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Um Diálogo da Alma: considerações sobre a relação Ego – Self

Este artigo tem como proposta trazer uma reflexão sobre como se dá e qual é a importância da comunicação entre duas partes centrais da nossa estrutura psíquica: o Ego – complexo central da consciência, e o Self – o arquétipo central que representa a totalidade psíquica. Abordando como este eixo se estrutura e como ele nos acompanha durante nossa vida, em nosso caminho de desenvolvimento.

Este artigo tem como proposta trazer uma reflexão sobre como se dá e qual é a importância da comunicação entre duas partes centrais da nossa estrutura psíquica: o Ego – complexo central da consciência, e o Self – o arquétipo central que representa a totalidade psíquica. Abordando a visão de como este eixo se estrutura e como ele nos acompanha durante nossa vida, em nosso caminho de desenvolvimento.

O presente artigo propõe uma reflexão sobre como se dá e qual é a importância da comunicação entre duas partes centrais da nossa estrutura psíquica: o Ego (complexo central da consciência) e o Self (arquétipo central, que representa a totalidade psíquica). Abordando como este eixo se estrutura e como ele nos acompanha durante nossa vida, em nosso caminho de desenvolvimento.

A relação entre estas duas instâncias é primordial para que a nossa vida psíquica esteja funcionando de forma harmônica. Porém, nem sempre é isto que acontece. Intercorrências externas e internas podem ser fonte de desequilíbrio constante em nosso caminho de desenvolvimento.

[…] Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…

Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!…

Fernando Pessoa, O Guardador de Rebanhos, Poemas de Alberto Caeiro.

Vamos, em primeiro lugar, lembrar o que é cada um destes conceitos dentro da psicologia analítica e qual a sua função.

Ego – centro da consciência

O Ego, como centro da consciência, tem como uma de suas funções discriminar  e filtrar os conteúdos que deverão vir à luz da consciência. Quando alguma lembrança e acontecimento, ou mesmo algum conteúdo presente no inconsciente pessoal ou coletivo, ameaça vir à tona, se o Ego percebe que este conteúdo será prejudicial à consciência, podendo causar nesta um efeito negativo, este conteúdo não se relacionará com o Ego e continuará no inconsciente.

É por esta forma autônoma de atuação do Ego, que Jung o define como um complexo.

Várias ideias associam-se a ele, e como um complexo que é, ele atua como uma personalidade independente. Esta característica, que dá ao Ego um aspecto pessoal, relaciona-se também com o fato de que, ele pertence sempre à um indivíduo, desenvolvendo-se em cada pessoa de modo particular, conforme as vivências e as possibilidades de cada um. É o Ego que nos faz diferentes uns dos outros, e que dá coesão e identidade à nossa personalidade.

O Ego também se relaciona com as capacidades de: memória, vontade, discriminação e escolha. Isto pode ser compreendido no que se refere às funções psíquicas (pensamento, sentimento, sensação e intuição). Quando criança, o indivíduo experimentará todas elas, mas a função que tornar-se-á superior, é aquela que melhor adaptar o indivíduo ao meio, fazendo com que ele seja aceito socialmente, sendo que, na outra polaridade ficará a função inferior, aquela que foi experimentada pelo Ego e rejeitada por ele, em função de uma não aceitação desta.

A tensão de opostos experimentada na vivência e na diferenciação das funções psíquicas, é também experimentada e vivida pelo Ego em outros aspectos da vida do indivíduo.

Esta tensão é vista no que se refere à sua atitude frente às manifestações de outras instâncias psíquicas como a anima, animus e a sombra. Por ocasião destas funções do Ego, existe uma tendência geral de comparar a consciência à psique total. Porém esta parte da nossa estrutura psíquica se forma a partir do inconsciente, que é uma outra parte, sendo ambas pertencentes a uma mesma totalidade. Esta totalidade que de alguma forma ordena todas as outras estruturas, é o Self.

Self – o centro, a totalidade

O Self é o centro, o responsável pela sustentação, estabilidade e união de todo funcionamento do sistema psíquico; e ao mesmo tempo que é centro, é também o todo –  contém tudo o que existe na psique, regulando toda esta estrutura. O Self, portanto, como totalidade que abarca tudo o que existe no mundo psíquico, contém a persona, sombra, anima, animus e os demais arquétipos e o Ego. E sendo o Ego um elemento que se relaciona diretamente com a consciência, este nasce e se desenvolve a partir do inconsciente, e consequentemente da totalidade psíquica – do Self.

Jung identifica o arquétipo central da psique com a imago dei, ou melhor – a imagem de Deus, em função da dimensão e da representatividade deste arquétipo no mundo psíquico. Daí, podemos dizer que dentro desta concepção, o Ego está para o Self, assim como o homem está para Deus.

Isto nos leva à pensar que, enquanto o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, o Ego estrutura-se à imagem e semelhança do Self.

Isto dá ao Ego uma qualidade de subordinação frente ao arquétipo central e organizador da personalidade. Esta diferenciação entre um e outro, acontece no decorrer da vida do indivíduo, desde a infância, até enquanto o sujeito viver e segundo Edinger, a relação entre o Ego e o Self, acontece em processos cíclicos, do nascimento à morte. O autor pontua ainda que “… o desenvolvimento psicológico se caracteriza pela existência de dois processos simultâneos: de um lado, a progressiva separação entre o ego e o Si-mesmo; e outro o aparecimento cada vez mais claro, na consciência do eixo ego – Si-mesmo” (EDINGER, 1989, p. 26)

Inflação, Alienação e Consciência

Erich Neumann, em sua obra “A Criança”, nos fala do mundo redondo onde o bebê vive, a partir da vida intrauterina até quando nasce, estendendo este mundo ao corpo materno. Neste período, o Self da criança é vivenciado por meio da experiência no corpo materno. Em nenhum outro momento da vida, o sentimento do indivíduo como um ser total, será sentido de forma tão intensa como neste. A criança percebe-se como uma divindade – ela é total e indiferenciada, como o próprio Self. Porém, para que o indivíduo se desenvolva plenamente é necessário que este estado de indiferenciação inicial seja modificado. A consciência, que não existe até então, precisa surgir.

Desde o início da vida a criança possui todo o material arquetípico herdado – o inconsciente coletivo. Assim como o inconsciente cultural e familiar.

Neste momento de sua vida, não existe ainda uma formação egóica, que a diferencie enquanto um indivíduo. Este processo se inicia somente quando a criança começa a se perceber e daí, a pronunciar a palavra “eu”. Esta distinção implica o início da possibilidade de relacionamento, conforme a seguinte afirmação de Jung:

Na criança a consciência emerge das profundezas da vida psíquica inconsciente, formando no começo como que ilhas isoladas, as quais aos poucos se reúnem em um ‘continente’ para formar uma consciência coerente (…). Consciência, segundo nossa concepção, é sempre consciência do ‘eu’. Para tornar-me consciente de mim mesmo, devo poder distinguir-me dos outros. Apenas onde existe esta distinção, pode aparecer um relacionamento (JUNG, 1991, § 326).

Uma vez que o Ego da criança está identificado com a totalidade do Self, é desta totalidade que o Ego terá que emergir e diferenciar-se, para assim formar a identidade do indivíduo.

Isto é um dado básico – para que exista uma relação, é necessário que haja primeiro uma separação e uma consequente diferenciação. O Ego, portanto, é o recurso que o Self utiliza para manifestar-se e expressar seus desejos. Tanto o Ego como o Self, precisam um do outro e é desta diferenciação que o eixo irá formar-se, tornando possível uma comunicação entre eles. Como já comentado, segundo EDINGER (1989), o Ego desenvolve-se, por meio de um processo cíclico, que se caracteriza por uma constante união e separação entre uma parte e outra, em um movimento espiral, que marca o ritmo da nossa existência. Estas contínuas idas e vindas, uniões e separações, entre o Ego e o Self, formam o eixo EgoSelf, através do qual a vida irá fluir.

Durante este primeiro estágio de indiferenciação, existe uma identificação completa do Ego com o Self, sendo esta fase considerada por EDINGER (1989).

Como um estado de perfeição paradisíaca, tanto que ele compara esta etapa do desenvolvimento do Ego com a representação arquetípica do mito de Adão e Eva, onde Eva, instigada pela serpente para que comesse do fruto da árvore do bem e do mal, o fez, cometendo o pecado original e indo contra as normas estabelecidas pelo Criador. Este mito representa a criação da consciência, onde, ao experimentar o fruto proibido, eles experimentaram também o sentimento de divisão em sua personalidade. Perceberam-se nus, e ficaram com vergonha deste estado, ou seja, perderam o estado único e original paradisíaco, sendo expulsos do paraíso, assim que cometeram tal imprudência contra as leis divinas.

A serpente disse à Eva que ao experimentar do fruto proibido ela ficaria tão sábia quanto Deus. Este desejo levou Eva a seguir a cometer o assim chamado pecado original: igualar-se ao criador, saber tudo sobre o bem e o mal, são sentimentos sedutores que retratam uma superioridade e ao poder. Este sentimento, em que este poder divino é desejado e vivido, caracteriza o primeiro estágio na diferenciação entre Ego e Self. É um estado chamado por Jung de inflação.

No estado de inflação, o Ego assume um papel grandioso, como se fosse o próprio Self.

Separar-se, é muito doloroso, por isso, toda a força que o Ego tinha enquanto identificado com o Self, imagina que seja sua própria força e começa então a agir de forma onipotente, tendendo a fazer com que o indivíduo ultrapasse os limites. Com isto o Self é constantemente desafiado pelo Ego. Este movimento é importante e necessário para que o Self possa se colocar; pode-se dizer que neste momento se inicia uma relação. Afinal, após comerem o fruto proibido, ou melhor, após desafiarem Deus, Adão e Eva foram expulsos do paraíso. Ou seja, nunca mais desfrutarão de um estado paradisíaco de indiferenciação. Com esta atitude de Sua cria, Deus percebeu que eles ainda não o conheciam como entidade realmente superior, e inatingível em Sua totalidade.

Na inflação psíquica é muito comum que o Ego se identifique com a persona.

Na inflação psíquica é muito comum que o Ego se identifique com a persona, pois, a persona é o arquétipo que vai se relacionar com o Ego, dando ao indivíduo um papel social, fazendo com que ele seja bem aceito, e que consiga ser notado e percebido no meio. Sempre que falamos em desenvolvimento de Ego, temos que pensar que este acontece em relação ao meio, portanto, é por isso que a persona, como o arquétipo mais próximo da consciência, tem esta responsabilidade. Segundo JUNG:

Como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel, no qual fala a psique coletiva. (JUNG, 1991, § 245)

A inflação pode se manifestar com várias caras:

  1. quando este sente-se identificado com a divindade no seu aspecto de poder, enquanto uma autoridade reinante e absoluta, dando ao indivíduo um sentimento de onipotência (lideres onipotentes);
  2. a identificação com o mártir, onde ele é bom demais, humilde demais, sofre demais, tem culpa demais esta é uma forma de inflação negativa, onde o indivíduo passa dos limites, exacerbando na sua fala e atitude, sentimentos que lembram um complexo de inferioridade, porém o Ego está inflado com a identificação exagerada neste papel, ocorre que o indivíduo vê-se nesta situação como alguém da mesma forma importante;
  3. a partir de uma experiência onde há um reconhecimento de sua capacidade, o indivíduo passa a se comportar de forma arrogante, não ouvindo pessoas e nem sinais sobre sua soberba e a persona atua como se aquele fosse o papel e missão central de sua existência.

Esta inflação egóica, na dinâmica psíquica, faz com que o Ego, além de ficar cada vez mais distanciado dos outros arquétipos, forme uma sombra tão potente quanto sua persona. Podendo ser facilmente dominado pela anima ou animus e por complexos autônomos.

EDINGER (1989) porém, nos lembra que o pecado original – quebrar as regras, ultrapassar limites – é necessário e faz parte do nosso processo de desenvolvimento, uma vez que sem cometê-lo, não se teria acesso aos conteúdos inconscientes, e assim, ficaríamos condenados a viver permanentemente em um estado que não proporcionaria uma vivência concreta e relacional.

Em sua biografia “Memórias, Sonhos, Reflexões”, Jung nos fala o seguinte: “Se o Criador fosse consciente de si mesmo, não teria necessidade das criaturas conscientes” (JUNG, 2015, p. 334). Ou seja, o Criador se reconhece através da sua obra. Daí vemos que não só o Ego, mas o Self também precisa deste relacionamento para ter possibilidade de, por meio do Ego, se fazer conhecido e reconhecer-se, manifestando-se através dele.

O Ego quando identificado com o Self (em estado de inflação) pode ir muito além do seu limite e, consequentemente, sofrer uma rejeição. Afinal, todo pecado é punido com um castigo. Nesta condição, o Ego é facilmente tomado por complexos autônomos. E diante de alguma vivência traumática que venha ter com algum conteúdo inconsciente poderá recuar frente à uma ameaça.

A alienação

Deste modo, o Ego deixa de estar ligado ao centro superior, entrando em um estado que EDINGER (1989) chamou de alienação. A alienação psíquica surge com a separação, pois, a separação é uma condição necessária para que se venha estabelecer um eixo diante da diferenciação crescente, e por vezes drástica, entre as duas instâncias. É como se a possibilidade de comunicação entre Ego e Self fosse interrompida e o Ego sente como não mais fazendo parte deste todo. 

O Ego neste estágio, perde toda sua força. A parte separou-se do todo, ou melhor, pode-se dizer que numa perspectiva do Ego, o todo abandonou a parte. Existe, neste estado, um aspecto positivo, que é o fato de que, o Ego alienado perde sua identificação com o Self e sua consequente inflação, mas no seu aspecto negativo, o eixo danifica-se, causando um vazio e uma falta de sentido. É nesta condição que ocorrem grandes questionamentos. Muitas pessoas, por conta disto, podem desenvolver diversas somatizações chegando até a um quadro de depressão por uma consequente regressão da libido ao inconsciente, provavelmente em busca deste sentido que ficou perdido, não se sabe bem onde.

A alienação, com este vazio que é despertado no Ego, vem mostrar ao indivíduo a necessidade da consciência e, portanto, da ligação com o Self.

Esta necessidade é comunicada ao Ego por meio de sonhos, doenças e sintomas, erros e desencontros nas decisões da vida.  Se o indivíduo conseguir perceber estes sinais ele poderá então procurar uma reconexão com o seu centro. Estará, assim, através do confronto com estes aspectos sombrios e doentios, voltando a se aproximar do Self, mas sem a pretensão de ser este. Porém, estabelecendo com ele um eixo sadio, para que uma comunicação possa ser mantida.

Podemos dizer que este homem, caso ouça e atenda este chamado, estará, através deste confronto, retirando as barreiras que a alienação criou e liberando o caminho para continuar seguindo em busca do seu desenvolvimento psíquico. A alienação seria como que uma “punição para os pecados” que, vistos sob uma ótica psicológica, são a própria inflação. Ao cometer o pecado, o indivíduo desafia a lei sagrada, aproximando-se dos deuses e causando neles o que Edinger chama de inveja, sendo por isso castigados por tal façanha.

HENDERSON em “O Homem e seus Símbolos”, faz a seguinte colocação acerca desta ideia:

“Por quanto tempo podem os seres humanos alcançar sucesso sem caírem vítimas de seu próprio orgulho ou, em termos mitológicos, da inveja dos deuses?”

(HENDERSON, 1997, p. 113)

Isto porque o orgulho era algo extremamente temido pelos gregos. Eles sabiam que caso cometessem o que era por eles chamado de hybris (orgulho cego) tal atrevimento seria cruelmente punido pelos deuses que não admitiam a possibilidade de os mortais tentarem se igualar a eles.

A alienação, pode ser tida como a separação daquela centelha divina que possuímos. E a busca dessa centelha será a busca de sentido para a vida. Seu encontro trará uma tranquilização para a alma humana. Portanto é necessário, por parte do Ego, que este sentimento de derrota seja aceito como uma etapa importante no desenvolvimento da consciência, para que assim possa ocorrer transformação. Conforme Edinger:

A alienação não é um beco sem saída. Podemos alimentar a esperança de que ela leve à uma consciência maior com relação às alturas e profundidades da vida” (EDINGER, 1989, p. 79).

Individuação

Quando falamos do caminho de tomada de consciência e de sua amplificação, estamos falando do caminho da individuação. Neste caminho, passa-se pela inflação e pela alienação. Então podemos entender que a individuação se caracteriza por uma possibilidade de comunicação entre o Ego e o Self, porém sem interferências negativas.

Na individuação o Ego passa a não ser mais o centro. Ele se subordina ao Self, porém isto não significa dependência e nem mais uma derrota para o Ego.

Neste ponto do desenvolvimento, o Ego assume seu papel no funcionamento da estrutura psíquica e o aceita naturalmente, pois, sua função é grandiosa e importante. Contudo, não é maior e nem mais importante do que o próprio centro. Conforme nos diz Jung a respeito da individuação: “…nos tornamos o nosso próprio Si-mesmo” (JUNG, 1991b, § 266). Não mais nos identificando com ele, mas sendo e pertencendo a ele. Sentindo isto através de um eixo equilibrado que o Ego desenvolveu para poder chegar até esta condição.

Edinger, assim como Jung, também nos fala da projeção religiosa como uma forma possível e, até certo ponto, saudável para manter o eixo.

Entretanto, dentro de uma cultura ocidental, a religião não vê o Self (Imago Dei) como parte integrante do indivíduo, mas como algo fora dele. O que dificulta o relacionamento e causa uma dependência desfavorável ao processo de individuação:

Não me dirijo também aos beati possidentes (felizes donos) da fé, mas às numerosas pessoas para as quais a luz se apagou, o mistério submergiu e Deus morreu. Para a maioria não há retorno possível e nem se sabe se o retorno seria o melhor. Para compreender as coisas religiosas acho que não há, no presente, outro caminho a não ser o da psicologia; daí o meu empenho de dissolver as formas de pensar historicamente petrificadas e transformá-las em concepções da experiência imediata. (JUNG, 1995, § 148)

Vivemos hoje, creio em um panorama mundial, um estado em que se busca uma identificação divina cada vez maior (vide os avanços tecnológicos tendo em seu nome e mérito a destruição da natureza). Ao mesmo tempo, o mundo cai em uma alienação sem se aperceber disto, o que ocasiona no polo oposto tantas desavenças entre povos e pessoas.

Talvez este estado tão grande de inflação, vivido hoje em dia, seja até mesmo uma forma de se evitar o contato com a alienação que, se não puder ser simbolizada para a busca de um sentido maior e restituição do eixo Ego – Self, pode até mesmo destruir o homem; esta já nos bate à porta.

São em situações e condições como estas que surgem os grandes heróis sociais. O herói é um modelo de construção do Ego, e como estamos distanciados do nosso centro, projetamos esta possibilidade de realização egóica/heroica em outras pessoas. Estas figuras são eleitas como os grandes salvadores da população – que se encontra neste estado desagregado – e recebem a projeção do nosso Self coletivo.

Agora, será que estas pessoas suportam tamanha carga?

Qualquer ato de solidariedade humana hoje em dia, é visto não mais como algo possível e natural, pertencente a alma humana, mas a pessoa que adota tal atitude, frente ao coletivo, será provavelmente um salvador e receberá esta enorme carga projetiva, sendo vítima do Self coletivo. Algo que deveria ser visto como grandioso sim, porém, pertencente e possível a todos, torna-se à partir desta vivência social destorcida, destrutivo para aquele que o realiza.

A individuação não pressupõe uma pessoa individualista, mas ao contrário, muito engajada na coletividade, porém sem diluir-se nela, e sem deixar que esta dite o seu rumo. É através desta relação do indivíduo com o coletivo, que se pode perceber o quanto de equilíbrio existe em sua personalidade, e o quanto o indivíduo funciona de acordo com os desejos do seu Self. O indivíduo que se encontra no caminho da individuação, não possui necessidade de projetar sobre os outros, seus conteúdos sombrios, pois consegue reconhecer estes em si mesmo.

A individuação consiste, portanto, em reconciliar os opostos.

A individuação consiste, portanto, em reconciliar os opostos. De modo que estes opostos se complementem a partir da tensão criada neste conflito do consciente com o inconsciente. Este equilíbrio é desejado e idealizado, porém o caminho para se chegar até ele é bastante concreto, real e um exercício diário.

Nessa conversa de alma entre Ego e Self, que entendo como caminho da individuação, temos contatos com símbolos de transformação e de transcendência, através dos sonhos, visões, sintomas ou da própria experiência refletida, que nos mandam mensagens de unificação da personalidade, e que são enviados para a consciência, para serem por ela amplificados.

É um Ego sadio e flexível que irá cumprir sua função. Lidando adequadamente com as possíveis barreiras, no intento de realizar a nossa missão de uma vida com sentido, realizando assim os desejos do Self.

Estas fases de inflação e alienação, que sob um determinado ponto de vista podem fazer com que o Ego se enfraqueça e se desorganize, são processos necessários e importantes na construção da dialética do consciente com o inconsciente. Contudo, conforme Edinger nos fala, não pode haver estagnação e cristalização em nenhuma delas, para que o desenvolvimento e a consequente ampliação da consciência possam acontecer.

É imprescindível ressaltar aqui, que a separação entre Ego e Self, nunca é total, pois o eixo precisa continuar a existir; e não se dá de uma única vez, ela é progressiva e precisa ser constante e irá acontecer durante toda vida.

Para encerrar, deixo um escrito de Fernando Pessoa que nos leva de forma leve e poética a uma reflexão sobre este eterno fluxo que é a vida.

Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu ?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Referências:

EDINGER, EDWARD F.. Ego e Arquétipo. Individuação e Função Religiosa da Psique. 1ª ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1989.

JUNG, C. G..  O Desenvolvimento da Personalidade. 5ª ed., Petrópolis, Ed. Vozes, 1991a, Vol. XVII.

________. O Eu e o Inconsciente. 9ª ed., Petrópolis, Ed. Vozes, 1991b, Vol. VII/2.

________. (org.) O Homem e seus Símbolos. 15ª impressão, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1997.

________. Memórias, Sonhos, Reflexões., s/ed. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2015.

________. Psicologia e Religião, Petrópolis, Ed. Vozes, 1.995, 5ª ed. Vol. XI/1.

NEUMANN, ERICH. A Criança. 1ª ed., São Paulo, Ed. Cultrix, 1991.

PESSOA, F. Novas poesias inéditas. 4ª ed. Lisboa. Ed. Ática, 1993.

PESSOA, F.  O Guardador de Rebanhos, In Poemas de Alberto Caeiro.  10ª ed. Lisboa. Ed. Ática. 1993.

Gilmara Marques Fadim Alves – Analista em Formação IJEP

Cristina Guarnieri – Analista Didata IJEP

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