Site icon Blog IJEP

Vampyroteuthis Infernalis e o ego demasiadamente ego

Vampyroteuthis Infernalis e o Ego Demasiadamente Ego

Vampyroteuthis Infernalis e o Ego Demasiadamente Ego

Vampyroteuthis Infernalis: Um Tratado” é uma obra do filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser que explora uma série de temas filosóficos por meio do estudo do vampirotheutis infernalis, uma espécie de lula abissal. O livro é um ensaio filosófico que utiliza o animal vampyroteuthis infernalis como um espelho para nós seres humanos.

Sobre o Vampyroteuthis infernalis

O Vampyroteuthis infernalis, também conhecido como “vampiro do inferno”, é uma espécie de lula que vive em ambientes extremos nas profundezas do oceano. Uma das características mais notáveis do Vampyroteuthis infernalis é a sua capacidade de bioluminescência. Ele tem órgãos emissores de luz, fotóforos, localizados em várias partes do seu corpo, inclusive nos tentáculos. Essa característica é usada para confundir predadores e pode ser um método de comunicação entre membros da mesma espécie.

O molusco possui um corpo gelatinoso que o ajuda a flutuar nas águas profundas e escuras onde vive. A sua estrutura corporal é mais próxima da de uma água-viva do que da de outras lulas.

O viver do Vampyroteuthis infernalis

Entre seus oito braços, existe uma espécie de membrana que se parece com a asa de um morcego. Isso contribui para o seu nome popular e para sua capacidade de se mover de forma eficiente. Já, seus braços ou tentáculos também são seus órgãos genitais e é com eles que o molusco descobre o mundo ao seu redor. O animal tem a capacidade de mudar a cor de sua pele, o que serve para camuflagem e possivelmente para comunicação.

O Vampyroteuthis infernalis é encontrado em águas profundas. Geralmente profundidades que variam de seicentos a novecentos metros, embora possam ir ainda mais fundo. Ele habita zonas onde a luz do sol não penetra, em um ambiente conhecido como zona afótica do oceano.

A alimentação deste animal é menos compreendida, mas acredita-se que ele se alimenta de detritos orgânicos que caem do oceano acima, conhecidos como “neve marinha“. É um animal fascinante que desafia muitas de nossas compreensões convencionais sobre a vida marinha.

No livro, o vampyroteuthis é apresentado como um alienígena em relação a nós. Por causa dessa diferença, ele serve como um contraponto para explorar as limitações e possibilidades do pensamento humano. Flusser compara o animal ao ser humano de uma forma mais externa – as estratégias de sobrevivência, comunicação e percepção dessa criatura às nossas, destacando tanto as diferenças quanto as semelhanças inesperadas.

Apesar de Flusser não ter sido simpático à teoria C. G. Jung, gostaria de subvertê-lo e propor vampirotheutis infernalis como um conteúdo psíquico, ou seja, não um animal separado de nós, mas também uma imago que se defronta com o ego em algum momento da vida. Perguntemo-nos: quem é este vampiro infernal em mim?

O espanto do espanto

Vale a imaginação: em algum momento da vida o molusco resolve vir à terra ou nós às profundezas. Um humano vê o molusco e se espanta. Seu espanto é duplo. Primeiro, ao ver tamanha criatura e a monstruosa diferença entre ele humano. Segundo, o espanto do espanto, ao perceber o quanto o próprio ser humano é ser uma criatura peculiar assim como o vampirotheutis infernalis.

Neste momento, sem dúvidas, o indivíduo sentirá o “humano, demasiadamente humano” que Nietzsche pregoou. Podemos ir além, o indivíduo percebe que o vampiro do inferno não veio das profundezas literais do mar, mas da psique. Ele é um ser espiritual diante do pequeno ego. Portanto, melhor seria parafrasear Nietzsche: “ego, demasiadamente ego”.

Essa paráfrase pode ser entendida como um indício de uma hierofania – uma aparição divina. Momento em que o ego reconhece o seu tamanho diante de outros conteúdos espirituais ou psíquicos, sentindo uma repulsão e uma atração, ao mesmo tempo, pelo conteúdo manifesto. No caso, o vampiro infernal.

Racionalismo e comunicação

Retornando ao livro, Flusser utiliza este animal como um “modelo perculiar” para compreender aspectos fundamentais da existência humana, incluindo temas como consciência, comunicação, tecnologia e cultura. Aqui quero destacar alguns deles.  

Os humanos (egos), embebidos do racionalismo, usam a linguagem altamente abstrata para comunicar ideias, emoções e conceitos. O vampyroteuthis, por outro lado, utiliza uma forma mais direta e imediata de comunicação por meio de mudanças de cor e padrões na sua pele.

Considerando a lula como um ser de dentro, fica evidente o quanto é possível discorrer sobre a psicossomática neste ponto. O próprio bebê neonato comunica-se mais como lula do que como ego racionalista. O tipo de choro e a coloração da pele do neonato mudam de acordo com a sua demanda, seja fome ou cólica, etc.

Contudo, nós adultos não perdemos isso, mas tentamos esconder com maquiagens e afins. Nada obstante, o vampiro em nós nos suplanta chegando nas dermatites generalizadas.

Flusser discute como os humanos usam a tecnologia, ferramentas, máquinas e sistemas para mediar nossa relação com o mundo. Esta mediação nos permite alterar nossa percepção e interpretação da realidade. Comparando, o vampyroteuthis usa suas habilidades biológicas inatas, como a bioluminescência, para interpretar e interagir com seu ambiente.

O que nos remete, também, a uma possível metáfora e analogia ao filme “A Chegada” (2016), no qual a renomada linguista Louise Banks é chamada a codificar mensagens de seres alienígenas, o que faz explorando as diferentes formas de conexão possíveis, descobrindo que a comunicação vai muito além das linguagens escrita e falada como a conhecemos hoje, compreensão que acaba por refletir até mesmo nas suas percepções sobre tempo e espaço.

O lume central abissal

Curiosamente C. G. Jung já chamou as profundezas abissais de “lume central”. É desse que surgem as imagens psíquicas, as representações arquetípicas, as visões, as fantasias e os sonhos. A realidade de dentro é comunicada por uma luminescência desse ser que, por vezes, espera que fechemos os olhos à noite para se comunicar com o pequeno ego, por outras, invade a luz do dia confundindo o pequeno ego.

É importante colocar em xeque o processo civilizatório e a cultura.  Em resumo, eles organizam conhecimento, valores e práticas humanas em uma sociedade, como também consolidam os preconceitos – isto é as repressões psíquica de forma social.

Afinal, qualquer preconceito é uma neurose. Isso força o leitor a questionar o que sabemos sobre nossa própria cultura, realidade e a considerar se nossas maneiras de organização social, moral e ética são realmente ‘universais’ ou apenas particularidades humanas. A lula de dentro não quer saber de moralidade e organização.

Vampyroteuthis + Anima e Animus

O vampyroteuthis poderia ser reconhecido como uma representação do arquétipo da Anima e do Animus na teoria de C. G. Jung, forçando-nos a enfrentar as partes escondidas e não reconhecidas de nossa psique.

Nesse ritmo, tradicionalmente, o arquétipo da Anima representa o feminino interior no psiquismo masculino, enquanto o Animus representa o masculino interior no psiquismo feminino. Estes arquétipos agem como um espelho, refletindo aspectos de nós mesmos que são frequentemente relegados ao inconsciente devido às normas sociais e culturais.

Com sua bioluminescência e adaptações para um ambiente hostil, a lula é uma manifestação contundente desses arquétipos, que também habitam as “profundezas” de nossa mente inconsciente.

Sua aparência estranha e capacidades de comunicação fora do comum servem como um lembrete de que há aspectos da existência humana que são igualmente estranhos e enigmáticos. Ele nos faz questionar as estruturas e suposições que tomamos como garantidas, e nos confronta com as partes de nós mesmos que preferimos manter ocultas.

Profundezas da psique

Ao equiparar as manifestações biológicas do vampyroteuthis, como a bioluminescência, com as manifestações arquetípicas, como sonhos e visões, estamos de certa forma honrando a “luminescência” interior de nossa própria psique. Ambas as formas de comunicação são tentativas de iluminar o desconhecido, de fazer sentido de um mundo que é muito maior e mais complexo do que nossa compreensão limitada pode abranger.

Assim, a obra de Flusser e o vampyroteuthis servem como um convite para explorar as “águas profundas” de nossa própria psique, para nos familiarizarmos com os aspectos menos compreendidos de nossa própria humanidade.

O animal e os arquétipos nos oferecem uma oportunidade para a introspecção e a auto-descoberta, nos instigando a ir além das limitações do ego e a explorar o vasto oceano do inconsciente. E tal como o vampyroteuthis, os arquétipos, em sua interação com o ego, revelam que somos, todos nós, “monstros” em nossas próprias maneiras.

Por final vale lembrar que disse que desse abismo nós temos permissão somente para conhecer as bordas.

Leonardo Torres – Analista em Formação IJEP

Waldemar Magaldi – Diretor e Analista Didata IJEP

REFERÊNCIAS

FLUSSER, Vilem. Vampirotheutis Infernalis: um tratado. São Paulo: Editora Ubu, 2019.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2016.

Exit mobile version