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Música e psicologia analítica

Poucas são as menções que Jung faz diretamente em sua obra sobre música, contudo, o pouco legado deixado por ele de maneira objetiva abre um espaço subjetivo e profícuo para tecermos algumas reflexões importantes, e também nos leva à pergunta: e se pudéssemos “brincar” mais com os sentidos, fazendo atividades olfativas, táteis, gustativas e/ou auditivas, sensibilizando outros campos imagéticos? Este artigo intenciona apresentar um breve ensaio teórico de como fazer isso a partir da música.

Resumo: Poucas são as menções que Jung faz diretamente em sua obra sobre música, contudo, o pouco legado deixado por ele de maneira objetiva abre um espaço subjetivo e profícuo para tecermos algumas reflexões importantes, e também nos leva à pergunta: e se pudéssemos “brincar” mais com os sentidos, fazendo atividades olfativas, táteis, gustativas e/ou auditivas, sensibilizando outros campos imagéticos? Este artigo intenciona apresentar um breve ensaio teórico de como fazer isso a partir da música.

Antes de iniciar este artigo, cabe dizer que, mesmo longe de ser um grande músico, o autor que vos escreve é um musicista/baixista amador, tendo tocado uma dezena de vezes na noite de São Paulo com sua banda, fazendo um bom e divertido rock’n’roll! Em razão disto, era uma vontade antiga fazer um estudo sobre psicologia analítica e música, e este estudo e aprofundamento teórico será (ou foi, a depender de quando você estiver lendo este artigo) apresentado em palestra intitulada “Aumenta o som! Um ensaio sobre as experiências afetivas com a música” em conjunto com o Prof. Dr. Waldemar Magaldi no IX Congresso Junguiano do IJEP, que você pode acessar e adquirir clicando aqui.

Poucas são as menções que Jung faz diretamente em sua obra sobre música, contudo, o pouco legado deixado por ele de maneira objetiva abre um espaço subjetivo e profícuo para tecermos algumas reflexões importantes. Até onde sabemos, o único livro de psicologia analítica que trabalha a música é o Quando a psique canta de Joel Kroeker (2022), publicado pela Editora Paulus. Pessoalmente, o autor também teve uma experiência em 2019 em Zurique, quando assistiu no CG Jung Institut uma aula aberta do renomado analista junguiano Mark Winborn, na qual ele fazia aproximações do blues estadunidense com ritmos africanos ancestrais, intercalando sua fala com uma apresentação de riffs do jazz e do blues empunhando sua guitarra (Winborn é bastante citado por Kroeker em sua obra).

As afirmações mais contundentes de Jung sobre música são as que colocamos abaixo (na palestra, Waldemar e eu apresentamos outras perspectivas menos diretas do próprio Jung que inclui a música). Na primeira ele está respondendo oralmente a uma pergunta, provavelmente da Jolande Jacobi, sobre quais seriam as formas de se acessar expressões oriundas do inconsciente e se os sonhos tinham lugar preferencial, ao passo que ele diz:

Ainda que seja o sonho que nos dê o quadro mais exato do inconsciente, também podemos seguir o seu rastro em todas as atividades criativas como a música, a poesia e em todas as formas artísticas(OC 18/1, §1.810).

Na outra afirmação, ao ser convidado por um editor para escrever um artigo sobre música, responde o seguinte:

É certo que a música, bem como o drama, tem a ver com o inconsciente coletivo […]. De certa forma, a música expressa o movimento dos sentimentos (ou valores emocionais) que acompanham os processos inconscientes. O que acontece no inconsciente coletivo é por sua natureza arquetípico, e os arquétipos têm sempre uma qualidade numinosa que se manifesta na acentuação do emocional. A música expressa em sons o que as fantasias e visões exprimem em imagens visuais. Não sou músico e não seria capaz de desenvolver essas ideias em detalhe para o senhor. Só posso chamar a sua atenção para o fato de que a música representa o movimento, o desenvolvimento e a transformação de motivos do inconsciente coletivo” (JUNG, 2018, p. 150).

Isto posto, fica claro que para Jung a música também é uma expressão do inconsciente, contudo, isso leva à seguinte crítica: os recursos expressivos utilizados em análise quase sempre – para não dizer sempre – são voltados exclusivamente ao sentido da visão. Técnicas de argila, desenhos, sandplay podem até sensibilizar o sentido tátil de quem o faz, mas ao analista restam, predominantemente, as impressões visuais daquilo que foi produzido. Contudo, e se pudéssemos “brincar” mais com os sentidos, fazendo atividades olfativas, táteis, gustativas e/ou auditivas?

Lembramos-lhes que nada disso é rigorosamente uma novidade, haja visto as técnicas de calatonia, que são essencialmente táteis, a aromaterapia, que sensibiliza/dessensibiliza emoções a partir de estímulos olfativos, o uso da música na imaginação dirigida, variação da técnica de imaginação ativa de Jung, e a musicoterapia, que há muito é reconhecida e com ganhos significativos em várias áreas da saúde, especialmente no tratamento de pessoas neuroatípicas e, como relata Sacks (2022), na redução dos sintomas do mal de Parkinson. Entretanto, são técnicas que não levam rigorosamente em conta a produção do analisando, tal e qual um desenho produzido por ele.

Em outras palavras, em vez de um desenho, por que não compor uma música?

É exatamente esta a proposta de Kroeker (2022), com a técnica desenvolvida por ele chamada de A música na psicologia arquetípica – AMP, na qual os analisandos fazem música no setting terapêutico, tal e qual qualquer outra expressão artística que analistas junguianos utilizam, mas que resultam em estímulos visuais e não auditivos.

Porém, o problema da técnica de Kroeker é básico: é preciso que o analisando, e até mesmo o analista, tenham conhecimento musical para conseguir compor algo, pois a única “música” que está à disposição de todos nós de maneira mais acessível são os ritmos/percussões, o que é totalmente diferente de uma composição que leve em conta também aspectos harmônicos e melódicos da canção. Desta forma, a fim de ampliar a ideia de Kroeker e fugir deste problema básico, e talvez “imitando” a aromaterapia, na qual os aromas são capazes de “provocar” determinadas emoções, sugerimos algo semelhante, que é o uso da música como um recurso de mobilização de imagens psíquicas nos analisandos. Em vez de produzir música, o analisando escuta música, para daí imaginar…

Sabemos que alguns analisandos apresentam resistência de trazer conteúdos oníricos ou de tecer reflexões simbólicas sobre acontecimentos triviais da vida, muitas vezes ficando presos na concretude do fato – apesar de uma certa percepção indireta por parte do analista do que isto quer dizer! Logo, perguntamos: seria a apresentação de músicas no setting terapêutico um meio de mobilização de imagens, retirando a necessidade estabelecida na técnica de Kroeker, que exige conhecimento de instrumentos musicais por parte do analista e dos analisandos?

Recordemos que a música não é inédita no setting terapêutico junguiano.

Seja em trabalhos individuais, imaginação dirigida, como já mencionamos, e grupos vivenciais, a exemplo da música como um recurso de relaxamento e/ou rebaixamento de consciência, ou até mesmo o uso da música como pano de fundo para expressões corporais e/ou dança. Mas o caminho que estamos sugerindo, difere sutilmente destes. Assim como Jung, no início do século, fez uma longa pesquisa com a técnica de associações de palavras (OC 2), na qual por meio do estímulo da palavra, seja pelo seu significado ou pela sua sonoridade, despertava núcleos afetivos-emocionais, em seguida nomeados complexos, sugerimos uma espécie de técnica de associação musical. A priori, não temos registro empírico de tal experiência no estrito sentido junguiano, entretanto, não nos falta razões para acreditar de que poderia ser uma técnica legítima, a partir dos argumentos que apresentamos a seguir. Segundo Jung:

“Toda emoção, em qualquer fase da vida, tende a manifestações rítmicas, a repetições constantes. O mesmo se verifica na experiência de associação com palavras de reação destacadas dentro de um complexo, sob a forma de repetição, assonância e aliteração” (OC 5, §219).

Essa frase é suficientemente sólida ajudar na construção de nossa proposta. Adicionalmente, como destaca Sacks (2022, p.11):

“Nós, humanos, somos uma espécie musical além de linguística. Isso assume muitas formas. Todos nós (com pouquíssimas exceções) somos capazes de perceber música, tons, timbre, intervalos entre notas, contornos melódicos, harmonia e, talvez no nível mais fundamental, ritmo”.

Então, independentemente do conhecimento técnico da música, pressupomos que qualquer pessoa poderia tecer associações e construir imagens a partir da música sugerida pelo analista. Corrobora com essa visão o psicanalista Theodor Reik, ao afirmar que “Melodias que nos passam pela cabeça […] podem dar ao analista uma pista para a vida secreta de emoções que cada um de nós vivencia […] (Reik apud Sacks, 2022, p. 49).

Além do mais, mesmo que uma pessoa afirme “não gostar” de música – será que existe alguém? – as músicas dão contornos emocionais para algumas imagens cênicas, a exemplo de séries, novelas, peças publicitárias e filmes – o que seria de Titanic sem My heart will go on?

Como afirma Levitin (2021, p. 15):

O poder que a música tem de evocar emoções se manifesta em executivos de publicidade, cineastas, comandantes militares e mães. Os publicitários usam a música para fazer com que um refrigerante, uma cerveja, um tênis ou um carro pareçam mais interessantes que os produtos concorrentes. Os cineastas a utilizam para dizer como devemos nos sentir diante de cenas que de outra maneira talvez ficassem ambíguas, ou então para intensificar nossos sentimentos num momento particularmente dramático”.

Isso significa que a música por si só, independentemente do que ela significa no campo sentimental ou imagético, já despertaria algo em qualquer pessoa, mesmo que fosse repulsa – Ahhh, le lek, lek, lek…!

Mas esta técnica que estamos propondo encontra uma barreira inicial, que é justamente a seleção das músicas. Em outros termos, como saber qual música apresentar aos nossos analisandos no processo de análise a fim de sensibilizar certos núcleos afetivos? Não existe qualquer garantia de que a mesma música despertará sentimentos, emoções ou imagens semelhantes em duas pessoas ou mais, e isso limita a premissa acima de que a música seria um condutor da imagem que não vem à tona num sonho ou associação livre por parte do analisando.

Nesse sentido, consideramos que existe a necessidade de uma pesquisa empírica robusta, a exemplo da feita por Jung no teste de associações de palavras, selecionando uma lista de músicas, apresentando-as a centenas de pessoas, para que, por amostragem e estatística, consigamos aproximativamente estabelecer quais imagens predominantes uma música pode evocar. Sabemos que este método se aproxima de uma ciência mais concreta, mas não nos ocorre nada de diferente no momento.

De qualquer forma, se partíssemos de um repertório puramente intuitivo por parte do analista, apresentando músicas livremente, segundo um critério pessoal, objetivo ou não, a chance dessa técnica dar errado, imaginamos, seria pequena. A música é uma combinação de ritmo, tempo, harmonia (que é um conjunto de sons não definíveis, mas que “sustentam” a música, com diversos instrumentos misturados fazendo um som, evidentemente, harmônico) e a melodia (que é aquela linha que conseguimos cantarolar, seja a letra de qualquer música ou um tema típico, a exemplo da música que marca O poderoso chefão ou a música que introduz o filme Forest Gump).

Não conseguimos mensurar o que pode emergir, porém, tal como afirma Sacks, ao defender o uso da música como recurso terapêutico em pacientes neurológicos, “A música pode nos acalmar, animar, consolar, emocionar. Pode nos ajudar a obter organização ou sincronia quando estamos trabalhando ou nos divertindo. Mas para pacientes com várias doenças neurológicas ela pode ser ainda mais poderosa e ter imenso potencial terapêutico. Essas pessoas podem responder intensamente e de maneira específica à música (e, às vezes, a mais nada) (Sacks, 2022, p. 13).

Fica ainda a questão de como abordar as associações, sentimentos e/ou imagens que os analisandos trarão a partir de determinado estímulo musical. A esta questão, Kroeker tem uma resposta prévia:

“Música e sonhos têm muito em comum, ambos abrem caminho para além das instâncias despertas, afloradas da consciência do ego. Cada um à sua maneira pode nos levar a reinos regeneradores e compensatórios do afeto, psique e soma aos quais não podemos chegar através apenas de puro esforço” (Kroeker, 2022, p. 23)

E continua ainda o autor, propondo que a “música é um sonho desperto que carrega conteúdos simbólicos. Assim como o ego onírico, o ego musical, bem sintonizado, pode ouvir sentir e ter sensações que o complexo de ego unilateralizado não pode” (Kroeker, 2022, p. 129).

Trocando em miúdos, a abordagem das associações e imagens que a pessoa faz a partir das músicas que lhe foram apresentadas é a mesma que o analista teria diante de um sonho. Sobre o trabalho com música na análise, Kroeker diz que:

“A música, na sessão analítica, pode ser o lugar, tanto interno quanto externo, onde esse desenvolvimento acontece. Quando escutamos, tocamos, compomos ou improvisamos música podemos entrar em contato com conteúdos que permaneciam fora da visão do ego, eles existiam apenas como uma combinação de sentimentos e imagens aparentemente indefinidas e contrastantes. Quando exploramos musicalmente esses estados internos e vivenciamos seu persistente retorno, podemos começar a estabelecer uma nova atitude simbólica que percebe que esses aspectos continuam a existir, de algum modo, mesmo sem estarem constantemente acessíveis à perspectiva do ego” (Kroeker, 2022, p. 90-91).

Por fim, Jung aproxima a música da experiência arquetípica da alquimia, mencionando que:

“A alquimia sempre foi uma grande busca humana do inatingível. Assim pelo menos seria descrita pelo pressuposto racionalista. A experiência religiosa da graça é porém um fenômeno irracional, tão indiscutível como o ‘belo’ e o ‘bom’. Assim sendo, nenhuma busca séria é sem esperança. É um dado instintivo, que não é passível de redução a uma etiologia pessoal, assim como a inteligência, musicalidade ou qualquer disposição inata (OC 13, §143).

Tais argumentos nos parecem suficientemente fortes para aplicar experimentalmente esta técnica da escuta da música seguida de associações de sentimentos, emoções e imagens. Seria mais um recurso analítico que contribui para a ampliação das imagens, que é nosso desejo último em termos de processo analítico.

Como um pontapé inicial nesta ideia, no IX Congresso do IJEP apresentamos breves experiências musicais que fizemos com analisandos em consultório. Apesar de estar longe de representar uma pesquisa significativa, seguramente ela serve como uma ação ensaística de novas pesquisas que poderão ser desenvolvidas por analistas junguianos que, assim como o autor, aprecia e reverencia a música.

Rafael Rodrigues de Souza – Analista Didata em Formação.

Dr. Waldemar Magaldi Filho – Analista Didata responsável.

Referências:

JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação (OC 5). 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Estudos Alquímicos (OC 13). 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Vida simbólica: escritos diversos (OC 18/1). 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

JUNG, Carl Gustav. Cartas de C. G. Jung, volume 2, 1946-1955. Petrópolis: Vozes, 2018.

KROEKER, Joel. Quando a psique canta: a música na psicoterapia junguiana. São Paulo: Paulus, 2022.

LEVITIN, Daniel J. A música no seu cérebro: a ciência de uma obsessão humana. Rio de Janeiro: Objetiva, 2021.

SACKS, Oliver. Alucinações musicais: relatos sobre a música e o cérebro. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

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