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Quem Conta um Conto Nutre uma Alma

Veículo mais adequado e capaz de trazer à consciência, de um modo assimilável essas “ricas substâncias” contidas nas raízes da psique.

Von Franz

(Sobre os contos de fada)

Os contos de fada seguram em tua mão e te conduzem para um mundo de magias. As transformações íntimas, a organização emocional e o repertório daquele que cresceu lendo ou ouvindo contos de fada são nítidas. Não se trata de nenhuma mágica, mágicas são para mágicos, trata-se sim, de magia. Os contos são como os verdadeiros magos, sugerem direções, indicam escolhas, acolhem auxiliando no processo de individuação. Triste daquele que ainda não consegue se emocionar e vibrar com os contos. Com certeza esses são os que não vislumbram o conto nem em seu potencial de despertar a criatividade presente no mais profundo do inconsciente, nem como mestre guia que ensina a retomar o curso natural da vida.

Consequentemente, o valor deles (contos de fada) para a investigação científica do inconsciente é sobejamente superior a qualquer outro material. Eles representam os arquétipos na sua forma mais simples, plena e concisa. Nesta forma pura, as imagens arquetípicas fornecem-nos as melhores pistas para compreensão dos processos que se passam na psique coletiva. Nos mitos, lendas ou qualquer outro material mitológico mais elaborado, atingimos as estruturas básicas da psique humana através de uma exposição do material cultural. Mas nos contos de fada existe um material cultural consciente muito menos específico e, consequentemente, eles espelham mais claramente as estruturas básicas da psique. (Von Franz -A interpretação dos contos de fada – pág. 9)

Pessoas “atoladas” na vida arroba-algumacoisa ou hashtag-mevejam, dificilmente mostram interesse pelosfeitos de príncipes e princesas, mesmo porque, se quer acreditam que existem. Só pudera, a linguagem dos contos é a mesma do inconsciente, desconhecida e incompreensível. Com essa dificuldade a não crença estabelece-se e revela adultos com a capacidade criativa diminuída e o poder de fantasiar comprometido. A falta da criatividade, ou seja, a falta de ações criadoras (criar + atividade), de se sentir capaz de criar algo pode causar frustrações. Estas são advindas da não concretização de desejos ou expectativas egóicas. Já a fantasia e o fantasiar, tão importante quanto a criatividade, quando em escassez pode servir como gatilho disparador do desânimo. Palavra essa que traduz o que ela mesma significa, composta pelo prefixo de negação des e da palavra ânimo que vem do latim para alma, espírito pensante, indica aquele sem alma, com o espírito evadido, prostrado. Um corpo sem espírito é um corpo inerte, consequentemente uma mente não pensante, vazias de ideias, de alguém que não reflete sobre si e o mundo. A ausência dos contos de fada nas vidas dos indivíduos pode criar um embotamento psíquico, tornando-as em pessoas autômatas, identificadas ao já estabelecido, restritas ao manter tudo como está e como é, tanto na vida, quanto no meio em que vive, cumpridoras e reféns apenas de normas e da ordem.

Crianças que não foram inseridas neste mundo fantástico dos contos de fada facilmente percebemos o baixo repertório de vocábulos e capacidade imaginal. Geralmente o que vemos são crianças que tem a leitura substituída por jogos em celulares que não geram nenhum tipo de frustração, uma vez que basta a criança reiniciar o jogo caso tenha “perdido” aquela partida. Sabendo que é a partir das frustrações que o amadurecimento acontece. Nos contos de fada essa mesma criança iria vivenciar a frustração de não ganhar e a experiência do medo, ambas situações tão importantes para seu desenvolvimento psíquico, emocional e espiritual enquanto indivíduo. Vivenciar cada experiência prazerosa ou não prazerosa auxilia a criança a ultrapassar as fases da vida de forma plena e satisfatória, pois sentir medo e perder dão para ela muito mais prontidão para confrontar o mundo. Crianças que não tem medo do lobo mau vão ter medo do que? No mundo onde crianças são vítimas de abusos, de sequestros e de espancamentos, ter a noção do que é mal e do que é bom é imprescindível. A permissão que os contos dão em se ter medo poderiam evitar estes sequestros, abusos e agressões, pois uma vez estes temas foram trabalhados de forma lúdica, na medida certa e de forma profunda, nos contos de fada, produziram repertório e vocábulos afiados e prontos para que possam cindir como o agressor.

Outro problema de ordem macro são os críticos desavisados que tentam fincar suas bandeiras com dizeres que defendem a extinção dos contos de fada. As justificativas vazias, adianto, são de que crianças devem ser apresentadas a histórias científicas, a fatos da realidade e que os contos estariam cheios de imoralidades. A primeira reflexão é sobre a definição de realidade. No ponto de vista destes críticos, a realidade psíquica está descartada, o que é um grande absurdo para a arteterapia, sobretudo de abordagem junguiana. Este problema só cresce quando olhamos para o que chamam de imoralidades. O simbólico, claramente presente e absolutamente bem representado pelo beijo do príncipe na princesa adormecida, dá vida para o ser beijado, e ao mesmo tempo sentido de vida para o ser beijante. Provavelmente, críticos e críticas desta ordem são feitas por pessoas que não foram devidamente apresentadas aos contos de fada. Com esse discurso, além de não capacitar as crianças para a vida adulta, partindo da errônea suposição de que estariam poupando-as de frustrações desnecessárias, permitindo que leiam apenas fatos confortáveis, incluindo as alterações dos contos originais, estão no mínimo subestimando a inteligência emocional, psíquica e negando a existência do inconsciente nas crianças.

Não é difícil de encontrarmos pessoas que tem em seu repertório apenas os contos produzidos pela Walt Disney Company. Por isso, devemos ser gratos a companhia, do contrário poderíamos nunca ter tido acesso aos contos de fada, mesmo que distorcidos de sua originalidade. Há sem dúvida a possibilidade de você ser a exceção, mas caso não seja, a chance de você nunca ter escutado ou lido um dos contos catalogados pelos Griim na sua versão canônica é muito alta. A diferença está no tratamento que a Disney deu, suavizando os acontecimentos. Isso obviamente tornou-os mais vendáveis. Naturalmente é mais confortável saber que as irmãs da Cinderela apenas não conseguiram calçar o sapato de cristal por seus pés serem grandes demais para ele do que imaginar que uma das irmãs na tentativa de se tornar princesa corta parte do próprio pé.

Você deve classificar no seu ciclo de amizades algumas pessoas como criativas. São pessoas que conseguem encontrar saídas nunca pensadas anteriormente. Especialistas apontam que são pessoas com grande repertório e poder para fantasiar. Busque em sua memória o quão criativo você era em sua infância. Se os adultos que te rodeavam nessa fase foram vítimas de uma educação deficitária, provavelmente você também foi vítima. Esses adultos passaram a não acreditaram em seu potencial criativo para abstrair dos contos os ensinamentos pertinentes e cabíveis para sua idade, limitando o universo que há dentro da criança que você foi. Com isso em vista, sugiro que você leia contos de fada ampliando o repertório e o poder de fantasiar, para fortalecer o tecido psíquico. O lobo mau não é a representação do mau ele é o mal em si. Se você nunca vivenciou o bem e o mal não aprenderá a lidar nem com o bem e nem com o mal. Olhando para os contos como espelho do seu mundo interno você encontrará uma saída criativa para cada adversidade que a vida te apresentar. Pois, sua verdade psíquica pode ser trazida do inconsciente e tratada pelas fantasias, desde que você as deixe livre de censuras para que elas possam emergir. Nesta aproximação entre os mundos interno e externo, tese – antítese e síntese, o símbolo ganha a chance de favorecer a expressão da função transcendência.

Nos mitos e contos de fada, como no sonho, a alma fala de si mesma e os arquétipos se revelam em sua combinação natural, como “formação, transformação, eterna recriação do sentido eterno (Jung OC 9/1 – §400)

Muitos pais questionam se devem ou não contar contos de fada para as crianças. As preocupações giram em torno se determinadas passagens lhes fará mal, justificando que no conto são relatados acontecimentos cruéis com cenas horrendas que poderiam perturbar a inocência da criança. Questionam a história do lobo mau se não tiraria o sono da criança. Pensando assim, muitas vezes decidem eliminar tais contos, em consequência desnutrem a alma da criança, pois nos contos estão contidos acontecimentos que têm suas raízes nas forças construtivas nutridoras da humanidade, dimensão arquetípica. Relatar os contos canônicos aos filhos, dando-lhes vida, avivam as crianças com a variedade dos acontecimentos narrados, alimentando assim ao mesmo tempo suas próprias almas de adultos. Quanto mais as privarmos destes contos de dragões e bruxas, tanto mais fraca resultará sua alma de adulto. Mais tarde, quando as asperezas e as durezas da vida golpearem, lhes faltará o valor e a firmeza aprendido através dos acontecimentos dos contos de fadas.

Em contraponto a esse racionalismo extremado, ainda há nas crianças por excelência, e no adulto de forma velada, um quanto de mundo fantástico. Não é difícil de você perceber crianças fantasiando, mesmo porque isso faz parte natural do seu desenvolvimento cognitivo, e de encontrar adultos dirigidos por fantasias geradoras em preconceitos e superstições irracionais, cheios de tabus. Isso mostra que o homem mantem, arquetipicamente, seu primitivismo conectando-o com aquilo que é lúdico, solto, livre, fantasioso e repleto de magias.

A frequente retomada de formas e imagens arcaicas de associação observadas na esquizofrenia me forneceu, pela primeira vez, a ideia de um inconsciente que não consta apenas de conteúdos originários da consciência que se perderam, mas de uma camada ainda mais profunda, dotada de caráter universal, como são os motivos míticos característicos da fantasia humana. Esses motivos não são de modo algum inventados e sim descobertos, constituindo formas típicas que aparecem, de maneira espontânea e universal, independentes da tradição nos mitos, contos de fada, fantasias, sonhos, visões e ideias delirantes. Uma investigação mais cuidadosa mostra que se trata de atitudes típicas, de modos de agir, de formas de ideias e impulsos que devem constituir o comportamento tipicamente instintivo da humanidade. O termo arquétipo por mim escolhido coincide com o conceito tão conhecido na biologia de “pattern of behaviour”. Não se trata de maneira alguma de ideias herdadas, mas de impulsos e formas instintivas herdadas, tais como observamos em todo ser vivo. (Jung OC 3 – §565)

Com tudo isso em vista, finalizo: a) Ressaltando a importância em ler/ouvir contos de fada para a fortalecer a malha psíquica; b) Evidenciando a incomensurável contribuição para o desenvolvimento da psique tanto de o adultos quanto de crianças; c) Destacando a importância deste recurso como instrumento de expressão da psique em settings  arteterapêuticos e na clínica junguiana; d) Apontando para a expressão da transcendência alcançada nos contos através dos símbolos; e) Sugerindo o conto como metáfora do processo de individuação; f) Reconhecendo nos contos de fada o poder de união de partes cindidas sendo ele o terceiro e superior elemento com caráter numinoso e,; g) “o conto de fada e o mito expressam processos inconscientes e a sua narração produz sempre um revivescimento e uma recordação de seu conteúdo, operando, consequentemente, uma nova ligação entre o consciente e o inconsciente”. (Jung OC 9/2 – §280).

Willian Silva – Analista Junguiano em Formação pelo IJEP

Analista didata responsável: Waldemar Magaldi

Referências

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CHEVALIER, J. e GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 21ªed. Rio de Janeiro. Editora: José Olympio, 2007.

FRANZ, M.L Von. A individuação nos contos de fada. São Paulo. Editora Paulinas. 1985.

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JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. OC 8/2. Rio de Janeiro Editora: Editora Vozes. 1984.

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______. O Homem e seus Símbolos. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Ano: 1964.

SILVEIRA, Nise da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro. Editora Alhambra, Ano: 1981.

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