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Psicoterapeutas: jardineiros da psique

Desde criança as vivências com a natureza me mobilizam e me encantam. O contato com os quatro elementos: terra, fogo, água e ar, que correspondem à luz da psicologia junguiana, e as funções da consciência: sensação, intuição, sentimento e pensamento, auxiliam-me no processo de “cura” nas dimensões do corpo, mente, alma e espírito, possibilitando ressignificações dos padrões de unilateralidade e intensidade, devido à integração da tensão de opostos geradores de cisão e conflitos. A partir de observações, vivências e reflexões sobre a natureza pude estabelecer conexões com a psique e o processo de psicoterapia, além de perceber que a lei que rege a natureza é a lei da harmonia (Marte/Ares x Vênus/Afrodite), dinâmica da consonância dos dissonantes. É o que trabalhamos com o nosso cliente que se apresenta sem luz em algum aspecto na busca de si mesmo.

Em uma entrevista realizada por McGuire e Hull (1997, p. 189), Jung descreveu a ligação entre o homem e o meio ambiente a partir dos seguintes termos:  “Todos nós precisamos de alimento para a psique, é impossível encontrar esse alimento nas habitações urbanas, sem uma única mancha de verde ou árvore em flor; necessitamos de um relacionamento com a natureza; precisamos projetar-nos nas coisas que nos cercam; o meu eu não está confinado no corpo; estende-se a todas as coisas que fiz e a todas as coisas à minha volta, sem estas coisas não seria eu mesmo, não seria um ser humano. Tudo que me rodeia é parte de mim.” Com isso, Jung nos mostra o quanto que a natureza é sábia e nos oferece elementos que possibilitam ampliar reflexões sobre a dimensão do ser humano integral em busca da alteridade.

Desta forma, é interessante observarmos o processo de psicoterapia, segundo a psicologia analítica junguiana, como um contínuo caminhar rumo a si mesmo (Self), que envolve a enantiodromia. Inicialmente aparecem as queixas emergentes, carregadas de elementos sombrios a serem discriminados, diferenciados e integrados, resultando em aprendizagem sobre o que o sofrimento trouxe e o despertar de atitude transformadora para resgatar a harmonia.

Em termos gerais, o jardineiro é o profissional que cuida dos jardins, repara solo, aduba a terra, rega plantas e realiza podas em determinadas épocas para que elas revigorem, cresçam e floresçam. Para arrumar o jardim é necessário conhecimento, manejo adequado, em que a falta ou o excesso geram desarmonia, que é equivalente à lei da compensação das polaridades. Vindo ao encontro, Milton Nascimento, em sua canção “O Cio da Terra” nos lembra da importância de afagar a terra e fecundar o chão… “cio da terra propicia estação.” Preparar o solo, semear, cuidar e colher… Metaforicamente, é o que nós psicoterapeutas realizamos com nossos clientes, numa dinâmica que envolve o expandir, penetrar, retrair e cristalizar, em ciclos que compreendem o espaço, movimento, energia e tempo, que de alguma forma contemplo neste texto.

É importante considerar que as estações do ano nos mostram que existe tempo para tudo. E, para ampliar este pensamento, cito Jung (2011, v. 8/2, par. 780) que diz: “Há alguma coisa semelhante ao sol dentro de nós, e falar em manhã de primavera, tarde de outono da vida não é mero palavrório sentimental, mas expressão de verdades psicológicas”. A primavera sugere época de crescer e expandir até florir. Envolve força e renovação. O verão pode ser visto como momento de exteriorizar sentimentos, em que acontecem encontros com otimismo e leveza, guiados pela energia do sol.  No outono as folhas caem encerrando um ciclo, terminando com nostalgia e amadurecimento. Por fim, o inverno representa recolhimento e interiorização, tristeza, melancolia e depressão.

Geralmente o cliente nos procura no inverno de sua vida, no âmago da dor, em busca de resgatar e integrar a escuridão do seu inconsciente à luz da consciência. No decorrer das sessões, ocorre o que podemos chamar de outono, período em que a ampliação dos conteúdos trazidos permite amadurecimento e o cliente começa a perceber a vida com mais leveza e otimismo, analogicamente comparado ao verão. Por fim, nosso cliente cresce, expande e ressignifica sua história, tempo da primavera de sua vida. E o que é a vida senão uma mistura de estações, permeadas pelos elementos terra, água, fogo e ar?  

 Plantas nascem, alimentam-se de lodo, estrume, restos que se transformam em flores, frutos e sementes, que nos remete para infância, juventude, vida adulta e velhice. Nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos. Ciclos em que podemos transitar em solos férteis e florescer com as podas realizadas. E podas são lapidações, é deixar morrer algo dentro de nós antes da morte física, para nascer o novo. Plantas embelezam, produzem aromas e essências que curam, ao mesmo tempo produzem a droga que afeta e podem matar.

Outro aspecto que pode ser considerado é o que Jung (2011, v. 9/2, par. 78) apresenta sobre as profundezas da alma: “Árvore nenhuma cresce em direção ao céu, se suas raízes também não se estenderem até o inferno”. As raízes da árvore procuram espaços e crescem para todas as direções, com aspectos primitivos e funcionais. Sem enraizamento a árvore fica comprometida. Muito similar ao que acontece na história de vida do cliente que é ser único e com história única, que precisa ser compreendido numa dimensão maior. O caule, por sua vez, ligado às raízes e condutor de seiva, é possibilidade de transformação e transcendência. Permite conexões com as dimensões superiores da existência. A copa da árvore, com suas folhas que sintetizam energia, com flores que embelezam e perfumam e com sementes como fonte de renovação, simboliza o alcance da plenitude. Desta forma, podemos refletir sobre alguns princípios da natureza: flores são mandalas naturais e florescem onde foram plantadas, ipês nos ensinam muito sobre como passar por seca intensa para florir, folhas que caem produzem adubo e rosas nascem em planta com espinhos. A adubação e a poda são feitas para estimular o crescimento; quando são mal feitas castram e matam. Flor e fruto colhidos antes do tempo não tem o mesmo encanto e sabor. A árvore se mostra frondosa e produz sombra. Do mesmo modo, nós psicoterapeutas trabalhamos com personas e auxiliamos na integração conteúdos sombrios.

Vindo ao encontro do manejo psicoterático, Jung (2011, v. 10/3, par. 882) contribui de forma significativa: “Falta contato com natureza que cresce, vive e respira. A pessoa sabe o que é um coelho ou uma vaca através de livros ilustrados, enciclopédias ou televisão. E pensa que conhece realmente, mas fica admirada quando mais tarde descobre que o estábulo fede, pois isso não estava na enciclopédia”. Penso que nesta visão, Jung sugere que não basta aprendermos conteúdos, definições, técnicas e ficarmos presos ao mundo das ideias. Neste sentido, lembro-me do meu pai, homem do campo e sem conhecimento teórico, todas as noites observava e céu e previa o tempo para o dia seguinte com precisão, por meio de observações, intuições e sensações.  É necessário compreender a dor do cliente numa dimensão maior e não tocar em “feridas” que não podemos ajudar a curar. Céu, estrelas, lua, sol, vento, seca, chuva, quantas analogias e aprendizagens nos permitem! E como disse Rubem Alves: “Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído, é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro, não planta jardins por fora e nem passeia por eles”.

A natureza é cíclica e tudo que brota da terra vai para a terra, mesmo após transformações recebidas pela ação do homem. Tudo que temos e precisamos origina-se da natureza. Já dizia Jung (2011, v. 10/1, par. 514), com muita sabedoria: “Por mais que joguemos fora a natureza por meio da força, ela sempre retorna”. Saber esperar é um aprendizado tão importante para ser resgatado nesta sociedade imediatista e consumista que estamos inseridos. É preciso trabalhar o valor de aguardar e confiar, assim como a natureza nos mostra seus ciclos de produção em que ocorre o tempo de plantar e o de colher, época de estiagem das águas, época de reprodução e relação com o processo natural do amanhecer e anoitecer. Nestas vivências, pequenas frustrações nos preparam para as maiores que virão como processo natural da vida. É preocupante o aumento de crianças medicadas com ansiolíticos, sem falar do suicídio na adolescência. Doenças emocionais, físicas e espirituais se alastrando, pessoas correndo contra o tempo e cada vez mais doentes, sem transformar seus sintomas em expressões simbólicas. Diante desta realidade, também cabe à nós psicoterapeutas resgatarmos o valor da natureza, que nos dá limite, que é organizador e estruturante, possibilitando administrar as frustrações do nosso imediatismo.

Para finalizar, trago mais uma citação de Jung (1981, v.16/1, Par. 153), que nos remete ao valor do trabalho do psicoterapeuta: “Uma árvore que cresceu torta não endireita com uma confissão, nem com esclarecimento, mas que ela só pode ser aprumada pela arte e técnica de um jardineiro.” Assim como o jardineiro que planta, poda, aduba e faz florescer, nós psicoterapeutas – jardineiros da psique – podemos ajudar a embelezar seres humanos em busca de sentido e significado, desconstruindo crenças, ajudando a criarem recursos internos para suportarem as podas necessárias e viverem com mais exuberância no florescer de suas vidas.

Claci Maria Strieder, Especialista em Psicossomática e Analista Junguiana em formação pelo Ijep.

Brasília – DF

Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com

Referências:

ALVES, Rubem. Postado em textos, crônicas e poesias.

JUNG, 1981, v.16/1, Par. 153.

JUNG, 2011, v. 8/2, par. 780.

JUNG, 2011, v. 9/2, par. 78.

JUNG, 2011, v. 10/1, par. 514

JUNG, 2011, v. 10/3, par. 882

MCGUIRE, W.; HULL, R. F. C. C. G. Jung: entrevistas e encontros. 1. ed. São Paulo: Cultrix, 1997.

NASCIMENTO, Milton.  O Cio da Terra – GERAES, EMI Odeon Brazil,1976.

Claci Maria Strieder 

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