Resumo: Estamos vivendo mais uma daquelas situações assombrosas, motivo de piadas, falas em todas as mídias sociais, está nas fofocas, nas conversas filosóficas, em lives de psicologia. Não poderia ser diferente. Estamos vendo mulheres adotando bebês de borracha como se fossem seus filhos, gerados por elas. Estão exigindo serem tratadas como mães, em filas de supermercado, em postos de vacinação! Será um novo modismo? Será uma infantilização coletiva? Será um surto psicótico coletivo? As perguntas aguçam a curiosidade, mas também assustam.
Devemos observar que não existe uma razão geral para os fatos que se apresentam, pois cada indivíduo contém suas próprias questões. Mas o acontecimento tem se apresentado dentro do coletivo, então parece que o que impulsiona, o que afeta essas mulheres, é um motivo coletivo. De forma pretensiosa procuro, neste artigo, trazer algo que possa ser um “como, por quê e para quê” essas mulheres, de forma inconsciente, foram dominadas pelo “complexo da maternagem”.
QUERO SER MÃE!
O caso dos bebês de borracha intriga, faz pensar. O que está acontecendo? Não conheço uma pessoa sequer que não tenha se chocado com as histórias que veem povoando todas as formas de comunicação conhecidas. A mim instiga um misto de curiosidade e preocupação.
Então, lendo Neumann, O medo do Feminino, vi um trecho que me provocou insights sobre a situação dessas mulheres e compartilho com vocês:
Mas em certo sentido a Natureza limitou o perigo de que a mulher possa se trair ao Masculino e perder sua ligação com a Gestalt arquetípica fundamental do Feminino. Pois não importa quanto a filha, como mulher, possa ter se distanciado do mundo matriarcal da base do solo matriarcal, e quanto ela sucumbe ao descrédito no qual a coloca o homem patriarcal, ela entra, normalmente, numa fase de desenvolvimento de sua existência feminina na qual a grande totalidade da natureza feminina quase sempre retifica e corrige todos os desvios de sua essência feminina. Esta retificação acontece independentemente […] da consciência da mulher de tudo aquilo que realmente acontece durante essa fase decisiva para a mulher e marcada pelo advento, não do casamento, mas da gravidez e do parto. Quando a mulher dá à luz uma criança, experiencia uma descoberta do Self tão profundamente ancorada em sua existência biofísica, que somente nos casos mais raros passa desapercebida.
(NEUMANN, 2000, p. 259)
O que Neumann está dizendo aqui é que a identificação com o animus pode ter uma reversão quando a mulher engravida e tem um bebê! As mulheres estão possuídas pelo animus? Então, será que está aí uma das razões dessa “epidemia” de mães de bebês de borracha?
POSSESSÃO PELO ANIMUS
Na clínica venho atendendo muitas mulheres na faixa dos 25 aos 40 anos que têm uma questão em comum: gostariam de ser mães, mas por, praticamente, duas razões, não dão este passo à maternagem: falta de um parceiro e a carreira.
A vida contemporânea e o grande avanço conquistado pelas mulheres para a entrada no mundo patriarcal provocaram resultados que têm sido extremamente positivos, como autonomia, paridade no mercado de trabalho, independência financeira, etc. Mas, por outro lado, segundo Neumann (Cf. 2000, p.258), corremos o risco de sermos dominadas pelo animus, unilateralizadas nesse mundo masculino.
Há séculos vemos o mundo patriarcal controlando a tudo e a todos, então há poucos anos vimos as portas se abrirem para a nossa ascensão a este mundo masculino e entendemos que seria o melhor caminho. Assim, vemos mulheres entrando nas universidades, no mercado de trabalho, competindo de igual para igual com homens, mas ao mesmo tempo se masculinizando, sem encontrarem um meio termo.
Não estou aqui fazendo uma apologia ao retorno da dominação masculina sobre as mulheres, nem que deveríamos voltar a pensar em sermos somente boas esposas e mães. Não!
Estou dizendo que estamos perdendo o contato com o princípio Feminino e, talvez, nem saibamos mais o que isto significa. Há milhares de anos fomos ensinadas que ser mulher é ser inferior. Perdemos a ligação com o Feminino, que dentro da cultura judaico-cristã está ligado ao pecado original. Então, quando temos a oportunidade de, finalmente, estarmos lado a lado, em pé de igualdade de direitos, com o mundo dos homens, a tendência mais do que lógica foi nos perdermos dentro deste mundo, e o animus, como complexo, dominou-nos quase que totalmente.
A impressão que tenho é que o que está acontecendo é um sintoma da unilateralidade da consciência, uma compensação, com o intuito de curar a situação neurótica de identificação com o masculino.
“A unilateralidade da consciência encontra a resistência da esfera dos instintos” (JUNG, 2013, p.32).
Quanto mais unilateral for a sua atitude consciente e quanto mais ela se afastar das possibilidades vitais ótimas, tanto maior será também a possibilidade que apareçam sonhos vivos de conteúdos fortemente contrastantes como expressão da autorregulação psicológica do indivíduo. Assim como o organismo reage de maneira adequada a um ferimento, a uma infecção ou a uma situação anormal da vida, assim também as funções psíquicas reagem a perturbações não naturais ou perigosas, com mecanismos de defesa apropriados.
(JUNG, 2013, p. 203)
O instinto da maternagem tem o caráter mobilizador como todos os instintos e, provavelmente, no caso em questão, esteja afastado do limiar da consciência, mas perseguindo sua meta inerente antes de qualquer conscientização (Cf. JUNG, 2014, p. 52).
A projeção, quando surge, pode provocar as loucuras de todo tipo.
(JUNG, 2014a, p.108)
Jung explica como o desejo mais íntimo de ser mãe pode ser projetado para um objeto, dando-lhe vida:
Projeção ativa é componente essencial do ato de empatia. A empatia como um todo é um processo de introjeção porque serve para levar o objeto a uma íntima relação com o sujeito. Para configurar esta relação, o sujeito destaca de si um conteúdo, por exemplo, um sentimento, e o transfere para o objeto, dando vida a este e incluindo-o na esfera subjetiva.
(JUNG, 2013b, p. 478)
Jung nos fala que tudo que experimentamos é, na verdade, uma experiência psíquica, então toda a realidade é, exclusivamente, de ordem psíquica (2014, p. 310- 311)
Esta informação nos dá, talvez, uma compreensão de como uma pessoa pode projetar sobre um objeto inanimado tanto carinho, afeição e cuidado. Nas palavras de Jung:
Tudo o que eu experimento é psíquico. (…) Minha psique, com efeito, transforma e falsifica a realidade das coisas em proporções tais, que é preciso recorrer a meios artificiais para constatar o que são as coisas exteriores a mim. (…) Tudo o que nos é possível conhecer é constituído de material psíquico. A psique é a entidade real em supremo grau, porque é a única realidade imediata.
(JUNG, 2013, p. 310)
O caso das bonecas reborn tem ocorrido em muitas mulheres, jovens, saudáveis, em idade de serem mães biológicas de bebês de carne, osso e alma, adotando bebês de borracha, desalmados. Fenômeno que tem origem no inconsciente coletivo, sendo, então, uma neurose coletiva. Segundo Jung (Cf. 2014, p.56), geralmente os casos de neuroses são sociais e deve-se admitir a reativação do arquétipo correspondente sendo, no caso, o materno.
As forças arquetípicas, quando consteladas, são explosivas, perigosas e de consequências imprevisíveis.
Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade, ou produz um conflito de dimensões eventualmente patológicas, isto é, uma neurose.
(JUNG, 2014, p.57).
A neurose coletiva é justamente manter bem distante o desejo de ser mãe, ou de postergá-lo ao máximo, uma vez que assumir essa faceta da vida é se afastar dos valores dominantes do patriarcado vigente e enfrentar a perda dos seus ganhos materialistas. Porém o Self não perdoa. Ele vem com sua força arrebatadora para corrigir o que a consciência possuída pelo animus está seguindo, um caminho que poderia levar à cisão completa com a essência feminina. Os bebês de borracha foram o meio encontrado para essa integração com o Feminino perdido.
Pode parecer loucura, mas Jung falou brilhantemente: “Estar louco é um conceito social. Usamos restrições e convenções sociais a fim de reconhecermos desequilíbrios” (2013a, p.50).
Se, por fim, essas mulheres conseguirem identificar a neurose e integrar, de forma consciente, o desejo de ser mãe, então os sintomas terão exercido sua maior função, a de despertar o Feminino.
Denise Largman – Membro Analista em formação IJEP
Lia Romano – Membro Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
NEUMANN, Erich. O medo do feminino. 1 ed. São Paulo: Paulus, 2000.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______. A vida simbólica, vol.1. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
______. Tipos psicológicos. 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 11 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
______. Psicologia do inconsciente. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2014a.
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