As dinâmicas de anima e animus são amplamente exploradas em textos e produções junguianas. Neste artigo não queremos nos ater na dinâmica dessas estruturas psíquicas, mas gostaríamos de discutir, em caráter ensaístico, se anima e animus devem ser compreendidos apenas como arquétipos ou também como complexos do inconsciente pessoal. Não questionamos o caráter arquetípico de ambos, mas sugerimos uma reflexão de ordem didática, examinando se é possível (e se é necessário) entender que há diferenças entre, por exemplo, a representação da anima arquetípica, do inconsciente coletivo, e como complexo, do inconsciente pessoal.
Para tanto, partimos da premissa de que estruturas arquetípicas, tais como a persona e a sombra, são moldadas a partir das experiências pessoais. A sombra, enquanto estrutura original, é arquetípica, mas seu “recheio” é individual. Também partimos da prerrogativa de que o núcleo de um complexo possui conteúdo imanente à psique objetiva, isto é, arquetípico, mas todo o seu entorno é permeado pelas experiências individuais do sujeito (JUNG, 2002, OC 8/1).
Diversos autores junguianos exploraram as dinâmicas de anima e animus, especialmente nos relacionamentos amorosos, tais como J. Sanford (1987), A. Guggenbühl-Craig (1980) e R. Johnson (1987b). O próprio Sanford menciona que Jung não tem uma visão definitiva sobre estes conceitos:
Não existe lugar algum em que Jung tenha escrito uma afirmação definitiva sobra anima ou o animus. Se quisermos saber o que Jung tinha a dizer sobre o assunto, precisamos ler muitos trechos diferentes em muitas das diversas obras mais importantes. Igualmente, Jung não se contentou com uma definição única, mas, de tempos em tempos, apresentava novas. Ao fazê-lo, porém, não se contradizia, porque cada definição salienta um aspecto diferente de tais realidades (SANFORD, 1987, p. 19-20).
Guggenbühl-Craig (1980, p. 59) sugere uma ampliação, dizendo que não há um arquétipo de masculino e um arquétipo de feminino: “Devia estar claro que não existe só um arquétipo de masculino e arquétipo de feminino. Há dúzias, senão centenas, de arquétipos masculinos e femininos”. Neste sentido, podemos assumir que anima e animus são designações gerais, que possuem dinâmicas arquetípicas relativamente semelhantes e que podem ser diversamente representados nas mitologias, nas expressões, nas fantasias, na arte, etc.
Contudo, devemos nos apoiar no próprio Jung (2012b, OC 9/1), quando ele diz que o arquétipo é uma estrutura irrepresentável em si, sendo acessado somente pelas manifestações ou pelos motivos arquetípicos. Seriam então, anima e animus, apenas arquétipos, ou poderíamos tomá-los também como complexos do inconsciente pessoal que possuem núcleo arquetípico?
Partindo da prerrogativa de que os complexos possuem correspondência arquetípica, nos parece que anima e animus são arquétipos e complexos concomitantemente. Se consideramos, por exemplo, o complexo do ego, ele seria o correspondente na psique individual do Self. Entretanto, o ego (pessoal) não é o Self (arquetípico), e se assim o tem, significa que é um ego inflado, algo maior do que realmente é: “O ego é idêntico ao Self na medida em que é o instrumento de autorrealização para o Self. Apenas um ego egoísta inflado está em oposição ao Self”(VON FRANZ, 1980, p. 155, tradução nossa). Mas o ego, no processo de individuação, serve ao Self. Não existe processo de individuação se não houver uma integração no eixo ego-Self. O mesmo vale para o arquétipo da Grande Mãe, que encontrará seu representante individual no complexo materno, dentre diversos outros exemplos que poderíamos mencionar.
Anima e animus são profundamente explorados nas suas características projetivas, especialmente por Sanford (1987) e Johnson (1987b). Em geral, quando falamos de um conteúdo projetado, se trata de um conteúdo do inconsciente pessoal, mesmo que ele tenha como pano de fundo um motivo arquetípico. Não assumimos que “um arquétipo foi projetado”, pois se assim o fosse, significaria que, em algum lugar, teríamos acesso ao arquétipo originário, o que é teoricamente impossível, segundo o próprio Jung.
Se há, portanto, anima e animus como arquétipos e anima e animus como complexos, qual seria a diferença? Explicamos pela lógica da estrutura psíquica mapeada por Jung: os conteúdos da psique são individuais, mas também são, aprioristicamente, originados no manancial de imagens arquetípicas, ou seja, anima e animus são alimentados e ganham corpo a partir das experiências individuais com as figuras masculinas e femininas ao longo do desenvolvimento da personalidade individual, mas essas experiências são influenciadas, adaptadas, remodeladas segundo os padrões arquetípicos.
Jonhson (1987a), em seu belíssimo trabalho sobre o processo de desenvolvimento da psicologia masculina a partir da análise da lenda de Perceval (ou Parsifal) e o Graal, se refere ao estado de “possessão” que uma anima negativa pode gerar na psique masculina. Jung deixa claro (2013b) que as estruturas que “tomam” a consciência, ou “roubam” o espaço do ego, é um complexo e não um arquétipo. Por que isto valeria para outros complexos, mas não para anima e animus?
Sanford, ao analisar as dimensões dos relacionamentos amorosos na ordem das projeções, escreveu esta frase: “Quando falamos com a anima e animus, precisamos encará-los como as realidades psicológicas autônomas que eles são” (SANFORD, 1987, p. 83, grifos nossos). Seriam estas “realidades psicológicas autônomas”, sinônimos dos complexos? Jung afirma ao longo de toda a sua obra que os complexos são estruturas autônomas da psique que nos tem, ao invés de nós os termos. Repetimos, o motivo é arquetípico, mas a dinâmica individual é do complexo.
Johnson (1987a) menciona a anima como um elemento que preenche o homem quando esta não é mais projetada. Aqui entendemos que há uma aproximação da consciência à anima arquetípica, conforme o processo de individuação, com o ego deixando de ser “refém” de um complexo, adentrando na relação arquetípica com a anima. Ao explorar o papel psíquico da anima, Johnson afirma o seguinte:
“Algo muito específico é necessário para devolver à anima o seu papel psicológico […]: o homem precisa estar disposto a parar de projetar a anima nas mulheres de sua vida. Isso por si só já possibilita que a anima desempenhe o papel exato dentro da sua psique, e só isso possibilita que ele veja a sua mulher tal qual ela é, sem o fardo de suas projeções” (JOHNSON, 1987b, p. 134).
Nesse sentido, a anima projetada nos parece estar muito mais aproximada a dinâmica de um complexo, ao passo que a anima em seu papel psíquico, está mais próxima ao seu caráter arquetípico.
Emma Jung e von Franz (1980), tal como Johnson, também investigaram simbolicamente a lenda de Perceval e o Graal. No que tange a anima, dizem o seguinte:
“A sua imagem parece derivar da imagem da mãe e nela como que se incorpora a porção de feminilidade que vive o homem e também a experiência que o homem tem com a mulher [complexo do inconsciente pessoal]. Mas ela é também, ao mesmo tempo, o a priori de todas as experiências do homem com a mulher, porque, surgindo como deusa, a Anima é um arquétipo e possui, por isso, uma existência real invariável anterior a toda experiência [estrutura do inconsciente coletivo]” (JUNG, Emma; VON FRANZ, 1980, p. 49-50, grifos nossos).
Essa passagem nos leva a entender que existe sim um aspecto como complexo e um aspecto como arquétipo da anima. Emma Jung, por sua vez, dedicou um livro inteiro para descrever características da anima e do animus. Sobre o animus, ela menciona o seguinte:
“O fato de tratar-se de um complexo, de um órgão que pertence à individualidade e que está destinado ao funcionamento, explica que o animus atraia a libido para si até atingir uma dimensão imponente, até tornar-se uma figura autônoma” (JUNG, Emma, 2006, p. 24, grifo nosso).
Quem atrai libido, segundo o conceito junguiano de complexo, é um núcleo arquetípico, sendo este rodeado por afetos pessoais, sensíveis a este núcleo. Já a anima, Emma descreve desta forma:
“Sabe-se que esta representa o componente feminino da personalidade do homem [complexo], mas ao mesmo tempo a imagem do ser feminino que este de modo geral traz em si; em outras palavras, o arquétipo do feminino” [dimensão arquetípica da anima] (JUNG, Emma, 2006, p. 57, grifos nossos).
Nos parece que há sim uma correspondência entre anima/animus arquetípicos e anima/animus como complexos. Mas até então exploramos algumas visões de autores junguianos, e afinal, o que Carl Jung diz sobre isso? Primeiramente reafirmamos o que disse Sanford, ao mencionar que existem diversas formas descritas por Jung, e por isso não arriscamos querer encerrar o tema deste breve artigo.
No texto sobre a anima escrito no volume 9/1, publicado originalmente em 1936, revisado e republicado em 1954 (e questão das datas de publicação importa para este nosso ensaio), ou seja, por um Jung já maduro e com seus conceitos mais claros, ao investigar o processo de projeção da anima, ele afirma o seguinte: “Ora, sabemos que a projeção é um processo inconsciente automático […]. A projeção cessa no momento em que se torna consciente, isto é, ao ser constatado que o conteúdo pertence ao sujeito” (JUNG, 2012b, OC 9/1, § 121). Se o conteúdo pertence ao sujeito, Jung está se referindo a um conteúdo do inconsciente pessoal pois um arquétipo não pertence a um sujeito, mas ao inconsciente coletivo (como veremos mais abaixo), portanto, não é “propriedade particular”, diferentemente de como são os complexos e as imagens arquetípicas.
No mesmo texto, Jung disse o seguinte:
“Nas experiências da vida amorosa do homem a psicologia deste arquétipo manifesta-se sob a forma de uma fascinação sem limites, de uma supervalorização e ofuscamento, ou sob a forma da misoginia em todos os seus graus e variantes, que não se explicam de modo algum pela natureza dos ‘objetos’ em questão, mas apenas pela transferência do complexo materno” (JUNG, 2012b, OC 9/1, § 141).
Isto implica em um entendimento de que sim, há uma correspondência da anima (e do animus) com os complexos. Seria então apenas uma questão de terminologia? Dito de outra forma, seriam as palavras anima e animus as mais adequadas quando fôssemos nos referir especificamente ao arquétipo, e quando formos investigar um complexo que aponte para estes arquétipos, seriam mais adequados usarmos termos mais específicos? Exemplo: complexos potencialmente relacionados ao animus: complexo paterno, complexo de poder, etc.; complexos potencialmente relacionados à anima: complexo materno, complexo de vítima, etc. Ao nosso ver, além disso ser um erro conceitual, seria apenas um preciosismo conceitual. Não vemos Jung utilizar na obra “complexo de anima” ou “complexo de animus”, mas, de alguma forma, ele deixa isso claro, especialmente ao descrever os aspectos da psicologia dessas estruturas autônomas.
Ainda no livro 9/1, há um detalhe relevante: no último parágrafo (§ 147) do texto sobre a anima, que foi revisado em 1954, Jung coloca uma nota de rodapé indicando as leituras dos livros “O eu e o inconsciente” 7/2 (escrito em 1934) e “Psicologia da transferência” (hoje integrante do volume 16/2, escrito em 1946), afirmando que nestes textos estão questões importantes para serem trabalhadas no processo psicoterapêutico sobre anima e animus.
Eis um trecho do texto de 1934, volume 7/2: “[…] ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher” (JUNG, 2013a, OC 7/2, § 339, grifos nossos).
Já no texto do livro 16/2, de 1946, ao examinar aspectos do confronto do ego com a anima e o animus projetados, Jung afirma enfaticamente:
“Se o enfoque psicológico com o qual empreendemos esse confronto for excessivamente personalista, não estaremos levando na devida conta o fato de que se trata de um arquétipo coletivo, o qual não deve de forma alguma ser entendido de um modo pessoal. Ele constitui, muito pelo contrário, um pressuposto universal, e isto a um ponto tal, que muitas vezes nos parece aconselhável referir-nos não a minha anima ou meu animus e sim à anima e ao animus simplesmente” (JUNG, 2012a, OC 16/2, § 469, grifos nossos).
Resumindo: em um texto revisado em 1954 Jung referencia textos de 1934 e 1946, os quais aparentam alguma contradição. Mas não achamos que seja uma contradição de fato, também concordando com a afirmação de Sanford (1987). O texto do volume 16/2 nos parece que quando Jung afirma que anima e animus são arquétipos e jamais pessoais, ele se refere ao papel que estes devem ocupar na psique diferenciada, ou seja, após perderem seu caráter de complexo e passarem a ocupar seu devido espaço arquetípico. No 7/2 ele se preocupa mais em definir a dinâmica de anima e animus, assumindo que são complexos, com núcleos arquetípicos, portanto também potências arquetípicas.
O que podemos afirmar, mesmo que não categoricamente, é que anima e animus são complexos em certo sentido (mesmo que eventualmente categorizados em diversos outros “micro” complexos dentro de um grande complexo), e arquétipos em outro sentido, quando estes não são mais projetados e ocupam plenamente a psique. Isso é que os autores junguianos de referência nos indicam, além das falas do próprio Jung que apontam para esta direção. Em outras palavras, há uma correspondência da anima e do animus nas qualidades de arquétipo e de complexo.
Nosso desejo com este texto é abrir um espaço para a reflexão e aprofundamento sobre este tema, pois nos parece que a não preocupação por parte de Jung em determinar claramente os conceitos, acaba criando uma confusão quando nos referimos a estas estruturas. Como o próprio Jung afirma, não temos essas estruturas individualmente, pois são arquetípicas, portanto, as temos coletivamente. Por outro lado, acessamos seu manancial arquetípico a partir das experiências que são formadas e categorizadas nos complexos, especialmente a partir do momento que deixamos de projetá-los na mulher e no homem. E entender essa sutil diferença é fundamental no sentido da análise e no sentido da produção de conteúdos (textos, vídeos, artigos, aulas e outros) que estudam o tema. Essa é a nossa perspectiva, mas sem a pretensão de encerrar esta questão, até porque o tema anima e animus é trabalhado por Jung em outros textos que não mencionados aqui.
Rafael Rodrigues de Souza – Membro analista em formação do IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata
Referências
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O casamento está morto. Viva o casamento! São Paulo: Símbolo, 1980.
JOHNSON, Robert A. He: a chave do entendimento da psicologia masculina: uma interpretação baseada no mito de Parsifal e a procura do Santo Graal, usando conceitos psicológicos junguianos. São Paulo: Mercuryo, 1987a.
______. We: a chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Mercuryo, 1987b.
JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica (vol. 8/1). 8ª ed. corrigida. Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência (vol. 16/2). 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012a.
______. Os arquétipos e o inconsciente coletivo (vol. 9/1). 8ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012b.
______. O eu e o inconsciente (vol. 7/2). 25ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
______. Psicogênese das doenças mentais (vol. 3). 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, Emma. Animus e anima. São Paulo: Cultrix, 2006.
JUNG, Emma; VON FRANZ, Marie-Louise. A lenda do Graal: do ponto de vista psicológico. São Paulo: Cultrix, 1980.
SANFORD, John A. Os parceiros invisíveis: o masculino e o feminino dentro de cada um de nós. São Paulo: Paulos, 1987.
VON FRANZ, Marie-Louise. Alchemy. Toronto: Inner City Books, 1980.