No presente artigo ampliamos acerca da nossa capacidade de amar, analisando os conteúdos conscientes e inconscientes da psique.
Perdemos nossa capacidade de amar? Ao que parece a conexão sentimental está fugidia, superficial e de curta duração. Nós queremos tudo facilmente, rápido e para ontem. Mas o tempo da alma é diferente da ânsia compulsiva que nos atravessa.
Estamos com os celulares em mãos curtindo, comentando, compartilhando com centenas, milhares, milhões de seguidores. Mas nos sentimos sozinhos, abandonados, não vistos. Por que? Por que a desconexão nos abala tão fortemente em uma era com tantas facilidades de conexão?
Avançamos para fora, mas coletivamente nos esvaziamos por dentro.
Inconscientemente sabemos que algo nos falta, algo está fora de lugar. Nunca tivemos tanto e nos sentimos tão pouco. Os ocidentais são filhos da pobreza interior, se bem que por fora aparentemos ter tudo. É provável que nenhum outro povo da história tenha sido tão solitário, tão alienado, tão confuso quanto a valores, tão neurótico quanto somos (JOHNSON, 1987, p.13).
Existe uma sofreguidão. Uma vontade de reparar algo. Mas não se sabe bem o que é, nem como fazê-lo.
Acreditamos no controle, na força da vontade e na autodisciplina. Vivemos como se nossas ações fossem fruto somente do querer do ego. E não percebemos que o querer, o poder e o fazer não são realmente tão lineares assim. Mesmo que tentemos a todo custo “coachtizar” nossa vida, domar nossas vontades e disciplinar nossos arredios pensamentos, lá estamos nós caindo nos mesmos lugares, erros, valas de sempre.
Podemos ter a ilusão que conseguiremos com muita força de vontade domar nosso ego e corrigir nossos comportamentos. Porém o que nos dirige vai muito além da consciência e tem bases nos ocultos movimentos do inconsciente.
Para compreendermos um pouco melhor este aparente buraco no peito, este vazio que não se preenche e como isto está profundamente ligado à nossa dificuldade de conexão emocional, voltemos alguns passos e olhemos para o passado e para nossa história.
Com a penetração do patriarcado, os valores masculinos se tornaram preponderantes.
A religião, que antes era centrada nas figuras femininas da deusa, passa a cultuar deuses masculinos. As atitudes dos homens subordinam as mulheres, que não existem mais por si só, como uma pessoa íntegra, mas estão definidas majoritariamente por meio da sua relação com o homem. Ocorre uma rejeição e desvalorização da natureza feminina, o que limita a expressão da natureza instintiva. Como resultado, existe uma negação do corpo e da sexualidade, e por outro lado, com uma valorização das atitudes mentais (QUALLS-CORBERTT, 1990).
Esse movimento que começa há, mais ou menos, cinco mil anos, se aprofunda na Idade Média, lançando sementes psicológicas no pensamento do homem ocidental moderno. O mundo é cercado por combates, lanças, cavalos de montaria e defesa de territórios. A Igreja transita para a esfera patriarcal e não mais é um símbolo da alma feminina.
Está mais baseada em dogmas e leis, tornando-se racional e masculina e com pouco espaço para a experiência pessoal com o divino.
JOHNSON, 1987, p. 23
Neste universo masculino a mulher é, ao mesmo tempo, rebaixada e intocável.
Nesse contexto, a mulher é vista como uma aguçadora dos pecados carnais: vil e depravada. Aoo mesmo tempo em que é elevada pelo puritanismo às imagens celestiais.
Os valores masculinos sobrepujam os femininos e são reforçados até um crescimento unilateral. Assim, o feminino cada vez mais se afunda. Cercado pelos valores masculinos de poder e conquista, a esfera feminina torna-se “sempre um acompanhante de exércitos, atrelado ao velho impulso masculino do poder, sufocado pela guerra, esquecido em meio ao eterno e ensurdecedor choque das lâminas de aço.” (JOHNSON, 1987, p. 12).
Nos tornamos os herdeiros de um mundo destituído do feminino. A alma feminina interior no Ocidente mergulhou profundamente no inconsciente.
Está apagada e desvirtuada por esse momento em que os traços patriarcais baniram da nossa cultura e das nossas práticas a esfera feminina. Consequentemente, esta atitude deixa marcas na psique.
Enquanto este lado feminino da vida está inconsciente, aguardando seu retorno, perdemos a mediação do nosso guia interior. Há uma perda de conexão interna. Desprovidos da alma, que faz o elo entre consciente e inconsciente, refletimos a falta de conexão interna nas relações externas. Paradoxalmente buscamos no outro a cura para nossas feridas e, ao mesmo tempo, não somos capazes de verdadeiramente nos conectar e nos relacionar.
Ficamos na superfície. Estamos rasos e temerosos das águas profundas para onde as emoções nos arrastam.
Desprovido da ligação com a vida – que é dada pelo princípio feminino -, o vínculo (quando criado) gira em torno da idealização, das expectativas e da transformação miraculosa que a pessoa com que nos relacionamos pode nos oferecer.
Em nossa cultura, temos romance em abundância: nós nos apaixonamos e nos desapaixonamos; vivemos de drama em drama, sentindo-nos em êxtase quando o romance está no auge do calor e caindo em desespero quando ele começa a esfriar. Se examinarmos nossa vida e a das pessoas que nos cercam, veremos que o romance não se traduz necessariamente por amor, afinidade ou compromisso (JOHNSON, 1987, p.21).
Por essa projeção da alma no mundo externo, espera-se que o outro seja o parceiro romântico, ative nossa sexualidade, seja amigo e companheiro, um deus/deusa e ainda nos eleve cima dos mortais nos fazendo experimentar a sublime perfeição dos céus.
Porque ao invés de olhar para dentro na busca do casamento sagrado das polaridades em nós, preferimos buscar a alma no corpo alheio e no ambiente exterior. Infelizmente ou dadivosamente ninguém consegue sustentar a idealização interior projetada. Assim sendo, o apaixonamento se dissipa ou é direcionado para outra pessoa.
Os relacionamentos amorosos nos oferecem uma oportunidade de autoconhecimento.
A partir do encontro com o outro, os conteúdos íntimos de ambos vêm à tona. O que pode representar embate ou confronto, já que entrar em contato consigo mesmo é uma tarefa que evitamos com muita veemência. Aquele com quem nos relacionamos nos oferece um espelho de nós mesmos e podemos ficar de frente para algo que temos evitado há longo tempo, como Jung demonstra através de um exemplo.
Naturalmente é lamentável que você sempre tem dificuldades, mas não está vendo o que faz? Você ama alguém, identifica-se com ele, depois volta-se naturalmente contra o objeto de sua feição e oprime-o por meio de sua identidade óbvia demais. Você o trata como se fosse você mesmo e naturalmente surgem então as reações. É uma ofensa à individualidade da outra pessoa, e um pecado contra a sua própria individualidade.
Essas reações são um instinto extremamente útil e importante; você vivencia cenas e decepções para que finalmente tome consciência de si mesmo (JUNG, 2022, p.64).
Quando não se tem uma relação que direcione momentaneamente a atenção, projeta-se em outros aspectos externos a busca pela completude. Por esta dor de viver uma ‘falta de alma’, recorre-se compulsória e inconscientemente a algum tipo de compensação para suprir a lacuna. São vícios; excesso de trabalho; busca por poder, dinheiro e fama; querer ter reconhecimento e ser especial; compulsões alimentares; horas gastas em redes sociais; maratonar seriados; identificação com os papéis sociais e status.
Querendo encontrar o doce braço do feminino, mas ainda cegos para nossa realidade interna, nos entregamos a caminhos que levam a girar sem sair do lugar.
Diante de tudo isso, nutrimos a expectativa, por vezes oculta, por vezes bem vívida, de que algo virá nos salvar de nós mesmos e da vida torta que temos. Entretanto ao mesmo tempo que desejamos que algo ou alguém venha nos salvar, não conseguimos nos conectar.
A perda da experiência com o feminino volta nossa atenção para um mundo de formas, conquistas e coisas, unilateralmente patriarcal. Os ocidentais herdaram este mundo em que o aspecto feminino da vida foi sufocado. Isto significa que tudo que se refere aos relacionamentos sentimentais, ao amor, à intuição e à experiência lírica da vida está comprometido (JOHNSON, 1987, p.11).
Nossos olhos se acostumaram a olhar muito para fora e nunca descansar.
A trabalhar enquanto eles dormem, a ter sempre algo em vista, sempre uma nova meta, um constante progresso. Afinal o mundo não para. Ao que parece preferimos conhecer as técnicas e construir altos prédios na tentativa de alcançar os céus. Mas na alta torre do conhecimento, o feminino fica enclausurado. Nossa capacidade de amar é sobrepujada pelo poder e a consciência do nosso mundo interno fica gravemente limitada. Jung (2018, p. 140) nos traz que “o problema do amor faz parte dos grandes sofrimentos da humanidade, e ninguém deveria envergonhar-se do fato de ter de pagar seu tributo a ele”. Olhar para estas questões conscientemente ajudamos a trazer entrar em contato com conteúdos que crescem no inconsciente, dando-nos a chance de discuti-los.
Resgatar a alma e o feminino, que habita todos nós, requer uma travessia pelo mar do inconsciente.
Assim esse princípio poderá ressurgir para sua união com a polaridade masculina, na busca da união entre os pares sagrados da nossa natureza psíquica.
Lorena de S. Oliveira – Membro Analista em Formação pelo IJEP
E. Simone Magaldi – Membro Didata do IJEP
Referências:
JOHNSON, Robert, We – A Chave da psicologia do amor romântico, São Paulo, Editora Mercuryo, 1987.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, 2013.
______, A psicologia da ioga kundalini – Notas do seminário realizado em 1932, Petrópolis: Vozes, 2022.
______, O desenvolvimento da personalidade, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, 2013b.
______, O eu e o inconsciente, 27ª edição, Petrópolis: Vozes, 2015.
QUALLS-CORBERTT, Nancy, A prostituta sagrada, São Paulo, Paulus, 1990.
SANFORD, John, A. Os parceiros invisíveis, São Paulo, Paulus, 2020.
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