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Sexo sem amor: liberdade sexual ou compensação adoecedora?

Sexo sem amor: liberdade sexual ou compensação adoecedora?

Sexo sem amor: liberdade sexual ou compensação adoecedora?

O presente artigo provoca a reflexão sobre a liberdade sexual contemporânea como possível compensação extrema das repressões do passado, alertando para suas potenciais consequências negativas.

Maria — nome fictício — senta na poltrona mostrando-se ansiosa e dispara — Hoje eu sou apenas conflito! — e ri, sorrindo um sorriso que apenas a dor consegue expressar. Há um pouco mais de seis meses havia feito sua primeira sessão analítica e rapidamente deixou claro que o objetivo de vida dela era conseguir viver o que sua mãe, sua avó e sua bisavó não puderam por causa da repressão que sofreram dos homens da família e da sociedade no passado. Com esse objetivo guiando sua vida, conquistou tudo aquilo que, segundo ela, suas ancestrais não puderam: uma carreira profissional de sucesso, um estilo de vida invejável — com viagens para vários países e muitos amigos — e uma liberdade sexual que, segundo ela, “décadas atrás seria motivo de prisão”.

Algumas semanas depois da primeira sessão, era fácil perceber que, apesar de todo esse “sucesso”, algo parecia estar fora do lugar. O corpo de Maria gritava sintomas diversos, que envolviam principalmente o aparelho genital feminino como um todo. E após alguns meses se observando com a atenção sugerida, ela percebeu que esses sintomas pareciam aflorar quando ela atravessava vivências sexuais mais “liberais”, como festas sexuais em grupo ou quando tinha relações com homens que havia acabado de conhecer — e que depois não voltaria a contactar.

Pois bem… Seis meses se passaram, e muitos sonhos e imagens internas foram ampliadas até o dia em que ela se definiu e se reduziu como um “conflito”.

— Eu não desejo ser como minhas ancestrais foram. O que eu conquistei tem um valor enorme e jamais abriria mão disso… Mas, ao mesmo tempo, parece que virei refém dessa minha liberdade, a ponto de não conseguir mais me conectar de verdade com alguém. O sexo parece ter virado apenas um conjunto decorado de técnicas e movimentos robóticos. E isso tem me destruído tanto quanto a repressão patriarcal parece tê-las destruído no passado. Eu provavelmente fui a primeira mulher da minha família a experimentar um orgasmo sexual… Mas hoje esses orgasmos parecem não valer nada. São apenas mais um “check” de uma lista obrigatória que não me nutre em nada.

Não são novidade as marcas que muitos de nós carregamos individualmente pelas repressões sexuais de um passado pessoal, ou carregamos individualmente por sermos vítimas da compensação adoecida daqueles que foram reprimidos ou já foram vítimas da compensação adoecida de outros – abusos e outras violências sexuais. Todavia, falar sobre a possibilidade de compensação de repressão sexual levando em consideração apenas a carga psíquica individual é deixar de levar em consideração, em nossa opinião, toda a carga coletiva que nos parece tão predominante quanto a carga individual dessa repressão.

Ao longo dos últimos anos, observamos e acompanhamos várias “Marias” e alguns “Joões” com esta mesma dinâmica. Pessoas adultas, de idades diversas, vivendo, muitas vezes com orgulho, uma tal liberdade sexual que mais parece uma prisão que uma libertação. E é com base nisso que tecemos as provocações de hoje: será que vivemos uma liberdade sexual verdadeira e saudável, ou isso que experimentamos — a intensidade, a liberdade, o exagero e a falta de regras como regra — é apenas um movimento compensatório após a repressão sexual das gerações e séculos anteriores, que nos leva ao outro polo também extremo e, portanto, também de unilateralização adoecedora?

Será que este é realmente o objetivo final? Ou estamos apenas perdidos e iludidos, aprisionados em nossas conquistas cada vez mais extremadas daquela liberdade que nos faltava em um passado relativamente recente?

Essa tal “liberdade” sexual não tem significado nem de longe uma felicidade ou uma boa saúde sexual. Pelo contrário, ao que é facilmente observado na clínica analítica, apesar de enormes e necessárias conquistas nessa área, principalmente por parte das mulheres e homossexuais, que sofreram por séculos os massacres de um patriarcado adoecido, o número de pessoas que chegam às sessões com demandas relacionadas à sexualidade continua alto.

E, por mais que haja uma busca, claro, que é consequência de uma sociedade que agora permite que os indivíduos não sofram calados como sofriam os das gerações passadas, ainda podemos concluir que a quantidade de indivíduos com sintomas e demandas direta ou indiretamente relacionados à sexualidade e que causam sofrimento é enorme, e que a vida sexual intensa e desregrada, sem as duras repressões do passado, não parece fazer isso melhorar — em vários casos o que vemos é o oposto, a desorganização sexual individual é um causador, senão potencializador, das mazelas do indivíduo, inclusive de sua incapacidade de se relacionar profundamente com o outro.

O que propomos hoje para nossa reflexão, vale salientar, é ir além das compensações pessoais ou familiares.

Não pela sua falta de importância, mas porque nos atrevemos a afirmar que estamos compensando eras inteiras, como, por exemplo, a era vitoriana. Vejamos… O que conhecemos como “era vitoriana” foi um período situado entre os anos de 1837 e 1901. Para este trabalho, a característica que nos importa em relação a esse período é exatamente a forte repressão sexual que existia à época.

O próprio Jung, em sua obra O espírito na arte e na ciência, diz que:

“[45] A época vitoriana é a época da repressão, uma obstinada tentativa de conservar artificialmente vivos, através do moralismo, os ideais anêmicos que estavam de acordo com a compostura burguesa. Esses ‘ideais’ eram as últimas ramificações das representações religiosas comuns da Idade Média […]” (JUNG, 2013b, p. 39).

Sobre as consequências diretas dessa repressão há vasto material, incluindo trabalhos do renomado psicanalista Sigmund Freud. Dentre estes estudiosos destaca-se o trabalho de Wilhelm Reich – com algumas ampliações ainda atuais, apesar de limitadas pelo espírito da época. Em sua poderosa e polêmica obra publicada em 1942, A função do orgasmo, Reich faz uma ligação direta e clara entre os sintomas psicológicos que ele observava em vários de seus pacientes e os impulsos sexuais reprimidos, afirmando que “O homem é a única espécie biológica que destruiu sua própria função sexual natural e está doente em consequência disso.” (REICH, 1990, p. 92).

Para compreendermos melhor o que essa repressão significa na psique dos indivíduos, nós voltaremos à psicologia analítica de Jung. Mais precisamente, à obra Símbolos da Transformação, onde o autor defende que:

[581] Todo extremo psicológico contém secretamente o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar. […] quanto mais extrema se tornar uma posição, tanto mais se pode esperar a sua enantiodromia, sua reversão para o contrário. (JUNG, 2013c, p. 441).

E sobre o termo enantiodromia, podemos citar outra importante obra do mesmo autor, Tipos Psicológicos:

[795] (798) Com o termo enantiodromia quero designar a oposição inconsciente no decorrer do tempo. Este fenômeno característico ocorre quase sempre onde uma direção extremamente unilateral domina a vida consciente de modo que se forma, com o tempo, uma contraposição inconsciente igualmente forte e que se manifesta, em primeiro lugar, na inibição do rendimento consciente e, depois, na interrupção da direção consciente. (JUNG, 2013d, p. 444)

Trazendo isso para a temática deste artigo, podemos compreender que a repressão sexual não acaba com os impulsos sexuais, mas apenas os varrem para o mundo sombrio do inconsciente, onde acumula energia até que se torne capaz de invadir e guiar o indivíduo perigosamente em sua direção.

Isso foi exatamente o que Rajneesh Chandra Mohan Jain, conhecido mundialmente como Osho, afirmou em vários de seus discursos que foram transformados em livros.

Em sua obra tântrica Do sexo à supraconsciência, ele afirma que os ocidentais passaram séculos tentando inutilmente se livrar do sexo, que é algo inerente a eles, e que, por isso, foram dominados exatamente pela força que tentaram bloquear — citando a “Lei do Efeito Inverso”, do psicólogo francês Émile Coué, que afirma que acabamos por colidir com tudo aquilo que tentamos negar, pois o objeto do nosso medo torna-se o centro de nossa consciência. Para Osho, “A Lei do Efeito Inverso capturou a alma do homem” (OSHO, 1993, p. 50). Por isso o sexo está em todo lugar de forma distorcida e doente.

Para reforçar a ideia aqui demonstrada, podemos também citar outro profissional que, assim como Reich, dedicou boa parte de sua vida aos estudos da sexualidade: Alexander Lowen, médico psicanalista americano, que foi paciente e discípulo de Reich, antes de desenvolver e atualizar as teorias reichianas na chamada bioenergética – uma terapia que, assim como a reichiana, estrutura seu alicerce nos trabalhos diretos com o corpo.

Lowen, pegando como base exatamente a repressão da era vitoriana, diz que o que apresentamos de sexualidade décadas após o fim dessa época não é liberdade sexual, mas sim uma confusão sexual — apesar das experiências e liberdades experimentadas.

Segundo ele, o moralismo da época vitoriana não foi resolvido, mas apenas moldado e limitado ao campo emocional. Assim, o sexo passou a ser permitido, mas de forma compensatória, completamente dissociada do amor, o que acabou por afastar os sentimentos do ato sexual em si, transformando-o em algo dominado por técnicas, posições variadas, teorias e desejos, mas sem emoção — os “checks” de Maria. E essa dinâmica, segundo ele e o próprio Reich, seria a causa de adoecimentos dos indivíduos, dentro dessa nova moralidade, quando os sentimentos naturais passam a ser confundidos com pornografia — fantasiada de liberdade sexual.

Em suma, durante séculos os homens reprimiram arduamente a sexualidade, mas essa repressão não destruiu a sexualidade em si, mas a transformou em sombra, fortalecendo sua expressão inconsciente dominante e distorcida.

Mais à frente, a partir do fim da era vitoriana, em uma tentativa de compensação imatura desse passado de repressão — enantiodromia —, os indivíduos passaram a alimentar e a buscar de maneira extremada a tal “liberdade” sexual, que se apresentou distorcida, falha e adoecedora.

Essa “nova” sexualidade apresentou-se desconectada dos sentimentos e da conexão entre os indivíduos.

Portanto, o que deveria ser uma expressão natural de amor — em suas diversas formas —, tornou-se um ato superficial e compulsivo, incapaz de suprir as necessidades emocionais naturais. Ou seja, talvez toda essa “liberdade” sexual, com suas limitações emocionais, tenha transformado o sexo em apenas pornografia, alimentando as angústias humanas em vez de aliviá-las.

O próprio Jung, também dentro dos limites da época e de ser quem é e de onde fala, chega a mostrar o que ele acredita serem consequências dessa compensação sexual na vida das pessoas, mais precisamente quando ele está observando e analisando a vida dos americanos, na obra Civilização em transição:

[958] Pode-se observar isto sobretudo no problema sexual americano […]. Há uma tendência acentuada para a promiscuidade que se manifesta não só nos inúmeros divórcios mas também na liberação da geração mais jovem quanto aos preconceitos sexuais. Consequência inevitável é a deterioração do relacionamento individual entre os sexos. Um acesso fácil não desafia os valores do caráter e por isso também não os desenvolve, dando origem a sérios obstáculos para um entendimento mútuo mais profundo. Este entendimento, sem o qual não existe verdadeiro amor, só é alcançado superando-se todas as dificuldades inerentes à diferença psicológica entre os sexos. A promiscuidade paralisa todos esses esforços porque oferece oportunidades fáceis de fuga. E o relacionamento individual se torna muito supérfluo.

Quanto mais predominarem uma assim chamada liberdade sem preconceitos e a fácil promiscuidade, tanto mais o amor se tornará banal e degenerará em interlúdios sexuais transitórios. Os desenvolvimentos mais recentes no campo da moralidade sexual tendem para o primitivismo sexual, a exemplo da instabilidade dos costumes morais dos povos primitivos onde, sob a influência da emoção coletiva, todos os tabus sexuais desapareciam na mesma hora. (JUNG, 2013a, p. 227)

Porém, se o lugar onde parecemos estar no momento não parece ser saudável, o que devemos fazer?

Parece-nos óbvio que a ideia conservadora retrógrada de retornar às eras das práticas de repressão, misoginia, homofobia, etc. — que ainda existem hoje em certo grau, de maneira diluída em alguns países e escancarada em outros — está fora de cogitação. Não pretendemos defender que as conquistas sejam queimadas como as mulheres consideradas bruxas, por pensarem diferente, o foram na idade média. Muitas dessas conquistas vieram exatamente porque eram necessárias. E outras ainda estão por vir. O que devemos, como profissionais de psicoterapia e análise, talvez seja ajudar nesse processo de conscientização do estado atual e confronto necessários para as transformações que ainda necessitam existir.

Como humanidade, precisamos enxergar que, dentro deste mundo hipermoderno de internet, aplicativos de encontros sexuais e acesso quase ilimitado a novas experiências, de tipos cada vez mais variados, a compensação da repressão de maneira tão extremada como o era a própria repressão não é o objetivo final. Como o próprio Jung afirma em a Psicologia do inconsciente:

“[…] A enantiodromia, ameaça inevitável de qualquer movimento que alcança uma indiscutível superioridade, não é a solução do problema, porque em sua desorganização é tão cega quanto em sua organização”. (JUNG, 2014, p. 84)

Mas, então, qual seria a solução do problema?

Compensações extremadas, conscientes ou não, são apenas jogos de polarizações que contradizem o todo integral do processo de individuação que precisamos percorrer. E enquanto não trouxermos para a consciência a necessidade de integrarmos e agirmos conscientes dentro dessa esfera da sexualidade, pouco sairemos desse ciclo onde um extremo apenas trará o outro, em um imposto e inevitável movimento pendular eterno (assim como já víamos isso em um passado mais distante, por exemplo, com a Idade Média repressiva parecendo se contrapor às liberdades sexuais imaturas, por exemplo, da era romana da história, com seus bacanais públicos e práticas diversas).

Não à toa, estamos observando o forte crescimento de movimentos repressivos, conservadores e retrógrados em vários países do ocidente, inclusive no Brasil, onde acabamos de sair de um governo declaradamente conservador que dizia lutar contra a “libertinagem e a degradação dos costumes das pessoas de bem”. Além de estarmos observando na clínica as gerações mais novas parecerem cada vez mais desconectadas da sexualidade, do corpo e do outro, para além daquela conexão virtual das redes sociais. O que seria isso, pelo menos em parte, se não uma tentativa de compensação dessa pseudo liberdade sexual que estamos vivendo?

Em suma, Reich, Lowen, Osho e Jung parecem concordar com a necessidade de se integrar a sexualidade e os impulsos sexuais, em vez de reprimi-los, já que essa repressão sempre nos transformará em escravos dessa sexualidade distorcida que sempre será consequência da repressão. Essa integração, porém, é uma transformação daquilo que conhecemos até hoje, e não um fortalecimento sem reflexão do que foi conquistado. Não está em nenhum dos extremos, nem da repressão, muito menos dessa tal “liberdade” sexual. O caminho, talvez, seja o que envolve a reinserção, agora de maneira consciente e madura, do amor — em suas diversas facetas saudáveis — na sexualidade.

E para que isso aconteça, o sexo deverá deixar de ser apenas ferramenta de compensação coletiva ou individual.

Deverá deixar de ser somente desempenho, vício, distração sem valor e expressão das mais densas sombras humanas. Lowen um dia escreveu que “há uma grande necessidade de se compreender a sexualidade como uma expressão emocional” (LOWEN, 1988, p. 10), e, talvez, esse seja o nosso grande desafio… Afinal, em boa parte do globo ocidental, conquistamos o direito de nos relacionar sexualmente com quem desejamos e, muitas vezes, quando desejamos, mas parece que, pelo meio do caminho, desaprendemos a amar.

E, como o Osho costumava afirmar: “O sexo é a energia mais vibrante do homem, mas não deve ser um fim em si mesmo: o sexo deve levar o homem à sua alma. A meta é ir da luxúria à luz” (OSHO, 1993, p. 66).

Leandro Scapellato – Membro analista em formação/IJEP

Waldemar Magaldi – Membro analista didata/IJEP

REFERÊNCIAS:

ERA vitoriana. In: WIKIPÉDIA: a enciclopédia livre. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Era_vitoriana. Acesso em: 27 nov. 2022.

JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.

JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2013c.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2013d.

JUNG, Carl Gustav. A psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

LOWEN, Alexander. Amor e Orgasmo: guia revolucionário para a plena realização sexual. 4. ed. São Paulo: Summus Editorial, 1988.

RAJNEESH, Bhagwan Shree (Osho). Do Sexo à Supraconsciência. São Paulo: Cultrix, 1993.

REICH, Wilhelm. A Função do Orgasmo. 5. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.

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