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“Love is in the air”: uma leitura junguiana do amor

Cartas de amor são escritas não para dar notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao tocarem a mesma folha de papel. (Rubem Alves)

Existe várias formas de se falar de amor, de se pensar e de se viver o amor. Ele pode ser visto e entendido sob o prisma do amor conjugal, maternal, fraternal. Nesse mês em que se comemora o dia dos namorados, este artigo pretende tratar do amor que, em seu nome, cria mundos, fantasias, histórias, que une e que separa. O amor e a morte são temas extremamente explorados, na música, no drama, na poesia, e nas mais diversas expressões artísticas! Por todos estes meios, o amor é retratado, ora como belo, suave, sucinto e sublime, ora como castigo, prisão, loucura e enganação. Uns vivem por amor, outros morrem por amor e outros ainda, justificam que matam em nome do amor.

Mas qual seria a melhor definição para o amor, se é que amor se define? O amor, por sua existência é paradoxal, e, portanto, é difícil de se definir e explicar em poucas palavras o mais altivo dos sentimentos vividos por nós, humanos. Este sentimento pelo qual se morre e se mata, nasceu onde? Como esta ideia, da necessidade e da busca do ser amado, se estabeleceu nos seres humanos? Existem inúmeras visões e versões, mas vou abordar aqui uma visão narrada por Junito de Souza Brandão no mito do nascimento dos heróis, contada por Platão, no Banquete.

A narrativa mítica nos conta que há muito tempo, a terra era habitada por homens, mulheres e por um tipo de ser que possuía em si mesmo os dois gêneros (feminino e masculino), chamados andróginos. Este eram seres grandes e fortes. Dando-se conta do suposto poder que seu corpo lhe proporcionava e revoltados contra a supremacia dos deuses, entenderam que poderiam dominar a terra. Para tanto, resolveram escalar o Olimpo, desafiando assim os deuses e provocando a sua ira. Zeus, ao se deparar com tamanha hybris, decidiu então castigar estes seres, e assim o fez. Os dividiu em dois e virou seus rostos para lados opostos, fazendo com que olhassem para a marca do corte, o umbigo, o que os forçou a se tornarem mais humildes e menos perigosos.

Além disso, como resultado desta ação, estes seres tornaram-se seres humanos incompletos e carentes. A partir daquele momento, passaram a ter que buscar pelo mundo “a sua outra parte” para se “re-unir” a um lado que foi perdido. Conta ainda o mito, que os andróginos, além de serem formados pelos gêneros masculino e feminino eram também formados por somente homens e somente mulheres, o que na mitologia, explica a união de pessoas do mesmo sexo. Sobre o mito, Brandão (1997) conclui: “O amor tenta recompor a natureza primitiva, fazendo de dois um só, e, desse modo, restaurar a antiga perfeição.” (BRANDÃO, 1997, pag. 35)

Esta história nos convida a uma reflexão sobre a função do amor para o desenvolvimento da consciência da humanidade. Jung (2006) postula em suas obras que onde há amor não há poder e onde o poder impera não existe o amor. Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o contrário, que o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros. (JUNG, 2006 § 78)– psicologia do ics.

Esta foi, de acordo com a narrativa, a primeira lição de Zeus para os possíveis invasores. Ao invadir o Olimpo e dominar a terra, o desejo era de poder. Não havia ali, um olhar de alteridade e de empatia. O fato de o ser humano ter que se tornar mais humilde e menos “perigoso”, como quis ensinar Zeus na narrativa, nos remete à ideia de que na soberba, não conseguimos ter pelo outro o devido apreço e respeito, o que corrobora com a visão de amor e poder trazida por Jung. Ao serem separados pela força divina, por um corte no umbigo estes seres são obrigados agora a baixarem a cabeça, de costas um para o outro e olharem a marca deixada por esta separação.

As separações são, por vezes, responsáveis por dores, os assim chamados “separados” se perdem e seus olhares não mais apontam um para o outro, não pertencem mais à mesma configuração. Quase que compulsoriamente se veem forçados a olhar para sentidos opostos, para novos horizontes. As cicatrizes são marcas que não deixam que os eventos traumáticos sejam esquecidos. Servem de memória emocional para o corpo. O fato de estas marcas estarem no umbigo também é bastante simbólico. Conforme Chevalier, o umbigo (ou ônfalo) está relacionado com o centro.

Em diversas mitologias e religiões, ele possui este significado, podendo ser compreendido desde o centro do universo até o centro do microcosmo humano, como na Ioga – “A concentração espiritual se faz sobe o umbigo, imagem do retorno ao centro” (CHEVALIER, 1982, pag.659). Talvez, não por acaso, na literatura, Luís de Camões, em seu Soneto 11, de 1598, também cita o amor como um sentimento que remete ao fato de estar envolvido pela marca de uma ferida, que dói, sem doer…

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.[1]

Ao olhar para sua cicatriz, para o umbigo, o novo ser que foi criado nesta cisão, lembra de uma falta. Se sua atitude é a de paralisar e se apegar à marca e não buscar o que lhe foi tirado, caímos no que a sabedoria popular nos conta: que “pessoas egoístas só olham para o próprio umbigo – parece que tem o rei na barriga”, isso nos traz também o entendimento de que para sermos inteiros e completos não podemos parar na cisão, nas marcas. Esta vivência arquetípica precisa ser ressignificada e a busca do sentido deste marco no desenvolvimento humano, é que vai trazer contorno e sentido para a vida, assim como para o amor.  Olhar para nossas dores e nossas marcas e reconhecer nossas fraquezas nos aproxima e nos torna semelhantes, afinal a “dor” do amor é um sentimento de todos. É universal.

E quanto a estes seres que foram apartados e que precisam agora se encontrar pelo mundo? Os andróginos têm um valor simbólico importante para o entendimento da criação do homem, bem como da sua consciência. Chevalier (1982) define o andrógino como símbolo de unidade, como a figuração antropomórfica do ovo cósmico.

Um produz dois, diz o Tao, e é assim que o Adão primordial, que não era macho e sim andrógino, se converte em Adão e Eva. […] Pois o andrógino é muitas vezes representado como um ser duplo, possuindo a um só tempo os atributos dos dois sexos, ainda unidos, mas a ponto de separar-se. (CHEVALIER, 1982, pag. 52)

Ainda em Chevalier, a imagem deste ser remete ao tornar-se um, a um estado inicial que deve ser reconquistado. Na narrativa, esse é o castigo, encontrar e conquistar sua outra parte, e o que fica em cada um é a imagem perdida do outro. Voltamos aqui para Jung. Ele nos fala de dois arquétipos no inconsciente coletivo, que representam a imagem interna do feminino no homem e a imagem interna do masculino na mulher. São eles a anima e o animus. Ao se referir a estas representações psíquicas, Jung chama a atenção para o “…reconhecimento psicológico da existência de um complexo psíquico semiconsciente, cuja função é parcialmente autônoma” (JUNG, 2006a § 302)

No processo de crescimento e desenvolvimento, as imagens de anima e animus vão tomando contorno.  Em “AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo”, Jung nos fala que, sendo a anima e o animus arquétipos do inconsciente coletivo, eles se formam a partir das vivências que cada indivíduo tem com a figura parental do sexo oposto e que se projetam nas relações. Eles têm como função, mediar a consciência e o inconsciente, pois desta forma, caso exista uma possibilidade de reflexão, cada sexo pode compreender melhor o que se passa como o outro, caso contrário, o jogo de projeções apenas se fortalece, afastando cada vez mais a representação arquetípica da consciência, e consequentemente, afastando também, homens e mulheres e trazendo para a relação uma série de conflitos.

“…é mais difícil conscientizar-se das próprias projeções do par animus-anima, do que reconhecer seu lado sombrio.” (JUNG, 1988, §35). 

Isso porque o arquétipo é anterior e muito forte. O caminho para lidar com este jogo de projeções é observar, sonhos e manifestações nas imaginações ativas. Estes recursos transmitem á consciência informações sobre a manifestação do arquétipo, podendo facilitar a sua compreensão e integração na personalidade.  Ainda em Aion. Jung comenta “…embora os conteúdos da anima e do animus possam ser integrados, a própria anima e o próprio animus não o podem, porque são arquétipos” (JUNG, 1988, §40)

Voltando então à narrativa mítica, quando a proposta da separação é de que as partes precisam se encontrar, cabe aqui a reflexão de que estas ditas partes não estão fora, mas dentro do próprio indivíduo. Parece que não seremos mais unificados se não nos juntarmos fisicamente a outro, mas não é isto que na verdade a proposta mítica nos revela. Teremos que encontrar em nós mesmos esta parte que nos falta.  O que resta agora, depois de castigados e separados, é resgatar dentro de nossa unidade psíquica o que entendemos que nos falta, aquilo que nos completa.

Talvez aqui caiba o erro clássico, de nos relacionamentos buscar a nossa “alma gêmea”, assim como, dito no início do texto, matar por amor, morrer por amor e toda sorte de loucuras que se faz em nome dele. Trata-se de uma necessidade que não sabemos nominar e materializar, pois é absolutamente interna e profunda. Quantos sofrimentos em nome do amor! Por vezes, não é mesmo dolorida a busca e os desencontros do amor? Se pensarmos no mito, isso faz todo o sentido, uma vez que esta incompletude equivale a um castigo.

É um caminho da vida, do amadurecimento e do autoconhecimento nos compreendermos como seres completos, caso contrário o jogo de projeções dominará e a tendência é que o outro tenha em nossa vida o sentido de nos completar. Que peso, não? Com isso, além de fortalecer a nossa dependência e incapacidade de lidar com nossas próprias questões e vulnerabilidades, também impedimos que nosso par possa trazer para nós a sua presença, como ser completo que também é. Fica impossível nos permitir dar e receber, por meio da relação, a leveza de estar juntos para dividir e compartilhar sonhos, desejos e nossa essência.

O ponto de partida nesta jornada, somos nós mesmos! Nunca o outro. Se isto não fica claro, entramos em uma relação amorosa com uma visão destorcida sobre o que são as nossas necessidades e esperamos do outro algo que provavelmente nunca teremos e daí, quem decepciona quem? Sempre, em todo tipo de relação nós somos o início do processo. Não façamos conosco o mesmo que Zeus fez: nos mutilar e quebrar a nossa unicidade para procurá-la fora de nós mesmos! O amor, portanto, tem uma função fundamental no nosso desenvolvimento enquanto pessoas em constante evolução. Pensar que vamos precisar de outra pessoa para que sejamos completos é delegar para qualquer outro, desconhecido, o profundo e sensível cuidado da nossa alma.

Por fim, este é um assunto que não termina, muito pelo contrário, ele só abre portas para pensarmos em nós e em como estamos conduzindo este tema em nossas vidas. Por isso, fica a provocação – dá para entender o amor? Sei lá. Dá para talvez tentar explicar, mas o bom mesmo do amor é viver… “Felizes (consigo mesmo) para sempre”.

Bibliografia:

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. 7ª ed., Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1997, Vol. III.

CHEVALIER, Jean, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 11ª ed., Rio de Janeiro, RJ. Ed. José Olympio, 1997.

JUNG, C. G.. Aion – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo. 2ª ed.,

Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1988, Vol. IX/2.

________. O Eu e o Inconsciente. 9ª ed., Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 2006a, Vol. VII/2.

________. Psicologia do Inconsciente. 9ª ed., Petrópoli, RJ. Ed. Vozes, 2006b, Vol. VII/1.


[1] https://www.culturagenial.com/poema-amor-e-chama-que-arde-sem-se-ver-de-luis-vaz-de-camoes/ (Grifos meus)

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