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De Coré à Perséfone: O voo da borboleta

Explore o mito de Coré e Perséfone sob a perspectiva junguiana, revelando o profundo processo de transformação da psique feminina.

Explore o mito de Coré e Perséfone sob a perspectiva junguiana, revelando o profundo processo de transformação da psique feminina.

Hoje escolhi falar de uma Deusa da mitologia grega que, por meio do seu mito, traz aspectos importantes do processo de transformação da psique feminina. Muitos de nós conhecemos Perséfone através do mito de Deméter, a Deusa da maternidade, da fertilidade e da nutrição, entretanto o mito de Deméter-Perséfone vai além do ensinamento de criar os filhos para o mundo, ele nos traz a reflexão sobre o processo de metamorfose da consciência onde predominam os atributos do feminino (Aqui não estou me restringindo apenas à mulher e sim ao arquétipo).

Coré, que em grego significa virgem, vivia com sua mãe na superfície da Terra onde absolutamente tudo de “bom” era lhe provido e era protegida de qualquer tipo de “perigo”. Coré vivia em uma eterna primavera, onde a predominância desta estação é um clima agradável e ameno. Porém essa situação se modifica quando um dia, Hades irrompe do subterrâneo, vê Coré e se apaixona perdidamente por ela, raptando Coré da superfície e levando-a até o mundo inferior. Bom existe um desenrolar do mito até que se descobre que Coré está com Hades no seu reino e não mais se chama Coré e sim Perséfone, esposa de Hades, o Deus do Submundo, agora a desprotegida e imatura Coré é a Rainha das profundezas, é uma Deusa profunda, uma Deusa de Poder, Deusa responsável por cortar o vínculo da alma com o corpo humano (BRANDAO, 1986).

Antes de entrar nos significados simbólicos do mito em si é importante trazer para este artigo o conceito de Anima e Animus desenvolvido por Jung.

Animus e Anima são arquétipos, que segundo Jung (1991b) constituem uma função psicológica importante: a de serem os condutores da alma na jornada de autoconhecimento que requer o atravessamento da sombra, sendo funções psíquicas que intermediam consciente e inconsciente.

Como vou falar sobre a consciência Feminina, aprofundarei aqui o conceito de Animus: Como a teoria Junguiana se baseia na polaridade, onde o UNO é a integração de opostos, então se em uma pessoa os aspectos femininos predominam na consciência, no seu inconsciente existe necessariamente uma imagem de uma forma masculina: Animus, uma divindade inconsciente onde há uma consciência feminina.

Se a consciência Feminina, tem em sua luz todo o lado Eros aflorado, (sentimental e criativo), em seu inconsciente vive o Animus que traz toda racionalidade, o pragmatismo, a luta e a direção.

Através do Animus, o feminino consciente, atravessa as sombras, tendo que lidar com aspectos de pouco conhecimento de seu ego, trazendo o ímpeto, a determinação e a realização para a personalidade consciente feminina.

“A psicologia da mulher se baseia no princípio do Eros, que une e separa, ao passo que o homem, desde sempre, encontra no Logos seu princípio supremo. O conceito Eros, em linguagem moderna, poderia ser expresso como relação psíquica, e o do Logos como interesse objetivo”. (JUNG, 2012c, p.134)

Entendendo o significado do mito, Coré representa a menina indecisa, que não desagrada, que põe nas mãos externas (Deméter) as rédeas de seu destino e assim nessa dinâmica ela pode seguir pelo resto de sua vida. Entretanto se Coré se permitir atravessar o inconsciente (mundos inferiores) com seu Animus (Hades), ela vira a senhora, a rainha do mundo oculto, do inconsciente, virando a poderosa Perséfone: Deusa dotada de beleza estonteante, conhecimentos profundos e uma conexão com o mundo interior tão poderosa, que aos olhos racionais seriam entendidos como algo mágico, místico: o nosso sagrado. Tal qual lagarta que para poder voar e se reproduzir, Coré precisa entrar no casulo (inconsciente) para sofrer uma metamorfose (a etimologia vem da palavra grega metamórphōsis, que significa transformação, segundo dicionário Michaelis), sem a morte da lagarta, não há o voo da borboleta.

Uma consciência feminina sem a integração com seu Animus funciona tal qual Coré: insegura, se cobra demais, pois agradar e colocar o poder de decisão, de proteção e de nutrição na mão dos outros é sinônimo da sua vida.

Ela acredita que a vida deve ser perfeita e morre de medo de errar e acaba vivendo essa manifestação do Animus como uma grande crítica àquilo que a consciência realiza. Ou seja, sem o casamento de Coré com Hades (diálogo do consciente com inconsciente), a Coré fica refém do rapto, possessão desse Animus, esta crítica excessiva. Porém se Coré se permite descer ao mundo escuro, passar pelas sombras mais aterrorizantes de sua própria inconsciência perceberá o quão poderosa é, que a maior proteção e realização não está no externo, na superfície (que no mito é simbolizado por sua Mãe), mas sim na conexão com o profundo, dentro dela.

“Seja-me dado aqui dizer apenas que entendo o mundo inferior como o reino das almas. Efetivamente, para os gregos de Homero, a psique só era encontrada no Hades. O mundo inferior não a vida – era o lugar da psique” (BERRY, 1980, p. 88).

Tal dinâmica é tão poderosa arquetipicamente falando, que muitos livros/filmes com este enredo acabam se tornando histórias de grande sucesso de vendas, como por exemplo: 50 tons de cinza e a saga infantojuvenil o Crepúsculo. Em ambas as histórias existe um homem poderoso e sombrio (Hades) que transforma a vida da garota simples e medíocre (Coré) em uma mulher especial e poderosa (Perséfone). Mas o importante é trabalhar aqui é o símbolo disso tudo.

Essas histórias simbolizam o movimento interno que a consciência feminina deve vivenciar para chegar aos aspectos poderosos, numinosos e transformadores. Sabemos que muitas vezes as histórias, mitos, símbolos, são lidos pela consciência de forma literal, não fazendo o trabalho psicológico que é o diálogo consciente com o mundo inconsciente e muitas vezes nessa literalidade, as mulheres projetam fora, o que deveriam vivenciar em sua psique.

Vamos falar de outro conceito Junguiano importantíssimo: Projeção

Quando não conseguimos fazer esse diálogo internamente, nossa pisque espelha fora o que precisamos trabalhar dentro. Falando em exemplos práticos quando a consciência, primordialmente, feminina não faz o diálogo com seu masculino poderoso e sombrio, não realiza o diálogo necessário, ou seja, o aprofundamento, criando raízes para seguir seus caminho singular, o que acontece? Ela se liga afetivamente à essa imagem externa: Um amor, um professor, um chefe etc. E quando eu digo afetivamente, não é uma relação amorosa e/ou sexual.

É realmente ficar tomada de afetos por aquela figura. Fazendo com que esses tomem autonomia versus o ego: “nada há de espantoso no fato de o inconsciente aparecer projetado ou simbolizado, pois de outra forma ele nem seria percebido” (JUNG, 2018, p.125).

Por isso a projeção acaba sendo um dos nossos primeiros contatos conscientes com o que há em nossa psique, eu mesma em minha adolescência passei por uma experiência projetiva, porém extremamente curativa, conforme relato a seguir.

Em minha infância e adolescência era uma típica representação da Deusa Coré: Muito sensível ao mundo real, extremamente dependente dos meus pais e insegura, fazia tudo para agradar com o intuito de ser aceita e amada.

Provavelmente não sairia dessa dinâmica se não tivesse me apaixonado na adolescência por um jovem tipicamente “transgressor” aos olhos dos meus pais: o garoto já havia repetido de ano algumas vezes, cursava supletivo a noite (não por dificuldades econômicas dos pais e sim pelas inúmeras vezes que ele havia repetido o ano escolar), skatista e “descolado”.

Eu era a melhor aluna do meu ano, nunca havia colocado um cigarro da boca e estava sonhando em entrar na USP, era da escola para casa e de casa para a escola, vivia em minha superfície pueril tal qual Coré.

Não seria possível tomar as rédeas da minha própria vida se não descesse aos meus infernos e foi através dessa paixão. Ou seja, a partir de uma projeção externa do meu animus que enfrentei as expectativas externas, me aprofundando em mim mesma. E, “raptada” dos domínios de meus pais, me alicercei no material desconfortável, dolorido porém nutridor que é meu interior para seguir o meu caminho singular.

O rapto, minha confrontação para sair da superfície e mergulhar em mim foi condição primordial para a morte da menina e o nascimento da mulher. Como exposto por Patrícia Berry no livro organizado por James Hillman, Encarando os Deuses: “Além disso, essa perda é apoiada pela maior e mais velha mãe da Terra, Gaia (que cultiva a flor sedutora para Hades) – como se a natureza no nível de Gaia entendesse a violação como necessária” (BERRY, 1980, p.88). Porém, essa descida, esse aprofundamento, esse empoderamento, esse casamento entre a consciência Feminina e o Animus só acontecerá quando houver a integração interna

Coré simboliza potência fértil, poderosa geradora de vida: A semente. Que só irá germinar e crescer se for introjetada na solo, dentro da superfície, no profundo. Somente após esse processo de aprofundamento é que a mulher terá raízes fortes, seguras e encontrará os nutrientes necessários para sustentar seus frutos na superfície.

Renata Fraccini Pastorello – Membro Analista em Formação pelo IJEP

Ajax Salvador – Membro Analista Didata IJEP

Bibliografia:

https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/metamorfose

BRANDAO, Junito. Mitologia Grega Volume 1, Petrópolis: Vozes,1986

BERRY, Patrícia. O Rapto de Deméter/Perséfone e a Neurose. In: HILLMAN, James Encarando os Deuses. São Paulo: Cultrix,1980. Cap. 4,

JUNG, Carl. G. Tipos Psicológicos Volume VI, Petrópolis: Vozes,1991

________Civilização em Transição. 5.ed. Petrópolis: Vozes, 2012

________Mysterium Coniunctionis Volume 1. 6ed. Petrópolis: Vozes, 2018

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