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Tocar, para muito além da pele humana

Qual o significado do toque? Você já parou para pensar sobre isso? Quando foi a última vez que se tocou e recebeu um toque amoroso? Vamos juntos ampliar o assunto e refletir sobre a importância dele e para nós!

Você já se perguntou, o que significa o tocar?

No dicionário da língua portuguesa está definido como: pôr a mão em; pegar; apalpar. e ainda: pôr(-se) em contato com; roçar por; encontrar(-se). A partir do próprio significado, numa ampliação simbólica, já podemos perceber que a partir de um muito simples toque dois mundos se encontram, as vezes se chocam, e a partir disso se conectam ou se repelem. Falamos aqui do mundo de um indivíduo e outro, ou talvez do ser e um objeto inanimado, tudo que está dentro e o mundo externo, ou, até o eu e o inconsciente. Podemos ainda pensar no toque exercido entre a Psique e o Soma, o corpo.

Qual foi a última vez que você se tocou, de verdade, com amor, com intenção, e não simplesmente para exercer um autocuidado breve, superficial, automático?

Nós, nos atemos a ilusão de que a Psique pode ser “separada” do Soma, e vivemos dessa forma, onde a Psique fica num estado parcial de negligência, na medida que a maior parte das pessoas tem um desconhecimento significativo sobre si e suas dinâmicas. Já o corpo, esse que ficou como sendo o portador da sombra, então, o ignoramos sumariamente, atendendo somente as demandas automáticas para nos mantermos vivos e produtivos, mas sem viver, sem nos tocar com amor, com alma.

Digo que o corpo ficou como portador da sombra porque é ele quem se cansa, adoece, envelhece, ele que demonstra muitas vezes aquilo tudo que queremos esconder do mundo e de nós mesmos.

Quando o indivíduo se cansa, por exemplo, culpa o corpo por não estar preparado, sem pensar que foi escolha dele não aperfeiçoar o corpo, ou este último até está lhe avisando de seus limites que foram ultrapassados, mesmo assim, preferimos não ouvir e responsabilizar o corpo, por coisas que foram feitas a ele por nós mesmos.

Dizemos: meu corpo envelheceu, sem nos atentar para os ciclos e processos pertinentes a vida. Mesmo num processo de adoecimento, será que percebemos que o corpo e as nossas emoções, nossos sentimentos e, nossos complexos estão todos interligados, e em vez de culpar o corpo talvez devêssemos “nos tocar” e conversar com o complexo que ali se manifesta através dos sinais e sintomas que nos visitam.

Estamos começando a descobrir nossos negligenciados sentidos, afinal, a capacidade de se relacionar consigo mesmo e com o outro está muito atrasada em comparação a sua capacidade de nos relacionarmos com bens de consumo e as condições para tê-los, isso nos aprisiona em uma escravidão, no sentido que vivemos para produzir dinheiro e consumir, sem, no entanto, nos atentar que estamos nos consumindo.

Vivendo no automatismo, quase numa absoluta falta de toque, de contato, conosco e com os outros. Quando vamos nos “tocar” desta triste realidade?

Observamos que a própria linguagem coloquial, demonstrada acima, já nos conta do significado tão amplo, desse gesto singelo, mas de uma potência absurda, essa é toda a tentativa do Jung e do IJEP, fazer com que as pessoas se atentem de sua alma, quiçá de seu Daimon – o sentido de vida de cada indivíduo- e que vivam uma vida com sentido e significado.

Não podemos nos esquecer, nunca, que deixar qualquer sentido de fora da nossa vivência significa reduzir as dimensões de nossa realidade, nos reduzir, em um sentido mais amplo, ter uma experiência limitada. Será vida quando nos atermos a viver parcialmente, sem realmente ter contato com a nossa própria realidade, e todas as outras que podemos experienciar no mundo?

Digo isso porque ao tocar de verdade uma situação podemos ver e compreender realidades que antes não pensamos nem na possibilidade, e quando tocamos outra pessoa adentramos o mundo que essa pessoa é, você já pensou sobre isso?

Infelizmente vivemos, até tocamos, mas sem realmente tocar, temos inclusive contato mais íntimo com pessoas, sem nos relacionar de verdade, sem viver a experiência completa que o toque pode nos proporcionar. Mas, a meu ver, não poderíamos esperar algo diferente de uma população que não toca nem a si mesmo. Qual foi a última vez que você fechou os olhos, tocou seu corpo e se entregou a experiência do sentir, sentir o corpo e o que o seu toque te faz sentir? Quais as áreas do seu corpo têm texturas, temperaturas e sensibilidades diferentes? Quais os assuntos, as memórias e os sentimentos que lhe são desconfortáveis ao “toque”?

Esses questionamentos tão singelos e capazes de uma potência tão grande quase nunca são feitos, aí está a nossa desconexão.

Tornamo-nos prisioneiros de um mundo de palavras impessoais, sem toque, sem sabor, sem gosto, sem vida. A dimensão da palavra e dos automatismos, passa a ser um substituto para a riqueza multidimensional dos sentidos e nosso mundo se torna grosseiro, monótono, árido.

A tendência observada na clínica e na vida é que as palavras estão ocupando o lugar da experiência.

Nossa impessoalidade chegou a tal ponto que produzimos uma raça de intocáveis. Nos tornamos estranhos ao outro e a nós mesmos. Acreditamos que o tocar, em todas as suas possibilidades, no simbólico e no literal, sejam “desnecessários”, desse modo o evitamos, como ainda nos precavemos de não o fazê-lo. Devido ao fato de sermos intocáveis, não conseguimos criar uma realidade em que as pessoas se toquem em mais sentidos que não no sexual e na superficialidade. O nosso mundo interno e externo passou a ser um cenário entulhado de experiências escassas, sem sentido, pessoas sem rosto, solitárias e temerosas da intimidade.

Vestimos a imagem do que deveríamos ser e talvez tenhamos medo de tocar e nos deixar ser tocados e, essa imagem se desvanecer na realidade de quem verdadeiramente somos.

Como diz Willy Loman em Death of a Salesman: “Ainda me sinto um pouco temporário”, te pergunto: até quando viveremos nossa vida de forma superficial, temporária? Até quando viveremos em uma morte silenciosa, carentes e carecidos de amor e de toque?

Para nos comunicar, apoiamo-nos em “sentidos de distância”, como a visão e audição e em “sentidos de proximidade”, como paladar, olfato e tato são deixamos de lado, pelo menos na potência do “sentir”, digo isso porque por certo que comemos, mas na maioria das vezes com pressa, sem de fato pensar num sentido mais amplo de comer, o nutrir, e para chegar nesse último, deveríamos passar pelo prazer, sentir a comida, o sabor, o se nutrir de fato, de comida e de prazer que essa experiência pode proporcionar, afinal o corpo precisa de alimento, mas a alma precisa de algo mais. E talvez essa necessidade de sentir seja uma das raízes dessa epidemia de obesidade, mas deixemos isso para outro texto.  

Os animais, vivem a experiência completa, por exemplo, um cão ao se encontrar com outro, é capaz de usar os cinco sentidos em sua comunicação, mas não podemos dizer o mesmo dos seres humanos. Não podemos dizer que nos utilizamos todos nossos sentidos nem conosco mesmos. Quando foi a última vez que ouviu sua voz, e prestou atenção no seu timbre, na sua entonação, e a sua voz interior?

Por causa da nossa progressiva sofisticação e falta de envolvimento recíproco, passamos a utilizar exageradamente a comunicação verbal, chegando inclusive a virtualmente excluir de nossa experiência a comunicação não-verbal.

Não nos olhamos, não nos tocamos e muito menos nos ouvimos. Vivemos nossa vida sem prestar atenção a nós mesmos e ao que nos cerca.

No que se refere ao toque, nos esquecemos que tocar é uma das principais linguagens para a criação de vínculo, talvez seja um dos mais poderosos meios de criar relacionamentos humanos, fundamentando a experiência do viver, podemos dizer ainda que o amor se inicia no toque.

O maior sentido de nosso corpo é o tato. Provavelmente, é o mais importante dos sentidos para os processos de dormir e acordar; informa-nos sobre a profundidade, a espessura e a forma; sentimos, amamos e odiamos, somos suscetíveis e tocados em virtude dos corpúsculos táteis de nossa pele.

(Lionel Tyler, The Stages of Human Life,1921, p.157)

A pele, como sendo uma roupa que nos acolhe e nos envolve por completo faz a representação do toque no campo literal. Ela é o mais antigo e sensível órgão do corpo humano, aliás, é o maior órgão do corpo humano e exerce uma função demasiadamente importante que é nos proteger e manter nossa temperatura, fator esse primordial para a manutenção da vida, só por isso já deveríamos imaginar a importância de cuidar muito bem deste órgão e o utilizar para nos conectar com a nossa auto maternagem. O que melhor do que nos tocar com amorosidade, com alegria e prestando muita atenção ao que a alma, através do nosso corpo e suas expressões têm para nos contar hoje?

Segundo Jung em “A Natureza da Psique”:

(…)estamos de tal modo habituados a conceber o corpo e a alma como um composto vital, que dificilmente nos inclinamos a ver na alma apenas um aglomerado de processos vitais que se passam no corpo. Até onde minha experiência me permite extrair conclusões gerais a respeito da natureza da alma, ela nos mostra que o processo psíquico é um fenômeno dependente do sistema nervoso. (…) Suponhamos que alguém toque com o dedo em um objeto aquecido: imediatamente, o calor excitará as extremidades dos nervos tácteis. O estímulo altera o estado de toda a via de transmissão nervosa até a medula espinhal e daí ao cérebro. (…), mas o que acontece na medula espinal é transmitido ao eu, que percebe em forma de imagem ou cópia, que podemos expressar através de um conceito e de um nome. (…) Neste caso, o estímulo(…) desencadeia no cérebro toda uma gama de representações, de imagens, que se associam ao estímulo(…)

(2013, p. 276-277)

Como Jung nos descreve neste trecho, quaisquer estímulos provocados no corpo desencadeiam reações e estímulos no corpo e na Psique.

Desse modo podemos imaginar o quanto o toque, o cuidado, a auto maternagem e a escuta amorosa podem beneficiar o indivíduo em seu Processo de Individuação, com base na autoconfiança e energia depositada para a ressignificação de seus complexos e ampliação da consciência.

Se a dor, o medo e os desconfortos em geral são marcadores que nos mostram que algo aconteceu, que de repente algum limite foi ultrapassado e que medidas devem ser tomadas no sentido de “cuidar”, talvez o toque seja o alimento de que precisamos para nos restabelecer, nos reorganizar e nos curar.

Compêndios de medicina e enfermagem mostram o quanto é importante que nos primórdios da vida, na prima hora o bebê receba o toque, como uma necessidade de conforto, regulação térmica, hemodinâmica e uma necessidade psíquica de acolhimento e confiança.

No século XIX, percebeu-se que mais da metade dos bebês morriam de uma doença chamada na época de “marasmus”, que no grego significa “definhar”, era conhecida ainda como atrofia ou debilidade infantil, após amplas reflexões e estudos, percebeu-se que a maioria dos estabelecimentos de saúde eram dotados de uma grande “aridez emocional”, o que se demonstrou posteriormente ser fator crucial para a recuperação destes mesmo bebês e de outros “doentes”.

Após esse episódio foi abolido o uso de máquinas como embaladores de bebês e incubadoras onde eles não tinham contato humano. A partir de então institui-se principalmente o toque, assim como a natureza que destrói e depois cura a natureza, podemos dizer que a falta de toque e de humanidade (sentimentos e alma) destrói o homem e o seu retorno fertiliza mesmo os corações mais áridos e as psiques mais adoecidas, desconectadas e os egos mais rígidos. O que somos todos nós, os amantes da alma, os cuidadores de “alma” que nos conectamos e com muito cuidado, amor, “tocamos” as almas que nos procuram em nossos consultórios!

Que este toque se torne nossa prioridade, porque assim como a natureza que destrói e depois cura, que este toque seja fonte de cura e de autoconhecimento.

Natalhe Costa, Analista do IJEP – SP

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