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O masculino: integração criativa dos arquétipos

Muitos aspectos definem a natureza masculina. As heranças biológicas, psicológicas, culturais, espirituais e sociais influenciam nos diferentes papéis que o homem deve assumir, independentemente da identidade de gênero ou da orientação sexual. De um modo geral, ainda está enraizada uma construção sociocultural de que o princípio masculino é de ação, que envolve o desafio de ser guerreiro, conquistador, caçador e provedor. Nesse contexto, a expressão “homem não chora” simboliza a necessidade de dar conta do que lhe é atribuído com a obrigação de ser forte e que pode configurar a dificuldade de expressar sentimentos e emoções. De forma idêntica, percebemos um dinamismo no aspecto psíquico, ao sermos tomados no nosso dia a dia pelos arquétipos – conjunto de imagens primordiais que são armazenadas pelo inconsciente coletivo, repetidas por muitas gerações – que podem comparecer em forma de mitos, representados por deuses e deusas e simbolizam os diferentes aspectos da nossa personalidade. Na caminhada ao encontro com a sua essência, o masculino pode concretizar um diálogo com as expressões mitológicas e promover a integração criativa dos arquétipos e viver com mais harmonia.

            De acordo com Richard Parker, antropólogo, sociólogo e sexólogo, até recentemente o patriarcado trouxe a diferenciação entre o masculino e feminino, sendo que as atividades do homem eram relacionadas com o mundo social da economia, da política, das interações sociais e da família, definido como ágil e corajoso. Enquanto isso, a mulher era limitada ao mundo doméstico da própria família e, com a saída do espaço privado para o público, redefiniram-se os papéis sociais, o que resultou em crise na masculinidade do homem contemporâneo, perdendo a noção de sua própria identidade (PARKER,1991, p.59). É possível percebermos que a transição entre as velhas e as novas possibilidades resultou em crises de identidade, vindo ao encontro da metanoia, que na psicologia analítica junguiana é compreendida como crise de transição, que exige transgressão para que as mudanças ocorram, podendo se manifestar em qualquer fase ou idade cronológica.

Vindo ao encontro, o adolescente foi perdendo as referências do papel anterior do homem e, ao ingressar no mundo adulto dos relacionamentos, percebe que não é o único provedor e que as tarefas antes realizadas pela mulher, agora são compartilhadas em diferentes áreas. Outro fator importante é que as experiências da andropausa, ainda não tão difundidas como as experiências da menopausa nas mulheres, podem implicar em transformações sobre a visão de mundo, mudança de crenças e de paradigmas. É marcada pela fase em que o homem percebe início de declínios, principalmente pelos aspectos físicos visíveis e, que requer ajuda de especialistas. Na velhice, após a aposentadoria, muitos perdem referências importantes e adoecem.  Nessa fase é cada vez mais comum ser provedor de filhos e netos. Ao mesmo tempo, a transição entre o velho e o novo exige uma meta espiritual incondicional para a saúde da alma, como disse Jung:

Por mais importante que seja para o homem ganhar o seu sustento e, na medida do possível, fundar também sua família, contudo nada terá conseguido com isso se não realizar o sentido da sua vida (2013, O/C 17, p. 95).  

            Nesse sentido, os ritos de passagem têm papel fundamental e nos permitem entrar em contato com a profundidade, como disse Hollis: “O objetivo do ato simbólico que o rito encena é conduzir ou retornar a experiência de profundidade” (1997, p. 23). Historicamente, eles eram aprendidos com os pais, com pessoas mais velhas, na realização e participação em trabalhos, jogos e outros mais. Sem ritos, o masculino precisa fazer sua jornada de herói sozinho, ao mesmo tempo integrar-se com o feminino e tornar-se homem. Apesar de alguns ritos terem se perdido com o passar dos anos, hoje deparamo-nos com inovações em celebrações e conscientizações. A história nos mostra que no Brasil o Dia do Homem é comemorado em 15 de julho, desde 1992, data escolhida pela Ordem Nacional dos Escritores, porém o Dia Internacional do Homem é comemorado em 19 de novembro de cada ano, desde 1999. Os objetivos celebrados nesta data envolvem cinco pilares, que abrangem os valores humanitários básicos, que compreendem as suas contribuições para a sociedade, comunidade, vizinhança, família, casamento e filhos, auxiliam na ressignificação de velhos padrões masculinos, contribuindo para a sua evolução. De modo semelhante, surgiu a campanha Novembro Azul para conscientização a respeito das doenças masculinas. É comum as atenções se centrarem principalmente no câncer de próstata, porém enfatizo os cuidados com a saúde psíquica que requer atenção, com as crises de identidade cada vez mais presentes em diferentes fases da vida. Vale lembrar que, de acordo com estudos relacionados à psicologia das cores, o uso do azul para representar o masculino é uma construção social, que se intensificou a partir dos anos 1980, sendo que não existem raízes ancestrais, genéticas ou psicológicas que justifiquem tais preferências. 

            Assim como os ritos, os mitos assumem um papel muito importante na ressignificação do masculino, em forma de histórias que encantam e são comuns na humanidade, com padrões de comportamento, emoções e reações, com as tragédias e a redenção dos deuses, que são a representação do inconsciente coletivo e simbolizam os diferentes aspectos da nossa personalidade em forma de arquétipos. Os deuses e as deusas nos “visitam” pela constelação de complexos, estando mais presentes do que podemos imaginar. Em sua obra completa, Jung teoriza sobre a importância dos arquétipos. Diferentes autores junguianos também discorrem sobre o tema e, nessa ampliação, cito algumas contribuições de Walter Boechat (2008, 52-71), médico e analista junguiano, sobre seis arquétipos que podem representar o masculino. O mais conhecido é o Arquétipo do Puer Aeternus, um deus eternamente criança, que preza pela independência e a liberdade, opondo-se a limites e restrições, que se recusa a crescer e enfrentar os desafios da vida, mostrando-se imaturo e com características narcísicas. Na psicologia, é conhecido como um adulto socialmente imaturo, com Síndrome de Peter Pan. A sombra do puer é o senexque emlatim representa “homem velho”, que nem sempre é sábio. O Arquétipo do Velho Sábio é representado pela sabedoria e bondade, mas também pode ser simbolizado por Khronos, o deus do tempo, um ancião empunhando uma foice para mostrar que o tempo tudo destrói, o pai distante e hostil, representando a dificuldade em expressar emoções e sentimentos.

            Igualmente, para a compreensão do masculino é importante considerarmos o Arquétipo do Herói, que é associado aos ritos de passagem. Como exemplo podemos citar Aquiles, o herói que tinha um ponto fraco. Ele perdeu a vida em Tróia, mas foi o grande herói do conflito, que preferiu ter uma vida gloriosa e curta a uma existência longa e apagada. De forma idêntica, Ares, o deus da guerra, o amante com presença impetuosa, agressiva e apaixonada, sem preocupação com as consequências dos seus atos. O Arquétipo do Pai é associado à cultura e à tradição. Urano, o deus do céu, é um exemplo típico e sua violência contra os filhos marcou o início do mal, representando a paternidade violenta. Zeus, o pai autoritário e o líder nato, o governante de deuses e mortais, representa o desafio de superar e ser o único no comando.

Arquétipo do Don Juan, por sua vez, representa o conquistador compulsivo e o transgressor. Seu representante pode ser Dionísio, o deus de todos os prazeres, do vinho, do êxtase e da alegria. Mestre em viver o presente, representa o desafio em estabelecer vínculos emocionais mais profundos, moderar impulsos e vencer tendências ao exagero. Já o Arquétipo do Trickster, considerado o sem limite, pode ser compreendido com o Hermes, deus da comunicação, que tinha como características positivas a agilidade mental e a habilidade com palavras, transitando com fluidez, movimento e leveza em todos os reinos, ao mesmo tempo era ladrão e trapaceiro que descobria e experimentava novas possibilidades, enganando os envolvidos e depois desaparecia.  Esse arquétipo evidencia aspectos sombrios reprimidos, decorrentes de diferentes vivências no contexto da nossa sociedade.

            Para facilitar a compreensão, trago exemplos significativos de alguns deuses, especialmente os gregos, que também nos ajudam a compreender aspectos da personalidade masculina (BRANDÃO, 1991). Apolo, o deus radiante, que possui mais de 200 atributos, é a representação do padrão racional, centrado no mundo do trabalho e dos negócios e tem como desafio superar o complexo de superioridade. Odisseu, o herói viajante, é o símbolo da capacidade dos homens superarem seus limites. Poseidon, deus dos mares, coloca a emoção e os instintos acima da razão e tem como desafios controlar a impulsividade e a fúria, livrar-se da dependência e do apego nos relacionamentos. Hades, o deus fechado, introvertido e enigmático tem como desafio ser menos radical, trabalhar em equipe, superar a tendência à solidão. Hefesto, o deus imperfeito, nasceu feio, manco e tímido. Representa o instinto criativo, o trabalho profundo, a transformação da matéria bruta em obra de arte, mas precisa vencer a mania de trabalhar demais e de superar a perfeição em detrimento de si.  

            Da mesma forma, no inconsciente coletivo também estão armazenados vários arquétipos com a representação de deusas, que favorecem o diálogo entre a razão e a sensibilidade. Às vezes, o masculino pode ser tomado por Afrodite, a deusa do amor, ou por Ártemis, simbolizando a mulher independente, ou mesmo por Atena, a deusa da sabedoria. Em outros momentos, podemos ter vivências que nos remetem a Deméter, a deusa da nutrição e da maternidade e também a Héstia, com a sua harmonia espiritual. Essas memórias, bem como de outros deuses e deusas, podem representar as possibilidades de diferenciação do papel do masculino, auxiliá-lo no processo de relacionar-se cada vez mais conscientemente com sua feminilidade inconsciente – sua anima – sair de condições patológicas e curar a sua alma, resgatando assim a coragem de amar com sensibilidade e criatividade. Para ampliar essa questão, Carl Gustav Jung deixou-nos como legado, que ele denominou de anima e animus – anima é a contraparte feminina inconsciente na psique do homem e animus é a contraparte inconsciente masculina na psique da mulher – modos simbólicos de percepção e comportamento, que contribuem com a ideia de que o homem também precisa lidar com a sua contraparte feminina, ou seja, sua anima (O/C 7/2, 296-340) Isso nos faz lembrar de Gilberto Gil, que em sua canção Super Homem, exalta o sentido simbólico da integração da anima:

Um dia, vivi a ilusão de que ser homem bastaria. Que o mundo masculino tudo me daria do que eu quisesse ter.

Que nada, minha porção mulher, que até então se resguardara, é a porção melhor que trago em mim agora, é que me faz viver.

Quem dera, pudesse todo homem compreender… (GIL, G. 1979).

Vindo ao encontro do processo de integração de arquétipos, ressalto a importância dos 12 trabalhos de Héracles. É interessante lembrarmos que em diferentes épocas e contextos da humanidade o número 12 envolveu e ainda envolve situações de referência: 12 apóstolos, 12 meses do ano, 12 signos do zodíaco, dia é dividido em dois blocos de 12, entre outros. A revista “Bons fluidos”, edição especial 65 – Os Mitos e Você (2004, p.39-40), descreveu o mito do herói dos 12 trabalhos – Héracles – que pode ser o inspirador para a ressignificação de conflitos do masculino (FIGURA 10). A história conta que ele foi induzido a matar a sua esposa e os seus três filhos, num acesso de loucura provocado por Hera, que o designou servir ao rei Eristeu, seu primo e principal inimigo, que o incumbiu de doze tarefas arriscadas que, de forma resumida, representavam: domar a violência e a agressividade; superar vícios; substituir impulsos por sabedoria e paciência; vencer o egoísmo; limpar emoções negativas, reconhecer e usar a intuição; controlar os instintos e a sexualidade; abrir o coração; descarregar a fúria quando é contrariado; construir laços afetivos duradouros; vencer a cobiça; usar talentos e recursos internos e valores da alma que  são mais importantes que os meros e fugazes desejos do corpo. Héracle(Hércules) realizou tarefas árduas, que exigiram a integração de polaridades. Percurso idêntico apresentado por Joseph Campbell (1989), com a Jornada do Herói, evidenciando 12 passos e o Tarot Mitológico (SHARMAN-BURKE, 1968), com 21 cartas, que nos convidam para refletirmos sobre a saga do herói, que envolve um caminho de autotransformação para renovação da vida. Em outras palavras, essas expressões criativas podem auxiliar o percurso entre o Ego e o Self para chegarmos na transcendência, que envolve o processo de individuação.

            Nesta caminhada, é comum nos depararmos com padrões unilaterais, paradoxos do excesso e da falta, que estão presentes na maioria das neuroses e expressam descontentamento. Fernando Pessoa deixou-nos versos sobre o conflito entre o pensar e o sentir:

Tenho tanto sentimento que é frequente persuadir-me de que sou sentimental, mas reconheço, ao medir-me, que tudo isso é pensamento, que não sentia final.

Temos, todos que vivemos, uma vida que é vivida e outra vida que é pensada, e a única vida que temos é essa que é dividida entre a verdadeira e a errada.

Qual, porém, é a verdadeira e qual errada, ninguém nos saberá explicar; e vivemos de maneira que a vida que a gente tem é a que tem que pensar (2006, p. 172-73).

É importante percebermos que cada arquétipo pode contemplar uma visão de mundo e a tendência é pensarmos, sentirmos e agirmos de acordo com esses padrões. Sabemos que não existe um arquétipo pior ou melhor que outro, porém se os aspectos que comparecem em nós são geradores de conflitos, haverá necessidade de um novo olhar, que envolve um processo de ressignificação. Todo o excesso encobre uma falta e as crises comparecem como oportunidade de reorganização e realização de novas escolhas. Talvez o Velho Sábio precisa recuperar a sabedoria e a bondade e deixar ir o pai distante e hostil. Quem sabe, o guerreiro que luta constantemente, precisa dar espaço para a passividade. Ou ainda, o instinto criativo de Hefesto precisa ser desenvolvido, assim como a harmonia espiritual de Héstia.

Enfim, um olhar para as tarefas de Héracles (Hércules) pode permitir a ampliação da consciência e além disso, resultar num chamado maior, como se expressou simbolicamente Zé Ramalho (2019) pela música Os Doze Trabalhos de Hércules:

Os cavalos do Rei Áugias, cavalariças para limpar.
Muitos perigos esperam Hércules, tantos segredos por desvendar.

Os doze trabalhos de Hércules, a todos ele irá cumprir.
Herói dos heróis da Grécia, com muitos deuses irá seguir.

Diferenciar e integrar velhas e novas possibilidades, pode resultar na recuperação do valor da jornada da alma, envolvendo a capacidade criativa e criadora de melhorar o mundo. Assim, na caminhada ao encontro com a sua essência, o masculino pode concretizar um diálogo com as expressões mitológicas e ressignificar seus padrões de adoecimento em padrões saudáveis, com a integração criativa dos arquétipos.

                          Claci Maria Strieder, analista em formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata

  1. Leituras de Apoio:

BOECHAT, W. A Mitopoese da psique, mito e individuação. Petrópolis: Vozes, 2008.

BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991. vol. 1, 2 e 3   CAMPBELL. J. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1989. 

HOLLIS, J. Sob a Sombra de Saturno, a ferida e a cura do homem. São Paulo: Paulus, 1997.

JUNG, C. G. O desenvolvimento humano. 14ª edição. Petrópolis. Vozes, 2013.

___________O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2013.

___________Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2013.

PARKER, R. G. Corpos, prazeres e paixões: a cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo: Best-Seller/Abril Cultural, 1991.   

REVISTA BONS FLUÍDOS. Especial Os Mitos e Você, nº 65. São Paulo: Editora Abril, 2004.

SHARMAN-BURKE, J. O tarô mitológico. São Saulo: Siciliano, 1968.

  1. Imagem:

WIKIMEDIA COMMONS. ‘Heracles’ (Philippe-Laurent Roland, 1806), 2008.

  1. Música:

GIL, Gilberto. Super homem – a canção, disco Realce, 1979.

RAMALHO, Zé & RECIFE, Robertinho de. Os doze trabalhos de Hércules. Avôhai Music, 2019.

  1. Poesia:

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 3ª edição, 2006.

Claci Maria Strieder – 10/11/2021

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