Resumo: Desde os mitos gregos mais antigos, heróis e semideuses tentaram desafiar a morte, cruzando fronteiras sagradas entre o humano e o divino. Este artigo revisita as histórias de Asclépio, Prometeu, Sísifo, Orfeu e Tântalo para refletir sobre os limites do saber, do desejo e da técnica. Quando a hybris humana confronta a ordem do cosmos, o castigo simbólico não tarda. As narrativas arquetípicas desses transgressores lançam luz sobre dilemas atuais, como a negação da finitude, a recusa do luto e a medicalização da existência.
A morte, na mitologia grega, não é apenas um evento biológico, mas uma instância arquetípica que separa ordens ontológicas: de um lado, o mundo dos deuses — imortais, perfeitos e absolutos; de outro, a condição humana, marcada pela fragilidade, pelo erro e pela finitude. Essa separação é uma linha sagrada. Toda tentativa de cruzá-la — seja para escapar da morte, para reviver os mortos ou para subverter os desígnios do destino — representa uma transgressão grave: um gesto de hybris, a arrogância dos que ultrapassam seus limites e tentam se equiparar aos deuses.
Os deuses gregos não são onipotentes nem oniscientes, mas são imortais — e essa é sua diferença essencial em relação aos seres humanos (VERNANT, 1990, p. 29). Quando um herói ou semideus tenta vencer essa diferença, os mitos nos dizem que o castigo é certo. Há sempre um preço simbólico a pagar.
Neste artigo, revisitamos cinco dessas narrativas de transgressão — os mitos de Asclépio, Prometeu, Sísifo, Orfeu e Tântalo — para refletir sobre os sentidos simbólicos da morte, da travessia e dos limites do humano. Também propomos um olhar sobre como esses mitos ainda ressoam no imaginário contemporâneo, especialmente em tempos de avanço tecnocientífico e o anseio pela imortalidade artificial.
Asclépio: medicina e a tentação de vencer a morte
Filho de Apolo, Asclépio é o médico arquetípico: cura, alivia e restaura. Mas, ao ultrapassar a linha entre curar e reviver os mortos, ele desafia a própria morte. Segundo Brandão, ele teria devolvido a vida a Capaneu, Licurgo, Glauco (filho de Minos) e Hipólito (filho de Teseu). Temendo que a ordem do mundo fosse alterada e o Hades ficasse às moscas, Zeus o fulmina com um raio (BRANDÃO, 2014, p. 84).
No plano simbólico, Asclépio encarna o dilema do saber desmedido, o gesto de hybris que se confronta com as moiras — o destino que rege a ordem do cosmos — ao negar a irreversibilidade da morte. Afinal, a morte é parte da vida. Como observa Hillman, o “médico era o assistente de deus, servindo ao processo natural de cura à luz de seu conhecimento” (HILLMAN, 2011, p. 156). Querer curar tudo é, em si, uma doença.
O mito nos adverte contra os excessos das ciências, tão presentes hoje, como o prolongamento artificial da vida, mas também das psicologias do ego, que querem mantê-lo a todo custo. Quando a medicina e a psicologia esquecem seu papel de cuidado e se tornam instrumento de dominação sobre a morte física ou psíquica, reencontramos o gesto trágico de Asclépio.
Prometeu: o fogo do saber e o castigo da criação
Prometeu, o titã que deu o fogo aos homens, é também aquele que inaugurou a condição humana: com o fogo vem o saber técnico e a comida quente que, como diz a neurologista Suzane Herculane Houzel, permitiu nosso cérebro se desenvolver (HERCULANO-HOUZEL, 2017), gerar a cultura e o pensamento simbólico. Mas esse dom não foi autorizado. Ao roubar o fogo, Prometeu desafia Zeus e rompe o equilíbrio entre humanos e deuses. Quem assistiu à série Kaos sabe sua punição — estar acorrentado a uma rocha, com o fígado devorado diariamente por uma águia — é imagem vívida de um saber que, ao exceder seu lugar, retorna como sofrimento.
Prometeu não apenas se recusa a voltar atrás, como ainda se vangloria de ter ensinado aos seres humanos as artes civilizatórias da agricultura, ciência, escrita e matemática. É o criador da civilização, mas também o portador da dor que ela impõe. Ele é, portanto, a representação do cientista moderno: visionário, criador, mas também condenado por sua transgressão. A peça de Ésquilo, escrita no século V a.C., defende que ele se recusa a voltar atrás no feito, preferindo morrer diariamente nas mãos de Zeus.
Assim como Asclépio, Prometeu traz à tona o problema da técnica desacompanhada do sagrado. Quando o saber se separa da alma, a morte se torna castigo. A figura de Prometeu, hoje, ressurge nos debates sobre inteligência artificial, engenharia genética e manipulação da vida — avanços que nos colocam, mais uma vez, no limiar do permitido.
Sísifo: a astúcia contra a morte e o castigo da repetição
Sísifo engana a Morte não uma, mas duas vezes: primeiro aprisionando Tânatos. Quando seu irmão Hades reclama que o submundo estava ficando vazio, Zeus libertou Tânatos, que fez de Sísifo sua primeira vítima. Contudo, ele havia combinado com sua esposa de que não lhe prestasse as honras funerais. Ao chegar no Hades, ele convence Perséfone a deixá-lo voltar para castigá-la – mas não cumpre a promessa e permanece entre os vivos. Por esse duplo ato de astúcia, é condenado a rolar eternamente uma pedra morro acima, apenas para vê-la cair.
Segundo Camus, “haviam pensado com algum fundamento que não há castigo pior que o trabalho inútil e sem esperança” (CAMUS, 1995, p. 157). Para ele, Sísifo é o herói do absurdo — aquele que, mesmo diante da inutilidade de seu castigo, persiste. Mas na chave simbólica dos mitos gregos, ele é o homem que se recusa a morrer, que não aceita seu destino, e por isso é condenado à repetição.
Em nível psicológico, Sísifo representa o ego que quer controlar o tempo, escapar da transformação, viver sem morrer. Seu castigo não é a morte — é viver sem fim, sem propósito. A imagem da pedra pode ser lida como o peso da vida não vivida com profundidade, sem entrega ao ciclo natural de nascimento, morte e renascimento.
Orfeu: amor, perda e a travessia interrompida
Orfeu desce ao Hades para resgatar Eurídice. Seu sentimento de perda é insuportável, acompanhado de um anseio impossível por aquilo que foi perdido. Ele diz: “Desejei ser forte o bastante para suportar meu luto, e não nego que tentei: mas o Amor foi mais forte do que eu” (OVID, 1955, p. 225)[i]. Orfeu se refere ao amor com A maiúsculo, pois fala de um deus. Se ele é conhecido no mundo de cima, deve sê-lo também no mundo de baixo — imagina.
Dawson observa que o músico é uma figura problemática: tem o dom de tocar a lira bem como seu pai, Apolo, mas também herda dele a falta de sorte no amor (DAWSON, 2025). No submundo, convence Hades e Perséfone com sua música, mas recebe uma condição: não olhar para Eurídice até sair. No último momento, tomado pela dúvida ou pelo desejo, Orfeu se volta — e a perde para sempre.
Diferente dos anteriores, Orfeu não desafia os deuses por orgulho, mas por amor. Ainda assim, a travessia entre mundos exige um tipo de fé, de confiança, que ele não sustenta. O mito toca a dor de toda perda, reviver o que já se foi, o risco de viver no passado.
Na leitura simbólica, Orfeu representa a alma que tenta evitar o luto. A exigência de não olhar pode ser lida como o dever de seguir adiante sem trazer o passado ao presente — o que Jung chamaria de aceitação da sombra. Quando Orfeu falha, é como se dissesse: “não se pode trazer de volta aquilo que foi ao submundo”.
Tântalo: o banquete interdito e a fome eterna
Tântalo, filho de Zeus, oferece aos deuses um banquete macabro: a carne de seu filho Pélops. Para Brandão, ele desejava testar os olimpianos, ver se eram mesmo oniscientes (BRANDÃO, 2014, p.576). Os deuses perceberam o sacrilégio, restauram Pélops à vida e enviam Tântalo ao Tártaro. Sua punição: permanecer em um lago de águas límpidas, sob árvores frutíferas, com sede e fome eternas. Toda vez que tenta beber ou comer, a água e os frutos se afastam.
Tântalo simboliza a profanação do sagrado, a tentativa de controlar os ritmos da vida e da morte com um gesto sacrificial pervertido. Sua punição revela o destino de quem transforma o rito em crime.
Na chave contemporânea, Tântalo é aquele que vive dominado por desejos incessantes e insaciáveis. Representa a compulsão de não se contentar com nada – até com o sagrado – esperando sempre mais, e essa é sua hybris, querer ser mais do que os deuses. Mas isso é insustentável, pois nunca desfruta das suas posses ou conquistas – seu gesto rompe os vínculos e com a continuidade da vida.
A travessia impossível e o reconhecimento dos limites
Os mitos analisados revelam um padrão simbólico claro: toda vez que um mortal ou semideus tenta ultrapassar os limites impostos pela morte, o castigo vem. Mas esse castigo não é moral — é existencial. O mito não julga: ele espelha os riscos do desejo que se separa do sagrado.
Hoje, vivemos versões modernas dessas narrativas. O desejo de driblar a morte retorna na biotecnologia, na promessa da juventude eterna, na negação do luto e na medicalização da alma. O desafio, ontem como hoje, é reconhecer o limite como forma de sabedoria. Como nos adverte a tragédia grega: a medida é o verdadeiro dom dos deuses.
Monica Martinez – Analista em formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Abalista Didata
Referências:
BRANDÃO, J. DE S. Dicionário Mítico-Etimológico. Rio de Janeiro: Vozes, 2014.
CAMUS, A. El mito de Sísifo. 5. ed. Madrid: Aliazça Editorial, 1995.
DAWSON, T. Orpheus and Eurydice in myth, history, and analytical psychology: loss, longing, and self-awareness. London/New York: Routledge, 2025.
HERCULANO-HOUZEL, S. A vantagem humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HILLMAN, J. Suicídio e alma. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
OVID. Metamorphosis. London ed. [s.l.] Penguin Books, 1955.
VERNANT, J.-P. Mito e pensamento entre os gregos. São Paulo: Paz e Terra, 1990.
[i] No original: “I came because of my wife, cut off before she reached her prime when she trod on a serpent and it poured its poison into her veins. I wished to be Strong enough to endure my grief, and I will not deny that I tried to do so: but Love was too much for me. He is a god well-known in the above world; whether he may be so here too, I do not know, but I imagine that he is familiar to you also” (OVID, 1955, p. 225).