Resumo: Nesse artigo trago uma reflexão através da ótica da psicologia analítica sobre a dinâmica de consumo de conteúdos atual e como isso resulta em uma obesidade das relações e informações. Essa obesidade traz aspectos nocivos para nosso autodesenvolvimento: acentuam complexos unilaterais; dificulta a capacidade reflexiva e amplificadora e muitos conteúdos são desprovidos de sentido, aumentando nossa fome de alma.
Palavras-Chave: Complexo; autodesenvolvimento, autoconhecimento, informação e conscientização
Eu tenho andado muito reflexiva sobre o papel das redes sociais, da internet, na minha vida de maneira abrangente, tanto profissionalmente como pessoalmente falando: no que essa ferramenta pode me ajudar? Onde estão os riscos dela? O que de fato traz nutrição, alimentando ciclos virtuosos? Por esse motivo venho nesse breve artigo falar um pouco sobre o fenômeno da obesidade da informação.
Facilitar o acesso, aumentar as conexões. Que tudo seja simples e fluído, esse é um dos espíritos da época.
O acesso e a produção de conteúdo oferecidos digitalmente tiveram uma popularização exponencial nos últimos anos. E por isso a internet, através das mídias sociais, é um grande propulsor de visibilidade e de crescimento, principalmente se falarmos de crescimento rápido contendo muito sucesso monetário. Entretanto, toda simplicidade também contém suas regras e custos, então para ter um grande alcance de pessoas, temos que estar muito dispostos a seguir o processo que essa dinâmica pede.
Que dinâmica é essa? Qual é esse processo?
As mídias sociais (as plataformas hospedeiras desses conteúdos digitais) possuem uma tecnologia inteligente, os algoritmos, que analisam os dados dos conteúdos ofertados versus seus potenciais expectadores, alimentando de inteligência mercantil essas plataformas. Ou seja, os algoritmos, distribuem esses materiais de forma tendenciosa: favorecem os indivíduos que produzem conteúdos que engajem a audiência. O objetivo dos algoritmos é manter o expectador o maior número de tempo possível dentro de uma plataforma. E aqui, quando me refiro a tendencioso gostaria de enaltecer o aspecto literal da palavra que atende a uma tendência sem julgamento se é bom ou ruim.
Aqui faço meu primeiro recorte: o quanto os algoritmos se assemelham ao mecanismo dos nossos complexos inconscientes.
Segundo a psicologia junguiana, os complexos são conjuntos associativos que podem ser sentidos de forma acentuada e que se organizam em torno de um núcleo arquetípico, concentrando poderosa energia psíquica, e com certa autonomia se transformando em uma pequena personalidade. Tendo energia psíquica suficiente pode expressar sua autonomia frente à consciência e atuar na vida do indivíduo de forma a reviver os padrões, as tendências desse complexo
Quando se quer dizer ou fazer alguma coisa e, desgraçadamente, um complexo intervém na intenção inicial, acaba-se dizendo ou fazendo a coisa totalmente oposta ao que se queria de início. Há subitamente uma interrupção, e a melhor das intenções acaba sendo perturbada, como se tivéssemos sofrido a interferência de um ser humano ou de uma circunstância exterior. Sob essas condições somos mesmo forçados a falar da tendência dos complexos a agirem como se fossem movidos por uma parcela de vontade própria.
(JUNG, 2019a, p. 149)
O algoritmo trabalha para sempre nos trazer conteúdos que estejam alinhados ao nosso perfil de consumo e de pesquisa, trabalhando por analogia e semelhança, ampliando e “engordando” cada vez mais a força de associação e o impacto para gerar em nós interesse e potencial mercado consumidor.
E assim são também os complexos, trabalhando no mesmo sistema de analogia e semelhança, ele direciona a energia psíquica do indivíduo a vivenciar situações externas que validem a tendência deste, como por exemplo: Um forte complexo de abandono tenderá a fazer uma pessoa a ter maior habilidade em identificar traços de abandono em diversas circunstâncias, incluindo uma maior aderência à pessoas que a façam reviver situações de abandono.
O segundo recorte que proponho, é sobre a qualidade dos conteúdos ofertados.
Como temos um grande número de conteúdo disponível, os produtores precisam cada vez mais chamar a atenção dos internautas em pouco tempo, se não eles “perdem” esse expectador para outro conteúdo que o atraia mais, sendo assim a informação deve ser passada de forma rápida, simples, assertiva (afirmativa, cheia de certezas) fidelizando os usuários. Não é de hoje, que nós seres humanos, trazemos os traços de infantilismo e de confiança no mundo externo apenas, como esclarece Jung:
E é assim que vemos qualquer problema que nos obriga a uma consciência maior e nos afasta mais ainda do paraíso de nossa infantilidade inconsciente. (…) Queremos que nossa vida seja simples, segura e tranquila, e por isto os problemas são tabu. Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem entretanto nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento.
(JUNG, 2019b, p.751).
Ficando claro que a simplicidade única e exclusivamente nos garante em um estado psíquico primitivo, atrofiado e infantil.
E o terceiro e último recorte que proponho é em termos da qualidade desses conteúdos.
Assim como no campo da alimentação corporal, percebo um fenômeno similar na internet que se chama obesidade da quantidade de relações, de interações e de informações que chegam até nós: Obesidade da informação, um problema do nosso século.
Analisando de forma simbólica: A maioria dos conteúdos produzidos na internet, são para mim, similares aos alimentos ultra processados que encontramos no supermercado. Tal qual os conteúdos digitais, os alimentos ultra processados são desenvolvidos para serem muito “gostosinhos”, (aquele paladar que agrada muito no ato do consumo). São fáceis de achar (supermercados), simples de consumir (já vem pronto em embalagens práticas) e possuem alguma substância que preenche o estômago (certeza de barriga cheia). Entretanto, eles também são extremamente vazios de nutrientes, de fibras, de qualidade nutricional.
E assim eu vejo muitos desses conteúdos digitais: Estão cada vez mais vorazes, mais simplistas, mais reducionistas e acabam ocupando o buraco que a gente tem dessa fome de trocar que é um dos aspectos primordiais da nossa espécie, mas que não nutre. E esse vazio só vai aumentando, pois a fome continua, e ele vai aumentando tanto ao ponto de corroer a nossa própria alma.
“Como quer que seja, de qualquer modo é uma sorte que o ser humano traga dentro de si seu regulamento social, como uma necessidade inata.” (JUNG, 2019c, p.655)
A troca, o olho no olho (mesmo que seja virtualmente) – essa coisa de estar em um jogo de frescobol: onde eu jogo a bola, mas eu também recebo a bola – é muito importante para o nosso desenvolvimento psíquico.
E a internet é uma via onde a gente espelha aquilo que faz sentido pra gente – e essa é outra faceta que necessitamos de ampliação reflexiva.
Os conteúdos midiáticos tendem a ser um espelhamento do que faz sentido para quem o está criando. Contudo, devido à necessidade de síntese, esses conteúdos acabam trazendo tudo de uma maneira muito pequena e unilateral. Isso promove uma rápida absorção para a audiência de conteúdos vazios de nutrientes, porém cheios de receitas perigosas de auto desnutrição. Então não adianta a gente consumir esses conteúdos se a gente não souber e não tiver condições de fazer uma digestão interna. Ver o que realmente faz sentido pra gente e ir atrás de aprofundar para encontrar material rico e saudável para a nossa alma.
Pois de salgadinho e biscoito recheado o mercado, seja ele físico e literal ou ele simbólico, do que estamos consumindo de forma relacional, está cheio. Agora de arroz com feijão e uma salada cheia de verduras e legumes, apesar de ser disso que precisamos, é muito mais difícil encontrar.
Renata Pastorello – Analista em formação pelo IJEP
Ajax Salvador – Analista Didata IJEP
REFERÊNCIAS:
JUNG, Carl Gustav. A Vida simbólica. Rio de Janeiro: Vozes, 2019a
________. A Natureza da psique. Rio de Janeiro: Vozes, 2019b
________. Freud e a Psicanálise. Rio de Janeiro: Vozes, 2019c