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A Sombra dos Religiosos

É interessante refletirmos a respeito da tensão que existe entre a persona e a sombra dos religiosos. Porque muitos deles, infelizmente, por se dedicarem apenas aos estudos, práticas ritualísticas de suas doutrinas e conquista de adeptos, passam a negligenciar o processo de autoconhecimento, atitude reforçada simultaneamente pela soberba e pelo medo do confronto consigo mesmo. A decorrência disso é que esses religiosos correm o risco de ficarem unilaterais, radicais e, sem perceberem, completamente incoerentes com suas crenças.

Persona e sombra é um par de opostos arquetípicos e complementares, abordados pela psicologia analítica. O reconhecimento dessas instâncias psíquicas, que funcionam como personalidades autônomas em nós, é o primeiro passo para o caminho do autoconhecimento, apesar de ser muito difícil reconhecer que aquilo que imaginamos ser não é genuíno e nem representa nossa real e verdadeira essência, da mesma forma, é assustador descobrir que aquilo que negamos e até abominamos e rejeitamos no outro, na realidade, faz parte de nós.

Sem o distanciamento consciente, tanto da persona quanto da sombra, jamais conseguiremos nos diferenciar desses arquétipos que atuam autonomamente em nossa vida. A persona atua como instrumento relacional, e a serviço da relação com o meio externo, permitindo-nos assumir múltiplas características e papéis, favorecendo nossa adaptação nos diferentes contextos e expectativas coletivas. Obviamente, no ambiente institucional e secular das religiões, com sua doutrina e ritualística rígida e peculiar, o religioso acaba ficando presa fácil do arquétipo da persona, fazendo com que o ego fique identificado, quase que exclusivamente com esse personagem, impedindo que ele utilize outras máscaras, mais adequadas em outros meios, produzindo esterilidade monotemática e muitos comportamentos compulsivos.

A sombra, por sua vez, é a representante do mundo interno, trazendo toda potencialidade da alma, e também todo o conteúdo reprimido pela consciência, muitas vezes, antagonizando-se com a persona. Isso é um paradoxo, porque apesar da sombra ter toda potencialidade criativa e nossa verdadeira essência, advindos do inconsciente pessoal e do Self, ela também carrega os conteúdos rejeitados e polarizados pela persona e toda amplitude coletiva, na maioria das vezes, representada pelo mal ou pelo diabo. É importante compreendermos que a sombra, invariavelmente, acaba sendo projetada no outro, rejeitando-o e culpando-o. Com isso, jamais questionamos nossa incoerência, e ficamos poupados em reconhecer nossa falta de ética, porque o inimigo dentro de mim passa a ser um outro qualquer fora de mim.

No caso do religioso, essa dicotomia pode ficar muito mais exuberante e, neste caso, a persona e a sombra passam a ser patológicas. Para facilitar a compreensão, utilizarei a imagem do tipo ideal, parafraseando Max Weber, de um dirigente espírita. Apesar de ser um personagem ficcional, ele é resultante de inúmeros relatos que obtive dos meus clientes, em sessões analíticas, na condição de religiosos ou de vítimas desses religiosos. Advertindo que toda relação, mesmo as mais desastrosas, tem cumplicidade e potencialidade para seu acontecimento, atraímos e somos atraídos para as relações e situações necessárias para nossa evolução ou para manutenção dos nossos complexos patológicos, e só podemos reconhecer o porquê e o para que por meio do distanciamento consciente e da diferenciação do contexto neurótico. Esse é o processo analítico, que possibilita o diálogo entre os vários atores presentes e atuantes na psique.

Esse líder espírita identificado com a persona, é muito articulado, sabe e cita a doutrina de forma exemplar, é muito trabalhador, sedutor, amável e motivado. Com essas características, seguindo os mesmos critérios do mercado, ele vai galgando funções e cargos cada vez mais importantes. Afinal de contas, é um líder de sucesso e totalmente comprometido com a causa. Porém, quanto mais ele alcança a luz, sem perceber, cada vez mais projeta a sombra! Mas com sua inteligência e sagacidade, antes de enganar os outros, ele consegue enganar a si mesmo. E, sem perceber, acaba praticando sua atitude hipócrita, dissimulado do alto de sua quase santidade, puritana e conservadora, sempre mascarada pela persona da honestidade.

Neste momento, as pessoas mais próximas e íntimas começam a sentir um enorme desconforto, porque, apesar de começarem a perceber a incoerência, por gratidão, sentimento de inferioridade ou medo, se recusam em aceitar que aquele indivíduo, tão dedicado, possa estar praticando bulling ou abuso de poder com elas. Outra questão interessante que ele, amparado por um equívoco que a doutrina possibilita, devido à época que foi criada, nega que sua crença se trata de uma religião e afirma ser uma ciência e, por isso mesmo, se envereda nas entranhas acadêmicas, onde aprende, acima de tudo, a ser competitivo e territorialista, porque, nesses meios, é o que mais tem e os títulos acabam sendo usados apenas como instrumentos desse jogo de poder e de influências.

Sem reconhecer a sombra, é incapaz de ter a consciência de que o espiritualista virou materialista, que sua generosidade se tornou um instrumento da sua mesquinhez, humilhando muito mais do que ajudando. Jung nos alerta para a dinâmica dos opostos e a necessidade de reconhecer e aceitar a sombra. Essa citação nos ajuda a compreender melhor isso: ” Bellica pax, vulnus dulce, suave malum. (Uma paz bélica, uma doce ferida, um mal suave).[…] Eu nada poderia acrescentar a incomparável simplicidade e síntese destas palavras.[…] elas clareiam a obscuridade e o paradoxo da vida humana.[…] sujeitar-se e abandonar-se ao antagonismo fundamental da natureza significa aceitar as tendências que se entrecruzam a si mesmas no psiquismo.” JUNG, C.G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. (§523).

Sem perceber, quanto mais encarna a persona do honesto, fica mais desleal e hipócrita. Quanto mais pratica a caridade, mais faz maldades. Sua humildade, discrição e simplicidade acobertam sua arrogância e vaidade. O altruísta tornou-se um total egoísta e, se não acontecer algo impactante, num sonho, evento sincronístico, doença ou algum episódio trágico que possibilite o confronto com a sombra e o si mesmo, ele continuará alienado e protegido por sua persona, negando a polaridade e correndo o risco de morrer completamente iludido, sem saber de todo o mal que fez. Sem a integração da sombra, é impossível a entrega consciente ao processo de individuação e, sem isso, jamais acontecerá a salvação ou iluminação tão almejada pelos religiosos. Porque, da mesma forma que a persona é necessária para nossa adaptação ao mundo externo, a sombra é o portal para a realização da alma e, apesar de não ser tarefa fácil, cabe ao ego a mediação dessas polaridades complementares, onde a persona estimula para fora, para cima e para frente e a sombra para dentro, para trás e para baixo.

Integrar os opostos, não elimina as polaridades, apenas possibilita a flexibilização do ego. A sombra jamais poderá ser extinta e, na realidade, como diziam os alquimistas, ela é ouro puro. Saber dela, aceitá-la e integrá-la nos deixam incorruptíveis. George Orwell, no romance “1984”, escreve: “Guerra é Paz, Liberdade é Escravidão, Ignorância é Força”. Isso nos ajuda a compreender que a integração dos opostos não pode acabar com as polaridades, porque fazem parte do Tao, e o Tao é tudo e nada em contínua transmutação, estimulando o ego a entregar-se conscientemente ao processo de individuação, possibilitando, como escreveu Proust, na sua obra “Em busca do tempo perdido – a prisioneira”, na maturidade devemos ressignificar a persona onde: “a alma da criança que fomos e a alma dos mortos de quem saímos vêm jogar-nos às mãos as suas riquezas, assim como os seus maus destinos, exigindo colaborar  nos novos sentimentos que experimentamos e nos quais, apagando sua antiga efígie os refundimos em uma criação original”. Essa aproximação, a meu ver, possibilita dar espaço simultâneo para a Criança Divina e o Velho Sábio, presentes em cada um de nós, em detrimento dos seus opostos representados pelo Puer Aeternos e o Senix.

Torço para que, os religiosos de destaque, não importando se são líderes espíritas, gurus, sacerdotes, rabinos, imãs, pais de santo, pastores, e todos aqueles que se arvoram da persona do generoso, altruísta, caridoso, humilde, espiritualista e honesto, não deixem de reconhecer que também são mesquinhos, egoístas, maldosos, arrogantes, vaidosos, materialistas e desonestos, que sua ética é duvidosa e que sua simplicidade é absolutamente complexa! Só assim poderão superar a condição reptiliana, voltada exclusivamente para o sobreviver, crescer e perpetuar, dos prazeres da fome, segurança territorial e sexual, para seguir adiante na sua evolução e realização do si mesmo.

*Waldemar Magaldi Filho, analista junguiano, psicólogo, mestre e doutor em Ciências da Religião, autor do Livro: ” Dinheiro, Saúde e Sagrado” – editora Eleva Cultural, sócio fundador do IJEP – instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa, onde atua como coordenador dos cursos de pós-graduação em Psicologia Junguiana, Arteterapia e Expressões Criativas e Psicossomática – www.ijep.com.br

Waldemar Magaldi Filho – 12/06/2019

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