A aposentadoria é um fenômeno historicamente recente. Teve início na sociedade industrial e sofreu algumas modificações, no decorrer do tempo, com a finalidade de garantir ao trabalhador o direito de se afastar da atividade profissional que exerceu com regularidade durante a vida e continuar recebendo uma remuneração, após ter cumprido as condições estabelecidas pelo direito previdenciário.
Com o crescimento da expectativa de vida da população brasileira, o número de pessoas que adquire a condição legal para aposentar-se teve um aumento significativo, sendo que muitas delas sentem dificuldade em lidar com esse momento de transição.
O estudo da aposentadoria é um campo de pesquisa novo na área da psicologia, mas não menos relevante diante da realidade do aumento do percentual de pessoas que estão passando por esse processo.
Diante disso, este artigo visa uma reflexão sobre o tema e uma melhor compreensão sobre as dificuldades que alguns indivíduos encontram para dar sentido à vida durante o processo da aposentadoria, segundo a perspectiva da psicologia analítica.
A vida segue seu percurso na forma de uma parábola composta por várias fases, onde cada uma corresponde a múltiplos aspectos a serem experienciados, visando ao desenvolvimento integral do indivíduo.
Jung compara o processo do desenvolvimento humano ao percurso da parábola realizada pelo sol, fazendo uma analogia do que ocorre ao meio dia com a metade da vida do indivíduo, ressaltando as inversões dos valores que acontecem a partir deste período.
Na visão do autor, na primeira metade da vida o ser humano tem como meta realizar o movimento de crescimento e realização voltado para a adaptação ao mundo exterior. O crescimento é direcionado para lidar com o mundo social. O jovem luta para ser aceito e conquistar um lugar na sociedade, escolhe uma profissão, torna-se um especialista, constrói uma família, dedica-se para adquirir bens materiais e status social, modificando a própria natureza para se adaptar às exigências externas.
Com o objetivo de ser aceito, o sujeito cria uma máscara ou persona para apresentar-se ao mundo externo, através da qual busca adaptar-se às convenções de cunho moral, social, político, filosófico e religioso impostas pela sociedade. Para Magaldi “a persona representa a proteção que uma pessoa usa para confrontar-se com o mundo. A persona está ligada ao status social, à profissão, ao trabalho exercido, à identidade sexual, entre outras formas de reconhecimento social” (MAGALDI, 2009, p. 177). Nesse sentido, a persona apresenta-se como fator positivo que facilita a atuação nos diversos papéis sociais, no decorrer da vida.
Por outro lado, a persona também pode se desenvolver de forma patológica, quando o indivíduo fica identificado com o papel desempenhado por ela, pois exclui partes essenciais de sua totalidade. Jung ressalta que “em benefício de uma imagem ideal, à qual o indivíduo aspira moldar-se, sacrifica-se muito da sua humanidade” (JUNG, 2015, p. 46).
Na segunda metade da vida, período a partir do qual o indivíduo tende a atingir o ápice de suas conquistas externas, ocorre uma inversão natural da energia psíquica, visando ao desenvolvimento interior e conscientização das projeções externas, a fim de tornar-se fiel à expressão de sua totalidade. Neste momento, o indivíduo é convidado à introspecção, ao autoconhecimento, aos questionamentos dos antigos valores, à busca do sentido para a vida. Jung esclarece que “a causa fundamental de todas as dificuldades dessa fase de transição é uma mudança singular que se processa nas profundezas da alma” (JUNG, 2013a, p. 352).
Sobre essa mudança, o autor salienta:
Entramos totalmente despreparados na segunda metade da vida, e pior do que isto, damos este passo sob a falsa suposição de que nossas verdades e nossos ideais continuarão como dantes. Não podemos viver a tarde da nossa vida segundo o programa da manhã, porque aquilo que era muito na manhã, será pouco na tarde, e o que era verdadeiro na manhã, será falso no entardecer (JUNG, 2013a, p. 785).
Ao entrar no entardecer da vida, faz-se necessário reconhecer a importância das conquistas e experiências vividas na primeira etapa. Contudo, é imprescindível compreender a necessidade de renunciar aos papéis vividos e à identidade da juventude, bem como entender que cada fase possui a sua importância e precisa ser vivida plenamente de acordo com suas demandas peculiares.
Com isso, viver com entusiasmo é essencial para obter o melhor desenvolvimento em cada fase da vida. Jung ressalta que “o indivíduo deve entregar-se ao caminho com toda a sua energia, pois só diante da sua integridade poderá prosseguir e só ela será uma garantia de que tal caminho não se torne uma aventura absurda” (JUNG, 2017, p. 45).
Considerando que a persona é uma construção psicológica e social adotada pelo indivíduo para um determinado fim, então, ela pode ser dissolvida e reconstruída, de acordo com a necessidade de adaptação no decorrer da vida. No entanto, o indivíduo frequentemente identifica-se com a persona e com os papéis que desempenha durante a vida. Geralmente, quanto mais prestígio oferece um papel, maior é a tendência de o sujeito identificar-se com ele.
O homem moderno é submetido durante toda a vida às influências da cultura patriarcal, com suas ideologias familiares, éticas, históricas e religiosas e, consequentemente, moldado para atender as expectativas da sociedade e oprimir as características da própria alma. É educado para ser julgado e valorizado pela sua produtividade, negligenciando o mundo interior e acreditando ser o papel que desempenhou durante a vida que foi sua principal fonte de reconhecimento, prestígio e poder.
Entretanto, quando chega o momento da aposentadoria, depara-se com a necessidade da mudança e, num instinto natural de resistência, tende a se agarrar aos padrões antigos. Não conseguindo se diferenciar do papel profissional que representou, encontra dificuldades em dar um novo sentido para a vida, mesmo tendo oportunidade de usar seu tempo para atividades que lhe proporcione prazer. Mas como fazer isso, sem ter buscado o autoconhecimento e se preparado ao longo do caminho?
Para Hollis, a partir da segunda metade da vida, surge a necessidade de responder ao questionamento: “Quem sou eu, além da minha história e dos papéis que representei?” (HOLLIS, 1995, p. 25).
Na visão de Santos “o sujeito que investiu no papel profissional de tal forma que ele se tornou a principal ou a única forma de engajamento social, de reconhecimento, de prestígio ou de poder, a aposentadoria será vivida de forma dolorosa e difícil” (SANTOS, 1990, p. 28).
Por outro lado, a autora salienta que “se o sujeito construir durante a vida outras fontes de reconhecimento e valorização, a perda do papel profissional e as mudanças que daí decorrem são vividas de forma menos problemática” (SANTOS, 1990, p. 29).
No entanto, mesmo passando pelas perdas, o sujeito precisará se adaptar e reorganizar seus papéis. Considerando que, após a aposentadoria, o indivíduo não poderá contar com o papel profissional que lhe serviu de máscara no decorrer de anos, ele será obrigado a olhar para dentro, tomar consciência das características desconhecidas, diferenciar o que é seu do que foi imposto pela socialização, e assim, reconhecer e integrar novos papéis com o objetivo de encontrar sentido para a vida.
Assim, a aposentadoria surge como oportunidade para o indivíduo questionar valores e olhar para dentro de si, a fim de entregar-se ao seu próprio caminho na busca do sentido para a vida e do significado existencial, não apenas com foco na sobrevivência biológica e no valor profissional.
Entender o valor do papel profissional na formação da identidade do sujeito é fator fundamental para compreender por que alguns indivíduos apresentam dificuldade em dar sentido à vida após a aposentadoria.
Assumir a condição de aposentado de forma brusca, sem reflexão e preparação prévia, potencializa a ocorrência de problemas no reposicionamento e no engajamento na estrutura social, e, consequentemente, implicações no plano pessoal. Portanto, torna-se essencial planejar e buscar novas áreas de interesses, incentivando a descoberta de potencialidades não desenvolvidas e o reconhecimento das limitações orgânicas, para que sejam mitigados os conflitos que emergem nessa fase da vida.
O momento da aposentadoria, como foi explicitado, geralmente coincide com a maturidade psicológica, reunindo características psíquicas peculiares dessa fase.
Para Jung:
A tarde da vida deve ter também um significado e uma finalidade próprios, e não pode ser apenas o lastimoso apêndice da manhã da vida. […] Quem estende assim a lei da manhã, isto é, o objetivo da natureza, até a tarde da vida, sem necessidade, deve pagar este procedimento com danos à sua alma. […] A preocupação em ganhar dinheiro, a existência social, a família, o cuidado com a prole são meras decorrências da natureza, mas não cultura. Esta situa-se para além da esfera dos objetivos da natureza (JUNG, 2013c, p. 356).
Deste contexto, podemos inferir que o entardecer da vida torna-se doloroso caso o indivíduo continue preso de maneira regressiva aos objetivos da juventude, como se esse padrão fosse de natureza eterna. O desenvolvimento da cultura que proporciona ao indivíduo a conexão com a alma faz-se necessário nesse momento, a fim de proporcionar, de forma saudável, o encerramento de um ciclo e o início de outro. Assim, o que é importante para o jovem encontrar no mundo externo, a fim de realizar as conquistas necessárias dessa fase, o homem na segunda etapa da vida precisa encontrar dentro de si.
O sentido está ligado à conexão com a alma, a desenvolver a vida respeitando o ser. Assim, no momento da aposentadoria, o encontro do sentido é o grande desafio a ser vencido, a fim de obter motivação para continuar a vida. França ressalta que “o projeto de vida pode ser tão importante a ponto de curar, postergar ou estacionar uma doença” (FRANÇA, 1999, p. 23).
Conclui-se, assim, que a maior dificuldade em encontrar sentido para a vida após a aposentadoria ocorre quando o indivíduo permanece preso ao valor psicossocial e à rotina do papel profissional que executou durante a sua fase laboral. Isso geralmente acontece pela falta de autoconhecimento que dificulta compreender e acolher as diversas facetas do si mesmo e encontrar a melhor forma de transição para essa nova etapa da vida e, também, pela falta de planejamento que, por sua vez, prejudica uma melhor adaptação ao momento em que se encontra o indivíduo.
O autoconhecimento surge como alternativa para os momentos de passagem, viabilizando o planejamento da nova fase e permitindo um olhar cuidadoso que, por sua vez, possibilita ao indivíduo entrar em contato com aspectos inconscientes, integrando-os à consciência e promovendo a realização possível da personalidade. A conexão com a alma estabelecida pelo autoconhecimento permite descobrir o sentido para a vida de acordo com as peculiaridades do ser no momento em que se encontra.
Dessa forma, podemos constatar que o autoconhecimento, atrelado ao planejamento, é essencial para o processo da aposentadoria. Juntos, permitem que seja vislumbrado um caminho para a adaptação do indivíduo à nova realidade, respeitando as demandas da alma e proporcionando a vivência saudável desse novo ciclo da vida.
Caroline Santos Costa – Analista em Formação pelo IJEP
Analista didata – Waldemar Magaldi
Referências bibliográficas
FRANÇA, Lucia Helena de F.P. Preparação para a aposentadoria: desafios a enfrentar. In: VERAS, Renato Peixoto. Terceira idade: alternativas para uma sociedade em transição. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. p. 11-34.
HOLLIS, James. A passagem do meio: da miséria ao significado na meia-idade. São Paulo: Paulus, 1995.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
______. O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
______. O segredo da flor de ouro: um livro de vida chinês. Petrópolis: Vozes, 2017.
MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica. 2. ed. São Paulo: Eleva Cultural, 2009.
SANTOS, Maria de Fátima. Identidade e aposentadoria. São Paulo: Epu, 1990.