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SINTOMA: POSSÍVEIS LEITURAS MITOPOÉTICAS

Esse artigo propõe uma leitura mitopoética a partir de um olhar que reflita sobre o sintoma como um chamado da alma, uma tentativa do Self de estabelecer uma comunicação com o sujeito, onde ele (o Self) lança mão de um sistema de códigos próprio (os símbolos), de suas próprias ferramentas de comunicação (sintomas, sonhos, expressões criativas, sincronicidades) e de interpretação (a leitura mitopoética), apresentando-os como elementos que constituiriam as bases do processo analítico.

Resumo: O presente artigo propõe uma leitura mitopoética a partir de um olhar que reflita sobre o sintoma como um chamado da alma. Uma tentativa do Self de estabelecer uma comunicação com o sujeito, onde ele (o Self) lança mão de um sistema de códigos próprio (os símbolos), de suas próprias ferramentas de comunicação (sintomas, sonhos, expressões criativas, sincronicidades) e de interpretação (a leitura mitopoética), apresentando-os como elementos que constituiriam as bases do processo analítico.

Os sintomas e o processo analítico

         Muitas expressões que utilizamos para descrever um sintoma já apontam para seus efeitos sobre o Ego. Notadamente, para a perda da autonomia e do equilíbrio delicado do organismo. Expressões do tipo “Fiquei sem chão”, “Senti meu peito explodir”, “Minha cabeça girou”, indicam efeitos que remetem ao corpo-mente (psicossomáticos) sendo que, ao mesmo tempo, possuem um tom mitopoético, pois o sujeito, fragilizado, busca na linguagem do dia a dia os modos para expressar as sensações de desconforto experimentadas. O paciente apresentando esses e/ou outros sintomas, caso tenha prontidão para tal, poderá se beneficiar bastante da longa jornada de autoconhecimento que chamamos de processo analítico.

            Os sintomas, antes de representarem doenças que precisam ser eliminadas, podem adquirir, na análise junguiana, o caráter de parceiros dessa jornada. Muitas vezes estão presentes na relação dialética que se estabelece entre analista e paciente. No entanto, sem “roubar a cena”, porque o processo deve ter como objetivo cuidar do paciente e não eliminar os sintomas que o levaram a buscar ajuda.

O sintoma pode ser visto como um ponto de partida, mas, ao mesmo tempo, não precisa ser o protagonista do processo analítico. Isto é, precisamos ir além dele ou mergulhar mais fundo nele.

Sintomas e Complexos

            Na clínica junguiana, falar de sintomas sem falar dos complexos seria o mesmo que deixar uma frase inacabada ou algo em suspenso, porque, segundo Jung, os sintomas são produzidos pelos complexos ao mesmo tempo em que são manifestações destes. Escolho uma definição da Nise da Silveira dos complexos, por me parecer de extrema clareza e objetividade:

São unidades vivas da psique inconsciente e que gozam de relativa autonomia. Temas emocionais reprimidos capazes de provocar distúrbios psicofisiológicos permanentes, que reagem mais rapidamente aos estímulos externos. São manifestações vitais da psique, feixes de forças contendo potencialidades evolutivas que, todavia, ainda não alcançaram o limiar da consciência e, irrealizadas, exercem pressão para vir à tona. (SILVEIRA, 1994, p. 30)

               Apesar de estarem entrelaçados, o fato de se ter complexos não necessariamente implica manifestações de sintomas ou neurose. Mas são eles que, normalmente, deflagrarão os acontecimentos psíquicos e, ainda segundo Jung, “um complexo só se torna patológico, quando achamos que não o temos.” (JUNG, 2013, §179)

            A partir do contexto apresentado pelos sintomas, e suas possíveis leituras mitopoéticas a partir dos complexos, o próximo passo talvez seja analisar a situação, a condição na qual todos esses elementos se conjugam, como sempre o fazem, mas, nesse caso, produzindo uma neurose.

Jung traz à luz os comportamentos, as atitudes do indivíduo que, inconscientemente, conduzem-no a um quadro de dissociação neurótica:

Quanto mais a consciência for influenciada por preconceitos, erros, fantasias, e anseios infantis, mais se dilata a fenda já existente (entre o caminho da nossa individualidade e as diversas adaptações da psique a essas influências) até chegar-se a uma dissociação neurótica e a uma vida mais ou menos artificial, em tudo distanciada dos instintos normais, da natureza e da verdade. (JUNG, 2008, p. 56)

               Sendo assim, a partir de uma condição de polaridade, onde o indivíduo se afasta e, muitas vezes, nega determinados aspectos da sua psique, produzindo preconceitos, intolerâncias, reações exageradas em relação a uma determinada temática, atitude ou situação, mais possibilidades existem dessa “fenda”, dessa cisão, se dilatar. Afastando o sujeito da possibilidade de integrar esses aspectos ao nível da consciência, onde seria possível elaborar tais questões e trazer à luz alguns aspectos sombrios que foram “rejeitados” pelo Ego.

            Está claro que o Ego tenta a todo custo e o tempo todo estruturar a psique em torno de si. Numa tentativa “autoritária” de definir os limites da personalidade, esquecendo que os outros elementos da psique não possuem fronteiras tão delimitadas e, muitas vezes, invadirão seus territórios, produzindo sintomas que também podem se manifestar na forma de sonhos, sincronicidades ou acontecimentos da vida que forçarão o indivíduo a voltar sua atenção para esses aspectos negligenciados.

Jung amplia o conceito de “neurose” e nos faz pensar no conceito de “doença” ou “sintoma” como algo que está além do indivíduo.

A neurose e as patologias em geral são influenciadas e, muitas vezes, determinadas pelo contexto histórico e o analista deve olhar os sintomas também como manifestações de seu tempo. O homem é um ser social e, como tal, refletirá também em seu estado psicofísico os acontecimentos, os costumes e a moral de uma época. O analista precisa estar conectado com seu tempo histórico para ser capaz de interpretar os sintomas de acordo com os valores que cada época produz.

            A prática clínica do início do século XXI vem testemunhando manifestações psicossomáticas que nos remetem a claros estados narcísicos. Como, por exemplo, as patologias do cutting, do suicídio, da condição borderline, dos distúrbios alimentares, e não é por acaso que estamos diante desses sintomas.

A questão é refletir sobre como nós, analistas junguianos, considerando a fenomenologia dessas imagens patológicas que estão se apresentando na clínica, podemos dialogar com elas. Pensando em quais seriam as questões do nosso tempo. O que a clínica traz de muito interessante é, justamente, o registro da intimidade do sofrimento do indivíduo que, ao mesmo tempo, apresenta uma questão coletiva.

Para Jung, os fenômenos neuróticos merecem atenção quando eles se expressam como exageros patológicos.

Para Jung, os fenômenos neuróticos merecem atenção quando eles se expressam como exageros patológicos. Ressalvando que em doses expressivas menores todos nós apresentamos sintomas neuróticos. Mas, quando eles se manifestam de forma tão contundente, podemos ver claramente que o Self está buscando uma forma de comunicação através da qual os efeitos da atitude consciente polarizada possam ser observados e levados em consideração pelo indivíduo.

Quando este, ainda assim, nega-se a integrar e aceitar determinados aspectos, a mesma produz imagens, símbolos compensatórios, também através dos sintomas que, nesse momento, assumem um caráter mitopoético que nos servirá de ponte entre os conteúdos conscientes e inconscientes durante o processo de análise.

Vários clientes me confessaram que aprenderam a ver com gratidão os seus sintomas neuróticos, pois estes, como um barômetro, sempre lhes mostravam quando e onde se tinham desviado do seu caminho individual ou quando e onde coisas importantes tinham ficado inconscientes. (JUNG, 2013, §11)

Análise de Sonhos

Os sonhos podem ser analisados como sequências inconscientes de imagens que trazem notícias dos sintomas. Que, por sua vez, trazem notícias da neurose individual ou qualquer outra patologia que, por sua vez, traz notícias do coletivo. Num incessante e, muitas vezes, túrbido processo de criação e trocas da psique. Especialmente quando os sonhos se manifestam em séries, em que se torna possível identificar um “tema” arquetípico. Isto é, o que a psique está tentando “atuar” para promover uma relação de trocas mais saudável e equilibrada entre conteúdos conscientes e inconscientes.

            Podemos chamar esse processo de autorregulação, evidenciando o que Jung chamou de Psique Objetiva. Nele todos os elementos envolvidos na “vida” psíquica do indivíduo, tanto os inconscientes (Sombra, Inconsciente Pessoal, Complexos, Anima ou Animus) quanto os conscientes (família, relações sociais e afetivas, escola e outros “atores” sociais), deverão observar o sentido compensatório ou complementar do sintoma. Não só em relação ao indivíduo, mas também em relação ao campo social, ao entorno, ao coletivo. Movimentando forças de caráter mítico e arquetípico que dificilmente seriam acessadas de outra forma.

O processo de cura mobiliza essas forças para alcançar os seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, onde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam. Isso porque elas também provêm daquelas profundezas, falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobilizam e põem a vibrar o mais íntimo do homem (JUNG, 2013, §19).

               Nesse processo, não podemos deixar de considerar e de observar atentamente a resistência. Tanto da parte do paciente quanto da parte do analista. Porque ela também traz notícias das questões subjetivas e objetivas que estão em jogo na clínica analítica, colocando em xeque certezas e convicções de ambas as partes.

Todo o processo de tentativa de superação das resistências deverá passar mais pela aceitação e pela compreensão do que pelo conflito. Até porque, segundo Jung, o paciente pode conhecer melhor do que o analista a própria condição psíquica e suas capacidades ou limitações em lidar com os próprios conteúdos.

Uma postura mais humana

            Mais uma vez, Jung insiste em uma postura mais humana e menos distante dentro da dinâmica terapêutica, apostando numa relação simétrica, inclusive vendo e reconhecendo o paciente como o grande especialista de si mesmo:

Minha tendência é levar a sério as resistências mais profundas (do paciente) – pelo menos inicialmente – por mais paradoxal que isso possa parecer. É que tenho a convicção de que o médico não conhece necessariamente melhor do que o paciente a própria condição psíquica, pois a sua constituição também lhe pode ser totalmente inconsciente. Esta humildade do médico é perfeitamente adequada, visto que, por um lado, a psicologia universalmente válida ainda não existe, e que, por outro, os temperamentos não são todos conhecidos. Muitos psiquismos são mais ou menos individuais, e não se enquadram em nenhum dos esquemas existentes. (JUNG, 2013, §76)

Categorização e Identificação com o sintoma

   Outra postura que pode colaborar no sentido de promover uma relação mais simétrica e menos hierárquica entre analista e paciente é a de evitar a identificação absoluta com as diversas teorias e/ou diagnósticos (generalizações) em detrimento do que o paciente está manifestando ou trazendo para a terapia (individual), porque a clínica deve ser sempre soberana e superior a qualquer categorização.

            As teorias e as psicologias existem, até porque, como diz Jung, não existe uma psicologia universal que possa dar conta dos infinitos quadros psicológicos possíveis. Os muitos diagnósticos existem e podem servir de aliados na clínica, mas qualquer tentativa de encaixar o paciente ou sua condição, ou até mesmo a linha de tratamento, dentro dessas categorias, com o intuito de que elas traduzam e possam dar conta de toda a condição do paciente, estará, muito provavelmente, destinada ao fracasso.

Essa atitude, normalmente, paralisa as possibilidades de um sentido mais criativo para esse sintoma ou condição psíquica. O paciente se identifica como se ele fosse a própria personificação da doença; isso está presente em frases como “Eu sou deprimido” ou “Eu sou bipolar”.

Muitos pacientes se apegam a esses diagnósticos e é função do analista tentar metaforizar essa identificação para afastar, sempre que possível, o paciente das teorias e diagnósticos.

Isto porque, num primeiro momento, estes podem trazer um pouco de conforto, mas, em longo prazo, podem limitar a evolução da clínica. Impedindo que algo de novo surja no processo analítico e de simbolização necessários para a jornada de autoconhecimento e ampliação da consciência do paciente.

            Dentro das possíveis leituras mitopoéticas dos conteúdos analíticos, propomos através das posturas e práticas aqui discutidas, a construção de uma compreensão metafórica/simbólica do(s) sintoma(s). Desse modo, o sintoma deixa de ser pensado como algo que precisa ser eliminado e passa a ser colocado no centro de um processo de construção de sentidos afetivos para os sofrimentos ou incômodos que estejam provocando no indivíduo.

O sintoma como um parceiro na análise

            O sintoma, nessa perspectiva, passa a ser um aliado, quase um personagem. Pode ajudar a compreender alguma coisa mais ampla do modo de viver do indivíduo, do modo dele se relacionar com alguns temas da vida, que não passa apenas pelas ideias enraizadas no Ego, pela atitude consciente dominante. Assim, o sintoma torna-se um parceiro na análise e, muitas vezes, media a própria relação do analista com o paciente:

O que viso é produzir algo de eficaz, é produzir um estado psíquico,  em que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em que nada é definitivo nem irremediavelmente petrificado; é produzir um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser. (JUNG, 2013, §99)

               Muitas vezes, o sintoma permite criar uma história, uma narrativa que acaba capturando, aprisionando, o paciente dentro de uma configuração que ele passa a dar para a própria vida, impedindo um devir, uma abertura para o novo. São também impedidos de promover essa abertura pelos próprios “ganhos invisíveis”, isto é, alguma coisa ou alguém está se beneficiando dessa situação.

O paciente precisa iniciar logo que possível um processo de desidentificação com a doença e com o sintoma. Ao mesmo tempo em que ambos, assumindo a posição de aliados do processo terapêutico, promoverão, se não ganhos maiores, uma redução de perdas, tornando a vida mais criativa e os conteúdos sombrios e não integrados mais banhados de luz.

Com ambos caminhando na direção da transformação da atitude consciente, o processo analítico evoluirá com base nas possibilidades de criação. Contando para isso com um elemento, uma ferramenta fundamental da clínica junguiana: as expressões criativas que visam ampliar a capacidade mitopoética do indivíduo. Isto é, a de gerar imagens plenas de sentido que exprimam o drama, a narrativa humana que está sendo vivida e atuada naquele sintoma.

As expressões criativas podem atuar como uma alternativa ao uso da linguagem verbal e ao estado de solidão e aridez que a consciência enfrenta nesses momentos de deserto criativo caracterizados pela manifestação de um sintoma.

Vídeo da autora:

Isa Carvalho: Membro Analista em Formação pelo IJEP

Analista Didata: Lilian Wurzba

Referências:

JUNG, C.G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

______ A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2013.

SILVEIRA, Nise da. Jung: vida e obra. 14.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

Imagem: Foto de Joshua Fuller na Unsplash

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