Resumo: Este artigo apresenta o relato de um caso clínico vivenciado no contexto terapêutico, que ilustra a indissociável relação entre corpo e psique sob a ótica da Psicologia Analítica. A partir da escuta sensível de uma paciente com diagnóstico de transtorno neurológico funcional, o texto explora como sintomas físicos podem se constituir como expressões simbólicas de conteúdos psíquicos inconscientes. Além de mostrar o potencial transformador do diálogo entre corpo e alma, propõe uma reflexão sobre o caminho de autoconhecimento e “cura” que se torna possível quando há abertura para integrar as dores emocionais à consciência.
Jung sempre destacou o quanto na relação terapeuta x cliente somos tocados, as almas são tocadas em diversos aspectos e a narrativa desse artigo é uma espécie de relato, onde expresso um caso que me tocou significativamente.
Visando garantir o anonimato da cliente e assegurar a confidencialidade que é devida na relação terapêutica, algumas informações foram omitidas.
Aos 31 anos ela chega para a avaliação fazendo uso de um andador, no prontuário eletrônico que recebi com a indicação de seu caso vinha o diagnóstico de transtorno neurológico funcional. O quadro teve uma evolução que levou a uma paralisia que impactou braços, pernas e inclusive a deglutição, no momento de nosso primeiro encontro já andando com significativas limitações ela entra em minha sala olhando para baixo para visualizar os pés, uma forma de assegurar-se onde pisava e assim evitar cair.
Ela chega acompanhada da mãe, trazia um olhar sereno que me atravessava, e em meio a um humor sarcástico parecia me contar sua história fazendo uso desse recurso para não chorar.
Em nosso primeiro encontro não fala muito, comenta que morou com os pais até os 25 anos. Filha de uma mãe bipolar e de um pai com sequelas de uma doença que lhe causou déficit motor e de memória, relata que cuidava da casa e do pai doente, quando se apaixona pelo marido que conheceu por aplicativo e então se muda para o interior de São Paulo.
Nesse primeiro momento suas falas permeiam “tinha medo de uma nova vida, sem ser essencial…”, “sei que toda explicação está dentro, eu deixei de funcionar”.
Já é sabido e a grande maioria das pessoas aceita sem muitas ressalvas a interconexão corpo e psique. Percebemos o mundo através de nossos corpos, a percepção de nossa existência no tempo e no espaço se materializa através do corpo físico no qual aspectos fisiológicos e psicológicos se entrelaçam. Parecia que de alguma forma ela tinha conhecimento que o que estava passando tinha mais explicações do que a medicina lhe tinha dado até o momento.
Ela me conta que se casa em outubro de 2019, os sintomas iniciam em novembro, relata dores, formigamentos e perda da função motora que inicia nas pernas e pouco a pouco ao longo de 5 meses evolui em direção ao pescoço até ter dificuldades para deglutir. Inicia tratamento sem diagnóstico definido e em agosto de 2020 é internada por pneumonia, precisa ser entubada e o quadro se agrava pela infecção por Covid.
Frente à doença a relação com o marido estremece e ele a expulsa de casa, ela doente precisa do auxílio da mãe para retornar para São Paulo, separa-se em maio de 2021, foram 1 ano e 8 meses entre o casamento, o adoecimento e a separação.
Com o retorno para São Paulo busca tratamento em diferentes serviços até chegar ao serviço de psiquiatria com déficits neurológicos reais, porém com uma ampliação da sintomatologia não compatível com os déficits evidenciados em exame. Ou seja, seus sintomas possuem características não compatíveis com o diagnóstico médico, há algo mais por trás do que ela apresenta, momento em que se observa como determinante a indissociável correlação corpo-mente.
E, para a compreensão desse processo é fundamental recorrer à Psicologia Analítica, que nos fornece conceitos-chave para interpretar a dinâmica entre sintomas físicos e conteúdos inconscientes.
Segundo Romano (2022) a psique é um sistema dinâmico que atribui quantidades de energia às atividades psicológicas que varia a cada momento vivenciado, de forma que o valor que se atribui a um pensamento ou sentimento vai exercer uma força capaz de influenciar o comportamento das pessoas. A essa energia Jung denominou energia psíquica.
O conceito de complexos, baseado na Psicologia Analítica contribui de forma significativa para a compreensão da interface corpo-psique, uma vez que eles possuem uma interação direta com nossas reações fisiológicas corporais.
Em “Vida Simbólica” Jung (2013, p. 87) cita:
Um complexo é um aglomerado de associações – espécie de quadro de natureza psicológica mais ou menos complicada – às vezes de caráter traumático, outras, apenas doloroso e altamente acentuado. Tudo o que se acentua demais é difícil de ser conduzido… Trata-se simplesmente de um assunto importante, tudo que é acentuadamente sentido torna-se difícil de ser abordado, porque esses conteúdos encontram-se, de uma forma ou outra, ligados com reações fisiológicas com os processos cardíacos, com o tônus dos vasos sanguíneos, a condição dos intestinos, a inervação da pele, a respiração. Quando houver um tônus alto, será como se esse complexo particular tivesse um corpo próprio e até certo ponto localizado em meu corpo, o que o tornará incontrolável por estar arraigado, acabando por irritar os meus nervos. Aquilo que é dotado de pouco tônus e pouco valor emocional pode ser facilmente posto de lado porque não tem raízes.
Jung continua na mesma obra (p. 88):
[…] comporta-se, enfim, como uma personalidade parcial. Quando se quer dizer ou fazer alguma coisa e, desgraçadamente, um complexo intervém na intenção inicial, acaba-se dizendo ou fazendo a coisa totalmente oposta ao que se queria de início… O que conhecemos é o nosso próprio complexo do eu, que supomos ter o domínio pleno do corpo. Não é bem isso, mas vamos considerar que ele seja um centro que está de posse do corpo, que exista um foco denominado eu, dotado de vontade e que possa fazer alguma coisa por meio de seus componentes. O eu, é um aglomerado de conteúdos altamente dotados de energia e, assim, quase não há diferença ao falarmos de complexos e do complexo do eu.
No teste de associação de palavras, Jung identifica que frente a estímulos que acessam os complexos temos respostas emocionais que se dão de forma inconsciente. Tais respostas se exprimem através de alterações fisiológicas como sudorese, palidez, tremor, respiração rápida, palpitação, inquietude que evidenciam respostas tanto de nosso sistema neuroendócrino quanto do sistema nervoso simpático de forma que temos respostas hormonais e de luta ou fuga em resposta aos nossos afetos (ROMANO, 2022).
Um “complexo” se alimentaria de nova energia psíquica com novos traumas que se associam a ele e o enriquecem com a mesma carga emocional e do poder magnético do núcleo arquetípico.
Quando um complexo “constela” haveria um grande fluxo de energia para o ego (centro da consciência) que é invadido pela irrupção do conteúdo autônomo; sendo o ego afetado por respostas emocionais e fisiológicas (ROMANO, 2022).
Em relação aos complexos podemos nos comportar com total inconsciência de sua existência, nos identificarmos com eles, projetá-los externamente ou confrontá-los o que seria segundo Romano (2022) a melhor maneira para sua reconfiguração, possibilitando dessa forma uma aproximação da parte inconsciente da consciência.
Voltando a paciente, conversamos profundamente sobre as interrelações corpo-mente o quanto esses dois aspectos são indissociáveis e o quanto eles poderiam de alguma forma estar contribuindo para o seu adoecimento. Ela se mostra aberta as reflexões, Jung destaca o quanto a atitude na consciência é um ponto fundamental para que o complexo do ego possa entrar em contato com as manifestações do inconsciente, no caso os sintomas; e com acolhimento começamos um trabalho que permeia a fala e o corpo, ora um, ora outro, ora ambos e assim o trabalho começa a se desenrolar, memórias são suscitadas a cada encontro, lembranças de afetos muito dolorosos veem à tona, ela se assusta, se fecha, se abre e pouco a pouco os complexos começam a se revelar.
Para se estabelecer uma conversa franca com os complexos, faz-se necessário haver disposição do ego para tal e para reconhecer os aspectos sombrios e, assim, possibilitar o que poderíamos chamar de dissolução, ou melhor, redução de seu potencial autônomo.
Jung (1985) em “A Prática da Psicoterapia” cita:
O médico só pode tentar observar e compreender como a natureza procede em suas tentativas de cura e restituição. A experiência já mostrou, há muito tempo, que entre a consciência e o inconsciente existe uma relação de compensação, e que o inconsciente sempre procura complementar a parte consciente da psique, acrescentando-lhe o que falta para a totalidade, e prevenindo perigosas perdas de equilíbrio. No nosso caso, como é de se esperar, o inconsciente gera símbolos compensatórios, que devem substituir as pontes que ruíram, mas só o conseguem de fato, mediante a ajuda da consciência. É que os símbolos gerados pelo inconsciente têm que ser “entendidos” pela consciência, isto é, têm que ser assimilados e integrados para se tornarem eficazes. Um sonho não compreendido não passa de um simples episódio, mas a sua compreensão faz dele uma vivência.
De acordo com a Psicossomática Junguiana todos os sintomas de adoecimento expressos no corpo possuem etiologia psicoafetiva e são compreendidos como símbolos, manifestações do inconsciente que têm função compensatória.
Essa função só pode ser compreendida se for possível para o indivíduo estabelecer um diálogo consigo mesmo, para entender como se tornou vítima de suas próprias emoções e se desviou do caminho natural em busca do Si-mesmo e assim, deixou de contemplar o sentido e o significado de sua vida (MAGALDI, 2020).
O corpo reage a emoção antes mesmo da consciência da situação vivenciada, afirma Jung (2015, §86) em Psicogênese das Doenças Mentais:
Já vimos que o complexo do eu, devido à sua ligação direta com as sensações corporais, é o mais estável e rico em associações. A percepção da situação de ameaça e perigo gera medo: este é um afeto e por conseguinte é seguido de estados corporais, de uma complexa harmonia de tensões musculares e excitações do sistema nervoso simpático. Desse modo, a percepção encontra o caminho para a inervação corporal, permitindo que o complexo de associações se torne logo evidente.
E parece ser exatamente isso que acontece nesse caso. Frente a frente com seus complexos a dor e a limitação física parecem se tornar reconhecíveis através dos seus afetos e emoções e ela reconhece o autoabandono, a necessidade de ser reconhecida, o complexo materno e os abusos da infância.
Apesar da dor ela se mostra com prontidão de alma e seu curador interno parece se revelar. Num trabalho semanal de olhar para os seus complexos ela os vê a cada dia um pouco menores, menos dolorosos e em paralelo a isso o corpo parece mostrar nuances de se fortalecer, a sensibilidade das pernas se mostra um pouco mais presente e a estabilidade nas pernas começa a responder melhor, há ainda um longo caminho para sua recuperação funcional motora, entretanto, na funcionalidade psíquica se observa um olhar mais seguro de si, a postura corporal já mostra uma mulher que começa a se reconhecer e o mais importante há um desejo, um desejo real de viver e se fazer viva, não sem ignorar as dores da alma mas as utilizando para se conhecer melhor.
Como ela mesmo me disse em uma de nossas sessões “seus leões internos estão se tornando gatinhos”, e se o processo de cura implica na transformação de algo e não se trata da eliminação da doença, mas do encontro com a própria inteireza, acredito que ela já começa a enxergar esse caminho.
Jung (§166-167, 2014) cita que é na intensidade do distúrbio emocional que está o seu valor, isto é, na energia que o indivíduo deveria ter a seu dispor para sanar o seu estado de adaptação reduzida.
Nada conseguimos, reprimindo este estado ou depreciando-o racionalmente. Ou seja, faz-se necessário estabelecer um diálogo com esse distúrbio, tomando-se o estado afetivo inicial como ponto de partida para que se possa fazer uso da energia que se acha no lugar errado. O indivíduo torna-se consciente do estado de ânimo em que se encontra, nele mergulhando sem reservas, de forma a melhor elaborá-lo com a colaboração da consciência. Isso representa o começo da função transcendente, vale dizer da colaboração de fatores inconscientes e conscientes.
O percurso terapêutico desta paciente ilustra, na prática, como corpo e psique estão intrinsecamente conectados. O sintoma físico revelou-se como um veículo para acessar conteúdos emocionais, permitindo a mobilização de aspectos inconscientes e a construção de um novo significado para sua experiência. Assim, esse caso reforça a importância de abordagens que considerem a totalidade do indivíduo, reconhecendo que o corpo também fala e que sua escuta é essencial para um possível processo de cura.
Patricia Silva Cordeiro – Analista em formação IJEP
Ajax Salvador – Membro Analista Didata IJEP
Referências:
JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 1985
JUNG, C.G. Vida Simbólica. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C.G. A Natureza da Psique. Edição brasileira digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
JUNG, C.G. Psicogênese das Doenças Mentais. Edição brasileira digital. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
MAGALDI, W. PSICOSSOMÁTICA E A DINÂMICA DO ADOECER – AFETOS, EMOÇÕES E COMPLEXOS. 2020. Artigo acessado em 03/01/2025 emhttps://blog.ijep.com.br/psicossomatica-e-a-dinamica-do-adoecer-afetos-emocoes-e-complexos/
ROMANO, L.R.B. Complexos e Sintomas de Adoecimento. In Fundamentos da Psicologia Analítica. Org. Waldemar Magaldi. São Paulo: Eleva Cultural, 2022

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