoais que lhe mostraram quão difícil é a passagem do plano da conceituação bidimensional para a concretização no plano da tridimensionalidade”.

O idealismo platônico, como poderíamos dizer, erra redondamente o alvo da vida por não ter os pés no chão.

Palavra de Jung!

Preocupado em ensinar o caminho do verdadeiro exercício racional da política, depois de mais de uma demorada viagem que fez à Magna Grécia do seu tempo, Platão “se desaveio de tal modo com seu amigo e político-filósofo Dionísio, o Velho, tirano da Sicília, que este o mandou vender como escravo.

Só um acaso feliz (o resgate) o salvou deste destino”, continua Jung. O Platão do mundo das ideias voltaria à carga junto a Dionísio, o Moço, mas suas tentativas “no sentido de transpor suas ideias filosóficas e teóricas a respeito do Estado para o plano da realidade também falharam, de tal modo que Platão decidiu-se a renunciar a qualquer atividade política”.

Ficou com a metafísica, “muito mais promissora do que a vida neste mundo inconstante e intratável” (Jung, OC 11/2, §184).

Apaixonado pelo mundo das formas universais e eternas, esse mundo maravilhosamente asséptico – desumano, demasiadamente desumano! – de uma verdade acachapante – e violenta! –, esse “lugar luminoso onde” – como dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade –, na visão dos míopes, “a verdade esplendia seus fogos”, Platão, na visão de Jung, permanece acorrentado na caverna dessa “superfície sem espessura do papel”.

“Platão permanece na planura”, comenta Waldemar Magaldi.

Platão não realiza a passagem do número 3 para o 4, esse símbolo maior da totalidade. “Onde está o quatro?”, pergunta Sócrates no início do Timeu. Pensando bem, você nota que é Platão quem pergunta – e pergunta a si mesmo.

Onde está o quatro, meu caro Platão?

Ele é incapaz de mergulhar nesse outro lado do mundo das belas ideias, nesse mundo muito vivo e muito real, constante, horrorosa e fertilmente acossado pela sombra, “o peso, a inércia e as limitações inesperadas e alheias ao mundo do pensamento”, como expressa Jung. O dramaturgo grego Aristófanes, que escreveu a peça “As nuvens”, de crítica a Sócrates, teria gostado muito de observar Jung chamando Platão de desligado, desconectado do mundo!

“Mesmo a mais bela criação de Deus se acha, pois, pervertida; a preguiça, a estupidez, a malícia, a insuficiência, a doença, a idade e a morte enchem o magnífico corpo de deus ‘bem-aventurado’ – alma de um mundo doente – e na realidade tal espetáculo doloroso não corresponde absolutamente àquele que o olhar interior de Platão vê”, ao escrever, no Timeu, sobre “o belo plano de Deus que existe eternamente” (Jung, OC 11/2, §185).

Convém sublinhar a importância da expressão “espetáculo doloroso” no confronto com a técnica.

Não nos é dado o direito de ignorar o lado sombrio de toda técnica, tão umbilicalmente ligados se encontram a criatura e o criador. Pois, se a técnica tem a função precípua de ampliar as possibilidades de nossa intervenção no mundo, é igualmente pertinente a ideia de que quanto mais luz, mais sombra!

Ainda, se no caminho do autoconhecimento, o confronto com a sombra é algo assim como o grau zero da individuação, do tornar-se quem se é (Nietzsche), o mesmo pode ser dito da possibilidade de conhecer sempre melhor a técnica, justamente, por meio da agonia de contemplá-la em suas múltiplas e complexas virtualidades, positivas e negativas.

O ego é convocado a fazer o que ele por destino e vocação entende de fazer: separar, discriminar… colocar a ilha (consciência) para conversar com o oceano (o inconsciente pessoal e coletivo)!

Heidegger e a “devoção do pensamento”

Nós os humanos criamos a técnica – e somos com isso supostamente seus senhores. Contudo, se não cuidamos, logo nos transformamos em belos funcionários da mesma técnica. A crítica é de Vilém Flusser, o pensador tcheco-brasileiro que, no contexto da “Absurdität” das novas tecnologias digitais, nos convoca a exercitarmos o sagrado dever de pensar a técnica:

Die Technik ist gegenwärtig eine zu ernste Sache, um Technikern überlassen werden zu können” (A técnica tornou-se atualmente uma coisa séria demais, para que possa ser deixada nas mãos dos técnicos) (Flusser, 2009, p. 135).

Flusser com certeza leu Martin Heidegger, quando este afirma que “a essência da técnica não é técnica” (2007). Há algo mais e maior na técnica, cujos sentidos complexos a teoria aristotélica das quatro causalidades (causa material, causa formal, causa instrumental, causa final) não dá conta de administrar.

O autor de O ser e o tempo – que em algum momento de sua existência chegou a se render ao canto de cisne do nazismo –, sete anos depois do final da Segunda Guerra e da bomba de Hiroshima, proclamaria, como Flusser, que a questão da técnica representa algo sério demais para ser deixada nas mãos dos técnicos.

O tertium non datur dos sentidos duais e dos próprios paradoxos que toda técnica evoca e provoca, no entendimento de Heidegger, se dá pela via do pensamento. O caminho é o caminho do pensamento, ele afirma, logo nas primeiras linhas de seu famoso ensaio, “A questão da técnica”. O exercício da razão crítica, tão importante e tão essencial, recebe desse autor a mais elevada manifestação de apreço.

Pensar, para Heidegger, é mais do que uma vocação. É uma devoção!

O lado mais perverso de todo totalitarismo, diz Hannah Arendt, é que ele insiste em querer penetrar em nossas mentes para nos arrebatar a nossa capacidade de pensar. O conceito arendtiano de “banalidade do mal” tem tudo a ver com essa condição. Tomados pela sombra pessoal e coletiva, viramos autômatos. O efeito gado. A bolha do pensamento único. Escravos.

Ampliar essa ideia para toda e qualquer forma de totalitarismo – também o enorme risco do totalitarismo da técnica – não é de todo desaconselhável. Como bestas ambulantes, costumamos em mais de um pedaço de nosso tempo de vida circular por aí, alegremente, como inocentes úteis das formas mais abjetas de escravização do ser humano.

É sempre duro comparar entre formas de escravidão, se há umas piores que as outras. O pensador sul-coreano Byung-Chul Han não sente, porém, nenhum constrangimento em afirmar que as formas modernas de escravidão, se não forem as piores, estão entre as mais terríveis: é aquela escravidão em que o escravo se imagina livre, dono de seu próprio nariz, empresário de si mesmo etc. e tal.

Movido a muitas ilusões, o escravo contemporâneo vira o capataz de si mesmo – volta a comentar Magaldi. Aliás, o escravocrata moderno nem precisa de capataz.

A escravidão perfeita!

Uma beleza!

Uberização é um dos bons nomes atuais para isso.

O símbolo que redime

Voltemos à ideia da técnica como pharmakon!

O semioticista italiano Umberto Eco, referindo-se ainda aos tempos da chamada comunicação de massa, distinguia entre os que ele chamava de “apocalípticos” e os “integrados”, resultando desse modo em modelos de pensamento agarrados pobremente à mais fina flor do dualismo epistemológico: uns contra os outros, em eterna luta missionária para saber quem é o melhor, quem está certo, a quem serão dados os louros da vitória – de Pirro.

A “solução” parece fácil ao pensamento reducionista, e nossa cultura, dualista por excelência, adora pensar desse modo: você fica com o lado remédio do pharmakon e toma distância do lado droga.

Doce ilusão, sorri Jung, entre uma baforada e outra do seu cachimbo fedorento!

No mais profundo de sua ignorância do humano, demasiado humano (Nietzsche), esse tipo de “solução” trabalha com o paradigma mental da perfeição, mantendo um sério compromisso com a ideia – que Jung tanto combate, no nível da vida prática – do “Summum Bonum”, como apontado.

Esse modo de pensar e de viver constitui uma forma pretensamente iluminada de autoengano e de traição ao compromisso com nós mesmos e com o mundo.

Não confronta.

Não vive a dimensão fundamental da agonia.

Não ouve Heráclito dizendo que “é da guerra dos opostos que nasce a mais perfeita harmonia”.

Também não escuta Jesus Cristo anunciando aos quatro ventos que – nesse sentido – veio trazer a guerra, não a paz!

Nesse contexto, o caminho da cura, do propósito, da vida mais plena e menos infeliz – também no caso da inteligência artificial – passa pelo diálogo, que será sempre tenso e difícil, como em tudo, com a sombra, isto é, com o lado noturno de nossa existência.  Esta atravessa como uma noite escura os quatro lados – a totalidade – de toda produção da mente humana.

Você não consegue fugir ao trágico da vida!

Crisaor, o gerador de monstros, ou Pégaso, o lindo cavalo alado que nos projeta para o alto de nossas possibilidades humano-divinas?

Qualquer das duas possibilidades explicativas, se tomada isoladamente ou, pior, se brandida como a espada dourada de Crisaor uma contra a outra, leva a uma unilateralidade do pensamento.

O mito não nos deixa enganar: Pégaso e Crisaor são irmãos!

Jung circumambula em torno da ideia de pensarmos menos em “soluções” para vermos se descortinar diante de nós um horizonte de possibilidades, caminhos, propósitos – sem negar o conflito, o paradoxo, a dor do parto e a contínua experiência de nossas misérias.

Jung vê no exercício da “devoção do pensamento” (Heidegger) uma rota de fuga possível, sempre que regada pela água benta das demais funções da consciência: o sentimento, a sensação e a intuição – prestando atenção para não praticar a violência de determinar o que é função superior e o que é função inferior ou auxiliar nessa história.

Mais que nos fixarmos no campo maravilhoso, mas ainda pequeno, de nossa consciência e de nosso ego – a ilha –, Jung nos chama a visitar o cavalo Pégaso e o monstruoso Crisaor que habitam o nosso oceânico inconsciente coletivo, o que, de fato, só se torna possível com a entrega ao símbolo.

É o símbolo – não o conceito ou a definição racional, com toda a sua carga de violência e autoritarismo, nem o código de conduta de nossas personas infelizes – que nos projeta no mundo fascinans et tremendous (Rudolf Otto) da alma humana.

Habentibus symbolum, facilis est transitus (Para quem tem o símbolo, fácil se torna a travessia) diz uma máxima alquímica.

Que símbolos redentores emergem do pensamento, do sentimento, da sensação e da intuição sobre o mundo iluminado e sombrio da inteligência artificial?

Cabe a nós a aventura de imaginar.

Com o foco na alma humana!

Bem-vindo, Crisaor! Bem-vindo, Pégaso!

Dimas Künsch – Analista em Formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata


Referências:

FLUSSER, Vilém. Absolute. Freiburg: Orange Press, 2009.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientia Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007.

JUNG, Carl Gustav. Interpretação psicológica do Dogma da Trindade. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. [OC 11/2].

Imagem: Thales Carraro

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