Nascemos. Que lindos! Bebês fofinhos, bochechas gordas, narizes amassados e carinhas de joelho.
Somos recebidos pelas nossas famílias ou, em alguns casos, infelizmente, não somos. Então vivemos em um meio diverso do familiar padrão, encaminhados a locais institucionalizados. Mas neste breve artigo, vamos nos ater a uma vivência em âmbito familiar.
Então surgem questionamentos: nascemos despidos, mas será que viemos nus psiquicamente também? Será que somos uma simples folha em branco, quando se trata desta esfera?
Quando olhamos nossa parte física, já podemos dizer que não viemos destituídos de tudo. Existe uma memória genética, um funcionamento orgânico, reflexos ancestrais, impulsos de manutenção, dentre uma infinidade de outros fatores.
Acabamos de nascer, mas já carregamos uma história milenar em cada uma de nossas células.
E na esfera psíquica, o que nos é reservado? Nos formaremos apenas pela influência do meio, pelos costumes, pela educação e pelos exemplos exteriores? Existe algo além do externo e consciente que impacta a formação da psique? Herdamos potencialidades psíquicas da nossa família, assim como herdamos os genes do DNA?
Sobre a possibilidade de herança psíquica que nos debruçaremos neste artigo, com enfoque especial no aspecto familiar e em como este meio pode influenciar na formação da psique.
De pronto, Carl Jung, se apropriando da expressão de Aristóteles, nos adianta que não nascemos uma tábula rasa. Isto é, a alma não nasce vazia, existem predisposições específicas. Com o conhecimento do inconsciente coletivo, não podemos perder de vista que a psique possui um caráter histórico. Mesmo antes da consciência surgir, existem conteúdos que a compõe.
A psique, não surgindo do nada em branco, emerge do inconsciente trazendo conteúdos que a definem com algo que a faz humana. Como a constituição física e genética – dotada de uma anatomia herdada e transmitida através das gerações –, a formação psíquica é decorrente de uma longa série ancestral, e possui conteúdos constelados por uma herança psíquica (JUNG, 2013, p. 329).
A partir disso, olhar para a formação do ego abre caminho à compreensão dos questionamentos iniciais sobre a herança psíquica transgeracional.
Como humanidade, viemos de uma construção histórica de fusão grupal, em que a mescla urobórica era vivida em primeiro plano.
Neumann traça um paralelo histórico e antropológico entre os agrupamentos humanos primevos e o amadurecimento da personalidade. Os povos ancestrais partilhavam de intensa ligação do coletivo com o individual, em que impera a inconsciência sobre a consciência. Era uma fusão entre identidade individual e meio coletivo, preponderando a participation mystique.
De modo análogo, nos primeiros anos de vida de uma criança existe uma identificação inconsciente com o coletivo, mais especificamente com a esfera familiar circundante. Quando nascemos, não possuímos diferenciação de opostos dentro da psique. Tudo é vivido como uno. De acordo com Neumann esta é uma fase pré-egóica. Isto significa que o complexo do ego ainda não está formado e flutua indefinido nos primeiros anos de vida, em que se experimenta um estado urobórico.
Nesse momento, há uma identidade biopsíquica entre corpo e mundo (NEUMANN, 1995, p. 12). O bebê permanece em uma ligação primal, em que as suas percepções sensoriais e de fome, por exemplo, estão extremamente ligadas à satisfação e ao alívio por parte da mãe. A personalidade é em grande parte inconsciente neste período.
A criança experimenta o mundo através desta forte ligação com a mãe, se valendo dos sentimentos e do corpo materno como mediador da sua vivência no mundo. Mas não é só a criança que está imersa, a mãe também está em estado de fusão, mesmo após o desligamento físico do nascimento.
Para a criança, a ligação com a mãe nos primeiros anos de vida será a base da sua relação com o corpo e de sua relação com as outras pessoas.
A partir da segurança deste sentimento inicial de imersão materna, os demais contatos sociais têm este ponto de partida.
O desenvolvimento do ego passa da esfera matriarcal ao patriarcado. Os primeiros estágios possuem a relação primal, já citava, sendo estágios inferiores. Posteriormente, nos estágios superiores e solares, inicia-se uma ligação com o self masculino e com o patriarcal, remetendo ao arquétipo paterno (NEUMANN, 1995, p.113).
Então vemos que, progressivamente, a intensa fusão psíquica e emocional com o meio vai diminuindo. A criança, perto dos dois anos, começa a se auto-referir como “eu” e sua individualidade ocorre por volta dos três e cinco anos de idade (JACOBY, 2010, p. 121). Neste período inicial, principalmente antes da escolarização, a família e os pais têm um peso acentuado na psicosfera infantil, determinando muitas vezes perturbações e problemas psíquicos vivenciados pela criança.
Por esta troca incessante e mais acentuada com o meio no começo da vida, a família é um “centro de gravidade emocional, o local onde começamos a ganhar identidade e a desenvolver o caráter sob a influência das diferentes personalidades que nos cercam” (ZWEIG; ABRAMS, 1994, p. 69).
A criança vive sua psicologia de modo fluído, em um estado de dependência com a família.
Tal estado é normal e esperado. Jung (2013b, p. 84) considera que perturbar esta condição própria da psique humana é prejudicial ao desenvolvimento natural infantil. Ele considera igualmente, que a dependência a esfera circundante é algo próprio de ser humano, sentido ainda mais fortemente na fase da infância:
Se nós, adultos, nos mostramos sensíveis a estas influências do meio ambiente, o que dizer então de uma criança cuja psique é mole e moldável como cera! O pai e a mãe gravam o sinete de sua personalidade fundo na psique da criança; e mais fundo quanto mais sensível e impressionável ela for. Tudo é retratado inconscientemente na criança, mesmo coisas das quais nunca se falou (JUNG, 1995, p. 496).
Por viverem ainda em um estado de participation mystique com os pais, em especial, as crianças sentem os influxos e os movimentos da psique materna e paterna. Para Jung, a alma infantil tem uma natureza ímpar. Dada a sua singularidade, as impressões colhidas do meio não se restringem apenas aos comportamentos exteriores. Mesmo que os exemplos dados não apresentem distúrbios perturbadores, as crianças vivem o que realmente existe e não aquilo que parece ser. Não obstante os pais façam um esforço para minorarem seus complexos e os dominarem, isto não se mostra efetivo, pois os filhos permanecem sendo impactados pelo dinamismo psíquico.
O conteúdo inconsciente tem uma energia que se dissemina à psique infantil e os complexos são contagiantes (JUNG, 2013b, p.63).
A conhecida citação de Jung sobre a vida não vivida dos pais talvez agora faça um sentido ainda mais amplo. É proposto por Jung que existem dois fatores relevantes em disfuncionalidades em crianças. O primeiro é justamente a vida não vivida dos pais, que pode gerar um movimento inconsciente dos filhos de busca da incompletude na vida de seus genitores. Corresponde ao que poderia ter sido feito pelos pais e antepassados, mas não o foi por leniência. É uma “mentira piedosa”, nas palavras do próprio Jung; algo que atenta contra a vida.
Um exemplo (JUNG, 2013c, p. 10) sobre Paracelso é bem ilustrativo. Seu pai teve uma vida reclusa e solitária, distante das evidências sociais. Por sua vez, Paracelso busca tudo o que o pai renunciou: fama e prazeres da vida mundana. Ele seguiu a tônica de desavenças com seus amigos, em consequência da ligação com seu pai, seu único amigo, a quem deve fidelidade. Nesta passagem, Jung, que traz este exemplo, propõe uma ligação real com a vida de nossos ascendentes. Dando a entender o profundo emaranhamento que o indivíduo pode ter com sua família, determinando muitos comportamentos e predisposições.
Os antepassados podem ter negligenciado aspectos importantes, que não tem relação com a moral ligada a temporalidade.
Não se pauta nas leis mutáveis dos homens, mas está conectada às ordens da vida. São conteúdos tidos como “pecado original”. O que faz supor que os temas que transpassam gerações levam uma carga energética significativa, passando de geração em geração na tentativa de compensarem uma desarmonia contra a vida.
O segundo fator é quando os pais têm um padrão de perfeição em seu proceder, tomando atitudes externas de retidão e não exteriorizando defeitos ou condutas reprováveis. Tais assuntos inconscientes lançados na sombra produzem um efeito venenoso que penetra na alma dos filhos (JUNG, 2013b, 88). Quando este cenário ocorre, os filhos se veem constrangidos a vivenciar a parte oposta, que estava inconsciente.
Outro caminho que pode ser tomado nestes casos, são padrões de imitação diante dos pais que se julgam perfeitos.
Segundo Jung, este padrão pode gerar consequências desastrosas aos filhos, que se sentem moralmente arrasados pela percepção de inferioridade ou podem recorrer a imitação dos pais, aplicando o mesmo comportamento irreprovável em suas vidas. Entretanto, esta situação geraria uma necessidade de compensação futura, que interferiria até a terceira geração, como uma ‘prestação de contas’ (JUNG, 2013b, p.89).
Em “A natureza da psique”, Jung (2013, p.65) afirma que “muita coisa é interpretada como hereditariedade em sentido estrito é antes uma espécie de contágio psíquico que consiste em uma adaptação da psique infantil ao inconsciente dos pais” (JUNG, 2013a, p. 65). Este contágio psíquico familiar é vivenciado pelo próprio Jung em alguma medida, quando comenta em “Memórias, Sonhos e Reflexões” algumas impressões de sua família:
Enquanto trabalhava em minha árvore genealógica, compreendi a estranha comunhão de destinos que me ligava aos meus antepassados. Tenho a forte impressão de estar sob a influência de coisas e problemas que foram deixados incompletos e sem resposta por parte de meus pais, de meus avós e de outros antepassados.
Nessa busca sobre a “atuação secreta do demônio que comanda o destino” (JUNG, 2011. p. 299), Jung aprofunda suas teorias sobre os complexos, os arquétipos e o inconsciente coletivo. Se o homem é constituído fisicamente por disposições genéticas herdadas, na esfera psíquica há igualmente uma herança transmitida entre as gerações.
Como vimos, na tenra idade a criança vive imersa na esfera inconsciente.
Os pais, por serem os mais próximos à psique que se forma, são os que exercem maior influência sobre os filhos, havendo uma identidade inconsciente entre eles. Por esta natural imaturidade egóica, os complexos dos pais e das mães podem facilmente afetar a espera psíquica dos filhos. Jung apresenta um exemplo muito ilustrativo de “hábitos psíquicos existentes nos membros da mesma família” (JUNG, 2013b, p. 63).
Recordo-me do caso ilustrativo de três meninas, filhas de mãe devotada ao extremo. Ao entrarem na puberdade, acabaram confessando mutuamente, muito envergonhadas, que por anos a fio tinham tido sonhos horríveis sobre a mãe. Sonhavam que ela era uma bruxa ou um animal perigoso, e não conseguiam entender isso de maneira alguma, pois, a mãe era amorosa e se sacrificava por elas. Anos mais tarde a mãe passou a sofrer de doença mental e nos acessos de loucura se punha a andar de quatro como um lobisomem e a imitar o grunhido dos porcos, o ladrar dos cães e o rosnar dos ursos.
Na prática clínica, Jung, por diversas vezes, se deparou com casos semelhantes a este. Em suas observações, pode perceber que quando uma criança apresenta uma neurose ou distúrbio psíquico é importante observar a esfera inconsciente dos pais, em especial a da mãe, já que a investigação do próprio inconsciente infantil não se mostra muito frutífera. Problemas ocultos e dificuldades dos pais podem interferir na saúde dos filhos, que expressam conteúdos do inconsciente através de sintomas.
Quando Jung analisa o complexo materno em “Símbolos da transformação”, ele percebeu a grande importância dos pais no destino de seus filhos.
Nesse contexto, os pais são os responsáveis por passar à criança as leis que regem o psiquismo individual e também universal, por assim dizer. Algo existe além da educação, do comportamento e do jeito de tratar a criança, a alma infantil e a estrutura egóica primeva. Além de qualidades ou defeitos paternos e maternos, Jung atesta que os pais, por serem comumente os mais próximos da criança, são os transmissores de grandes conteúdos à alma infantil (JUNG, 2011, p. 300).
Neste sentido, uma aluna de Jung, Emma Fürst, realizou uma pesquisa exploratória de associação de palavras entre membros da mesma família. O estudo teve a participação de 100 pessoas de 24 famílias diferentes. Mesmo com dados ainda precários fornecidos por esta pesquisa, algumas observações importantes foram feitas com o respaldo da experiência analítica de Jung. Antes da realização do teste de associação em membros da mesma família a expectativa era de que os resultados seriam dissonantes. Contudo, verificou-se uma grande semelhança nas respostas obtidas, tendo sido visto até mesmo o uso de palavras idênticas entre mães e filhas.
Para Jung (2011, p. 146), a identificação feita pela criança é tão vívida, que em certos casos ao crescer, quando o indivíduo tem mais sensibilidade, as atitudes mentais são em tal nível semelhantes que os filhos geram circunstâncias parecidas a dos pais em suas vidas.
No experimento se observou em diversos casos uma influência significativa entre familiares, o que leva a conclusão da relevância do ambiente na constelação de fatores psíquicos e na similaridade de complexos afetivos entre familiares.
A desarmonia latente entre os pais, uma preocupação secreta, desejos secretos e reprimidos, tudo isso produz na criança um estado emocional, com sinais perfeitamente reconhecíveis. Que devagar mas segura e inconscientemente vai penetrando na psique dela, levando às mesmas atitudes e, portanto, às mesmas reações aos estímulos do meio ambiente (JUNG, 1995, p. 497).
Jung verifica com frequência casos em que padrões dos pais são repetidos pelos filhos.
São vários os casos, por exemplo, em que pessoas escolhem parceiros com distúrbios mentais correspondentes aos distúrbios que seus pais ou suas mães tinham: “não é raro, por exemplo, que um homem sadio, cuja mãe é histérica, se case com uma histérica ou que as filhas de um alcoólatra se casem, por sua vez, com alcoólatras” (JUNG, 1995, p. 496).
Podemos observar que condições dentro do universo familiar influem na psique em formação, assim como a educação recebida. Mas não só estes aspectos diretos e mais facilmente observáveis constrangem o indivíduo. Há esta bagagem inconsciente, transferida entre as gerações.
Quando se trata da figura materna, esta tem uma relevância ainda mais acentuada sobre seu filho.
Jung (p. 80, 2013b) afirma que a mãe tem um efeito psíquico “alimentador” sobre a criança, que precisa de atenção e cuidados para viver. Existe uma espécie de nutrição psíquica, em que a mãe é a maior fornecedora. Mesmo assim, toda esfera psíquica familiar atua na mente infantil. Quando há questões relevantes, segredos e fatos ocultos, estes têm um peso sobre os filhos e possuem uma carga maior de contágio. Conteúdos recalcados, isto é, negados e não conscientizados pelo ego, muitas vezes geram estados neuróticos, que são transmitidos para as gerações posteriores.
Pela análise e revisão dos conteúdos deixados por Jung, percebe-se que o dinamismo familiar tem um peso na formação da psique. Muito embora não seja fatalista ou determinante. A ressignificação de aspectos dolorosos e reconhecimento de valores intrínsecos familiares que movimentam o indivíduo fazem parte da integração dos fatores psíquicos na nossa experiência.
A partir da percepção da importância familiar, que faremos com isso?
A posição de apatia e vitimização das circunstâncias contribui para gerar uma infantilização e estagnação diante da vida.
Se olharmos para o processo de individuação, os conteúdos familiares e as predisposições inconscientes possuem capacidade geradora de transformação. Senão seremos simplesmente os resultados de aspectos dolorosos e menos felizes do passado; não deixando de ser ‘o filho maltratado pelo pai violento’, ‘a filha exposta a mãe manipuladora e egoísta’, ‘a criança abandonada e negligenciada’. Mesmo em circunstâncias sensíveis, profundas e desafiadores, ter a disposição de levar consciência a aspectos familiares constituintes da nossa psique gera a potencialidade de nos compreendermos melhor.
A pergunta poderia ser esta: Quem sou eu, a quem sucedem todas essas coisas?
Olhando para dentro de seu coração ele encontrará certamente a resposta a esta pergunta crucial (JUNG, 1991, p. 126).
Lorena de Sousa Oliveira – Analista em formação
E. Simone Magaldi – Membro Didata
Referências:
EDINGER, Edward F. Ego e Arquétipo, São Paulo: Cultrix, 1989.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, 2013a.
______, A vida simbólica. Vol. 1, 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 2012.
______, Estudos Experimentais, 6ª edição, Petrópolis: Vozes, 1995.
______, Freud e a psicanálise, 16 ª edição, Petrópolis: Vozes, 2011.
______, O desenvolvimento da personalidade, 10ª edição, Petrópolis: Vozes, 2013b.
______, O espírito na arte e na ciência, 13ª edição, Petrópolis Vozes, 2013c.
______, O eu e o inconsciente, 27ª edição, Petrópolis: Vozes, 2015
______, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, 11 ª edição, Petrópolis: Vozes, 2014.
_______, Psicologia e Alquimia, 4ª edição, Petrópolis: Vozes, 1991.
NEUMANN, Erich, A criança: Estrutura e dinâmica da personalidade em desenvolvimento desde o início de sua formação, 10ª edição, São Paulo: Editora Cultrix, 1995.
______, História da origem da consciência, 13ª edição, São Paulo: Editora Cultrix, 2014.
WHITMONT, Edward. A Busca do Símbolo, 14ª edição, São Paulo: Editora Cultrix, 2010.
ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao encontro da sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana, São Paulo: Editora Cultrix, 1994.
Acesse nosso site: IJEP | Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa