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As raízes do Livro Vermelho de Carl Gustav Jung

“Um homem pode sobreviver a todos os seus amigos e parentes, enterrar  aqueles  que  ele  mais  ama  e levar  uma existência solitária como um estrangeiro numa  época estranha; mas  não pode sobreviver  a si  mesmo  e aos fatores internos de sua vida, e não pode enterrá-los, pois eles são seu verdadeiro eu e, assim, são inalienáveis”.

Carl Gustav Jung

Proferidas em 1898, essas palavras parecem uma espécie de antecipação do que seria a vida de seu próprio autor: um homem que suportou a perda e o afastamento de amigos, o isolamento intelectual e uma desorientação, espacial e temporal, pois deliberadamente manteve-se fiel a si mesmo, entregando-se ao desconhecido, ao “espírito da profundeza”, como podemos agora ler em seu Livro Vermelho. Mais que um registro de suas imagens interiores, o Liber Novus, como Jung o denominou, mostra a atitude de um cientista que não negligenciou a atividade psíquica para além da razão, mas a experenciou, realizando-a na vida. Atitude sem a qual não teria legado esta obra tão significativa não só para a história do pensamento ocidental, mas, principalmente, para a psiquiatria, a psicologia e a psicoterapia modernas.

Desde a sua publicação em 2009 (no Brasil, em 2010), vários são os comentários tecidos a respeito do Livro Vermelho, mas considerá-lo como resultado de uma crise provocada pela ruptura com Freud, e o movimento psicanalítico, opinião amplamente difundida, creio que seria um equívoco. Antes, o sentido seria inverso: exatamente por ter tal atitude científica, de um pensador, de um crítico, que busca a compreensão do mundo de seu tempo e, portanto, do homem que nele habita, Jung não poderia se satisfazer com uma psicologia personalista, um referencial bio-causal como única alternativa para se entender as vicissitudes da condição humana.

Atitude científica esta perceptível já em suas primeiras comunicações públicas, quando ainda era um jovem candidato a médico na Universidade de Basileia sem, ainda, qualquer pretensão quanto à especialidade que iria seguir. Neste período, entre os anos 1896-1898, portanto quando contava entre 21 e 23 anos, Jung participou ativamente do Clube Zofingia, proferindo cinco palestras aos seus colegas desta agremiação estudantil, com membros de várias Universidades, chegando, inclusive, a presidi-la no biênio 1897-98. Nelas é possível verificar a consistência entre suas primeiras ideias e seu pensamento posterior, bem como quais questões o perturbavam na época e que iriam nortear toda sua atividade científica até que, finalmente, encontrasse possíveis respostas. E, como veremos a seguir, nessas primeiras ideias já se encontram os germes ou, poder-se-ia dizer, estão fincadas as raízes do Livro Vermelho.

É assim que, por exemplo, sua crítica feroz ao materialismo da época, feita na primeira conferência, retratando-o como um “gigantesco absurdo com pés de barro” que só poderia conduzir à morte intelectual, já aponta para a sua insatisfação quanto às explicações causais, pois se é possível confirmar a operação da causalidade no domínio do fenômeno concreto, não o é explicá-lo. Isto porque, diz Jung nesta conferência de 1896, intitulada As zonas limites da ciência exata: “o exame crítico das afirmações racionais nos conduz para um domínio imaterial e metafísico”. E chega a esta conclusão depois de discutir a circularidade do argumento da lei da gravidade – “a matéria exerce força gravitacional porque é propriedade da matéria exercer força gravitacional” – e a teoria atômica e molecular, base do sistema da química moderna – “matéria tem extensão e, assim, nunca poderá ser composta por partículas sem extensão” -, discussão esta que o conduz ao problema que lhe é mais importante: a origem da vida, terreno das ciências biológicas – zoologia, botânica e fisiologia – entre as quais ele inclui a psicologia. E, aqui, ele mostra não se tratar de uma questão insolúvel entre a realidade e a afirmação da razão, como acontecia nos argumentos da Física e da Química, mas um choque entre duas afirmações, ambas consistentes com a razão: o mecanicismo e o vitalismo. Mas como sustentar o argumento mecanicista de que a vida é função das atividades bioquímicas da matéria? Ao mesmo tempo, como admitir que um princípio vital, portanto, imaterial, só se manifeste materialmente? Jung termina sua primeira conferência dizendo: “o que queremos é permitir que o imaterial retenha suas propriedades imateriais”.

Essa questão, aparentemente esquecida durante os primeiros anos de atividade profissional, é a que introduz o Liber Primus, a primeira parte do Livro Vermelho, quando Jung confessa: “cheio de vaidade humana e cego pelo ousado espírito dessa época, procurei por muito tempo manter afastado de mim aquele outro espírito”. Ele se refere ao “espírito da profundeza” como aquele que “possui, desde sempre e pelo futuro afora, maior poder que o espírito dessa época que muda com as gerações”. Uma referência clara à psique inconsciente que aparece, pela primeira vez, na sua segunda conferência: “Alguns pensamentos sobre psicologia”.

Proferida em maio de 1897, esta comunicação é iniciada com a afirmação de Kant de que a moralidade é essencial à ciência e que os conceitos de Deus e do outro mundo, objeto das especulações filosóficas, não teriam valor sem a moralidade. Além de Kant, Jung recorre a outros dois nomes, cuja agudeza de pensamento, segundo ele, também está fora de dúvida: David Strauss e Schopenhauer, principalmente no que se refere à existência de naturezas imateriais no mundo, sendo a alma uma destas naturezas que, se por um lado, percebe o mundo material porque está ligada ao corpo, por outro, como um elemento do mundo espiritual, recebe as influências das naturezas imateriais, do “outro mundo”. Em seguida, critica a fisiologia moderna que insiste em explicar a vida em termos de leis naturais, “quando todo o tempo está claro que a vida existe a despeito dessas leis”, afirmando que se aplicarmos corretamente a “categoria de causalidade” ao fenômeno da vida orgânica, coisa que a fisiologia moderna não faz, pois confunde causa com efeito, torna-se necessário postularmos a existência de um princípio vital. Princípio este que está para além da consciência, pois é responsável também por nossas funções vegetativas, que não estão sob o controle da nossa vontade consciente. Assim, há uma raiz comum para as funções animal e vegetativa, um “sujeito real”, que é transcendente e, por isso, independe do tempo e do espaço. Jung chamou-o alma e atribuiu-lhe a qualidade de inteligência, isto é, de intencionalidade de suas ações.

Para validar essas reflexões teóricas, Jung apresenta, em seguida, a psicologia empírica, isto é, evidências factuais que sustentem a psicologia racional. Para isso recorre à rica documentação espiritualista sobre o fenômeno da materialização, da telecinesis, da telepatia, da clarividência, dos sonhos proféticos, elencando vários experimentos de diferentes pesquisadores, mostrando, desta forma, a “realidade da psique”, conceito básico da psicologia junguiana e tema central que abordará em sua dissertação “sobre a psicologia e a patologia dos chamados fenômenos ocultos”, de 1902. Para concluir, reafirma a necessidade da moralidade na ciência e critica a ineficácia de alguns teólogos que negam o que, para Jung, é a essência da religião: a realidade do mistério e da esfera “extra-sensorial”, posição que ele nunca abandonou. Sua proposta é a de que a psicologia empírica possa fornecer dados para uma ampliação do nosso conhecimento da vida orgânica, bem como um aprofundamento na visão de mundo, pois nem os postulados duros da razão nem os meros sentimentos religiosos “podem aliviar as ruínas de nossa época; a única coisa que pode fazê-lo são os fatos que diretamente estabeleçam a validade de algo além dos sentidos”, já que “o homem vive nos limites entre dois mundos”. Essa visão de homem como um ser que vive no mundo material e espiritual, externo e interno, físico e psíquico, será o fundamento para as reflexões desenvolvidas por Jung com relação ao sofrimento humano.

Sofrimento este que ele próprio experimenta ao vivenciar, contra si mesmo, o conflito que o espírito da profundeza lhe impôs: entender que “havia perdido” sua alma. Jung se havia devotado ao experimento de associações buscando “chegar aos segredos da psique doentia”, como ele diz na sua aula inaugural, já como livre-docente, na Universidade de Zurique, em 1905. Mas, como ele mesmo considerou no Liber Primus, “eu falava e pensava muita coisa da alma, sabia muitas palavras eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto de ciência”. Contudo, como ele já afirmara nesta segunda conferência, a alma é um sujeito real, transcendente, não podendo, portanto, ser “objeto do juízo e do saber”, como Jung reconhece no Liber Primus ao descrever como se deu o  “reencontro  da alma”. Reafirmou, também, que a erudição pertence ao espírito dessa época e que “a alma está em toda a parte onde o saber ensinado não está”, o que ele retoma de seu artigo para o Raschers Jahrbuch für Schweiser, de 1912, “Novos caminhos da psicologia”:

Quem quiser conhecer a psique humana […] o melhor a fazer seria pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos “meetings” socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no próprio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios.1

Essa preocupação com um “verdadeiro conhecedor da alma humana”, esse pensamento crítico que Jung enfatizou não só no Livro Vermelho, mas em sua obra como um todo, aparece em seu “Discurso inaugural de posse da presidência do Clube Zofingia”, para o biênio 1897-98, sua terceira comunicação, em que, além de mostrar conhecimento da realidade política nacional e internacional, ele convoca seus companheiros a perseguirem o ideal do Clube: não formar “animais políticos”, seres aptos a atravessarem o “rio do lodo político”, homens, portanto, sem alma e sem consciência, mas, antes, humanos no verdadeiro sentido da palavra, isto é, “seres humanos que riem e choram, seres humanos conscientes de suas intenções e desejos, seres humanos que sabem que estão vivendo entre outros seres humanos e que devem suportar uns aos outros porque todos estão condenados a serem humanos”. Acrescenta, ainda, que esta tarefa não seria menor do que limpar os estábulos de Augias 2, árdua o suficiente para levar qualquer um ao desespero, finalizando com a lembrança de que “há algo de moralidade antes de tudo”.

Esta inquietação com o lugar e a participação do homem no mundo acompanhou Jung por toda vida, mas, sobretudo, em suas experiências interiores registradas no Livro Vermelho: “precisei de um sinal visível que me mostrasse que o espírito da profundeza em mim é também ao mesmo tempo o senhor da profundeza do que acontece no mundo”, como ele diz na introdução, intitulada “O caminho daquele que virá”, escrita de próprio punho em 1915, quando apresenta aos seus “amigos”, como ele mesmo se refere, “os fundamentos e as intenções da mensagem” que lhe foram “impostas”.

Depois das visões que tivera no final de 1913 e dos sonhos no início de 1914 3, sem qualquer sucesso em interpretá-los, Jung chegou a pensar que estivesse com o “espírito doente”. Como psiquiatra que era, pensou estar “a caminho de ‘fazer uma esquizofrenia”, como revelou a Mircea Eliade em uma entrevista para a revista Combat, em 1952:

Eu estava justamente nesta época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: “estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente, enlouquecerei depois de ler a conferência”. O congresso teria lugar em julho de 1914 – exatamente no período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente, entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos.4

Todavia, foram essas visões e esses sonhos que fizeram Jung perceber que o que ele havia alcançado até então, “fama, poder, riqueza, saber e toda felicidade humana”, consistia apenas na “metade do mundo”, pois “quem possui o mundo, mas não possui sua imagem, possui só a metade do mundo, pois sua alma é pobre e sem bens. […] Quem ambiciona coisas, este empobrece com o aumento de riquezas exteriores, e sua alma sucumbe a uma doença crônica.” (Liber Primus) O reconhecimento de que sua alma, na verdade, era algo distante e desconhecido – e não aquilo que havia designado como alma que não passava de um “sistema doutrinário morto” -, algo que “não tem existência através de mim, mas através do qual eu tenho existência”,  levou Jung ao “serviço da alma”, como ele descreve no Liber Primus. Ainda que este “reconhecimento” tenha ocorrido de fato quando o espírito da profundeza o “forçou” através de um “desejo interior irresistível e insuportável”, esta reflexão, poderíamos dizer, esta preocupação ou mesmo indagação, já estava presente na sua quarta conferência, de 1898.

Intitulada “Pensamentos sobre a natureza e o valor da investigação especulativa”, da qual fazem parte as palavras em epígrafe, nesta conferência Jung se vale de questionamentos quanto aos objetivos e ao significado do trabalho científico para, de fato, desenvolver reflexões muito mais profundas. Observando a falta de sentido do sucesso externo, preocupação do homem moderno que vê na prosperidade material o exclusivo propósito humano, diferente do homem medieval para quem o desenvolvimento representava algo interno, não externo, Jung afirma que a felicidade, na medida em que se trata de um sentimento subjetivo, não está nas coisas materais. E, desta forma, parece que o que conduz o homem à felicidade poderia ser encontrado no imperativo categórico de Kant e no instinto causal de Edward Von Hartman. O primeiro se refere à consciência ética mais íntima, assunto que Jung refletirá extensivamente em sua obra posterior 5; enquanto o segundo seria um impulso individual para entender a realidade interna e externa, uma aspiração apaixonada, como anos mais tarde, em suas Memórias, ele definiu: “este instinto insaciável de compreensão criou, poder-se-ia dizer, uma consciência para conhecer o que é, o que ocorre e, por acréscimo, descobrir representações míticas a partir das fracas alusões ao que não pode ser conhecido” 6. Ou seja, um impulso em direção à descoberta de sentido, “um desejo ardente pela verdade” que, inevitavelmente, conduz à religião, como ele mostrará ao final da conferência. Impulso este que o levou a ampliar seu campo de estudo, para além da medicina tradicional, considerando a importância “das ciências do espírito, sobretudo da história do espírito humano” 7, quando, já psiquiatra, tentava entender as fantasias de seus pacientes, e depois as suas próprias, isto é, os conteúdos anímicos que não encontravam lugar nem na medicina tradicional, nem na “estreiteza sufocante da psicologia e da filosofia de Freud” 8. É esta exatamente a questão que norteia o Livro Vermelho: o conflito entre o externo e o interno, entre o “espírito desta época” e o “espírito da profundeza”. Aquele permite ao indivíduo alcançar fama, poder, riqueza, saber, isto é, a prosperidade e, consequentemente, a felicidade humana; enquanto o segundo toma a razão e o conhecimento, colocando-os a serviço do absurdo e do inexplicável, “da interfusão do sentido e do absurdo, que produz o sentido supremo”.

Esse conhecimento, no entanto, continua Jung em sua comunicação, “consistiria em inferências esboçadas sobre o desconhecido, de acordo com o princípio da razão suficiente, baseadas na experiência real”, e não inferências sobre o mundo interior a partir do exterior, como faz a ciência materialista, ou uma negação da realidade externa afirmando somente a interna, como os subjetivistas radicais, que olham o mundo como mera ilusão. Para ele, a base de todo conhecimento está no que “experenciamos de nós mesmos e, através de nós mesmos, do mundo ao nosso redor”. Encontramos, aqui, as bases do empirismo que Jung afirma durante toda sua atividade científica, bem como sua atitude frente às suas próprias experiências registradas, refletidas e elaboradas no Liber Novus.

Todavia, essa busca de conhecimento, ainda de acordo com o princípio da razão suficiente, contém um elemento teleológico, pois, enquanto instinto, ocorre independente da colaboração da nossa vontade, antecipando o que no tempo pode se tornar um pensamento consciente, cuja causa pode ser material, mas sua verdadeira “motivação é uma ideia propositada que nos é desconhecida”. E, nessa medida, a categoria de causalidade deve ser interpretada como uma referência a priori, “uma continuação da natureza material no incalculável, no incomensurável e no inescrutável”. Ou seja, o instinto causal, ou o impulso que nos conduz à busca do sentido, não é nem material, nem psíquico, mas está para além dessas duas esferas, ainda que as inclua: é transcendente à consciência. É nesta ideia que se assentam os antecedentes da noção de arquétipo e sua natureza psicóide, e, consequentemente, de inconsciente coletivo que Jung vivenciará, como está descrito no Livro Vermelho, e desenvolverá posteriormente.

Qual seria, então, a motivação desconhecida do instinto causal? Jung cita Schopenhauer, para quem seria a Vontade cega, e Hartmann, que aponta para um desejo e imaginação inconscientes. Mas, se ambos os filósofos são monistas, isto é, interpretam o mundo como decorrente de uma única substância, ao mesmo tempo consideram não só os conflitos internos do coração do homem como a dissonância na vida humana. Além disso, continua Jung, basta contemplarmos a natureza para percebermos a atuação de dois poderes antagônicos, dois poderes radicalmente diferentes “em furiosa luta por dominação”: um deles nivela, alisa, reduz ao repouso, conduz à morte, enquanto o outro confere cor, movimento e vida. Isto foi, inclusive, admitido como princípio biológico: a luta pela existência. É exatamente esta cisão fundamental na natureza que é “a precondição para a ocorrência no organismo físico do estranho fenômeno do sofrimento humano”, pois se, enquanto matéria, o organismo está submetido às leis físicas e, assim, em constante luta com o meio ambiente, há um princípio vital que o anima. Este é, em última instância, o dualismo do fenômeno orgânico. É possível vislumbrar aqui a questão dos opostos que fundamentará o pensamento ulterior de Jung. E é no “dualismo fundamentado nas profundezas da natureza” que ele encontra a justificação da primazia do instinto causal que, sozinho, coloca em evidência a raiz verdadeira de nossa natureza: “a atividade incondicional”, que consiste no caráter teleológico da categoria de causalidade.

Afirmar, no entanto, o instinto causal é admitir que os interesses humanos não estão voltados ao mundo material, pois a relação com as coisas materiais não é intencional; e que a personalidade humana deseja a diversidade, isto é, há intencionalidade no desejo de diversificação entre o indivíduo e tudo o que existe. Assim, “quanto mais perto nos aproximamos das raízes de nosso ser, mais genuína e mais duradoura nossa felicidade se torna”. Podemos observar, então, a presença da ideia, ainda incipiente, do sentido da existência humana que culminará no conceito de processo de individuação, na busca da diferenciação, do tornar-se a singularidade que se é, que Jung chega depois de encontrar eco de suas experiências, registradas no Liber Novus, nos processos descritos pela Alquimia.

Aproximar-se das raízes do próprio ser é o que Jung fez quando escutou o espírito da profundeza, reencontrando sua alma e a ela se entregando, indo para o deserto, descendo ao inferno, assassinando o herói, o que lhe permitiu abrir o “caminho daquele que virá”, título, aliás, do Liber Primus, chegando ao Mysterium que lhe mostrou “em imagens o que devia viver depois”. Mas isto só foi possível depois de experimentar a ambiguidade de Deus.

O Mysterium o fez vivenciar dois princípios conflitantes e interdependentes: o pensar prévio e o amor, e o levou a ser “transformado” em Cristo, isto é, a ver “o relativo humano transformado no absoluto divino”. Essa experiência do autossacrifício, descrita no final do Liber Primus,  Jung já fizera referência na quinta e última conferência de Zofíngia, “Pensamentos sobre a interpretação do cristianismo, com referência à teoria de Albrecht Ritschl”, quando aborda exatamente a questão do mistério e da figura de Cristo. Pronunciada em 1899, nesta conferência ele dá seguimento ao que vinha refletindo anteriormente, só que agora de forma evidente: a questão da religião. Justifica o abandono de seu campo de estudo, a medicina, para se aventurar numa esfera não familiar, a teologia, na busca pela verdade. Busca da qual a crítica erudita, baseada no conceito de “homem normal” introduzido pela filosofia moderna, se afasta ao destilar a figura de Cristo e, assim, considerar apenas o Jesus histórico. Como Ele pode ser, então, a força motivacional? De que modo ocorre a determinação da ação ética cristã?

Jung analisa detalhadamente a teoria de Ritschl, uma representante das interpretações modernas de Cristo, para mostrar como a teologia moderna, que ele ironicamente chama de “teologia progressista”, reduz o relacionamento do homem com Deus e com Cristo a um derivado de uma necessidade epistemológica, ou seja, a unio mystica é eliminada pois não passa de uma “confusão de um sentimento subjetivo de valor com uma sensação objetivamente determinada”. Segundo Jung, “Ritschl desenvolve seu fundamento da ética inteiramente na esfera da razão discursiva e perceptibilidade sensorial”. Em outras palavras, Jung aponta para a crise espiritual do homem moderno, a alienação espiritual contemporânea, que será o tema principal do Liber Novus. Crise para a qual contribuiu não só o desenvolvimento do materialismo científico, mas também a visão teológica que deixa de lado toda uma tradição, os ensinamentos que a Idade Média legou, para postular que a ética cristã é construída a partir da memória que nos é transmitida pelas fontes antigas acerca dos feitos de Cristo e do sentimento de valor que nos é inculcado, que se fixa na ideia da vida moral de Cristo, isto é, adquirimos motivação para seguir o modelo de Cristo através da sensação consciente. E conclui esta quinta conferência lembrando as palavras de Edward von Hartmann: “nenhuma religião em absoluto é possível sem a profundidade premonitória e riqueza infinita daquele mistério que mostra um aspecto diferente para todo ser humano”.

Profundidade e riqueza nas quais Jung mergulha, vivendo um mundo de imagens que lhe permite alcançar uma nova imagem de Deus, não retornando à Idade Média, o que seria impossível, pois significaria uma “desintegração da ordem existente na natureza”, como ele diz na sua quinta conferência, mas uma espiritualização interior que ele desenvolverá na forma de uma cosmologia psicológica e, por que não dizer, teológica. Como insistiu em várias ocasiões, o cristianismo não poderia ser descartado, mas vivido de uma nova maneira a fim de tentar responder aquelas questões que o cristianismo medieval deixou sem resposta: uma confrontação com mal e a participação humana no drama divino, além da integração do princípio feminino, como matéria ou Natureza. Questões que perpassam toda sua obra, mas que Jung abordará de forma objetiva na maturidade, naquilo que prefiro chamar de sua “trilogia”: Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, Aion e Resposta a Jó, sendo este último o ápice das reflexões que o inquietaram na juventude, por certo as raízes do que ele vivenciaria na metanoia, “um fluxo de lava líquida e incandescente; sua cristalização engendrou a pedra em que pude trabalhar” 9.

Dra. Lilian Wurzba

Psicóloga, – Especialista em Psicologia Analítica, Mestre e Doutora em Ciências da Religião pela PUC-SP. Professora do IJEP – instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa

Autora do Livro: Natureza Irreal ou Fantastica Realidade? Reflexões sobre a melancolia religiosa e suas expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch – Editora Eleva Cultural


1- In Psicologia do Inconsciente, p. 112, Apêndice.

2 – O sexto, dos doze trabalhos de Hércules, consistiu em limpar os estábulos do rei Augias que havia 30 anos não os limpava, o que provocou uma esterilidade nas terras da Élida.

3 – Relatados na introducão feita por Jung ao Livro Vermelho, bem como em Memórias, Sonhos e Reflexões.

4 – In: MCGUIRRE. W.; R.F.C. HULL, C.G.Jung: entrevistas e encontros. São Paulo: Cultrix, 1982, p. 213-4.

5 – Cf. especialmente C.G.JUNG, “A consciência na visão psicológica”, in: ______ Civilização em transição. Petrópolis, Vozes, 1993, p. 165-181. Em Resposta a Jó, p. 76 e 102, e Interpretação psicológica do dogma da Trindade, p.86, Jung cita um dito de Jesus que, para ele, deveria ser “epígrafe a uma renovação moral”: “Se sabes o que fazes, és feliz; se não sabes, és um maldito”. Trata-se de uma interpolação apócrifa de Lc 6,41. Codex Bezae Cantabrigiensis, 1864.

6 – C.G.JUNG, Memorias, sonhos, reflexões. 12.ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1989, p. 279.

7 – Idem, Simbolos da transformação, p. XIX.

8 – Ibid., p. XIV.

9 – C.G.JUNG, Memórias, sonhos e reflexões, p. 176.

Lilian Wurzba 

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