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Relacionamentos Humanos sob a Ótica Junguiana

Os versos acima integram um poema de Luiz Vaz de Camões, poeta português que viveu entre 1524 e 1580. Referem-se ao amor que nos mobiliza para as relações afetivas. Evidenciam a intensidade do abalo, do poder do amor sobre o humano.

O presente texto pretende refletir sobre as dinâmicas psíquicas subjacentes às interações humanas, em especial às afetivas. Pretende refletir também sobre alguns aspectos possivelmente relacionados a questões comuns sobre relações afetivas, que emergem em terapia. Por exemplo, quem está fora de uma relação afetiva perguntando: por que não encontro um(a) parceiro(a) afetivo(a)? Ou: o que tenho que ninguém me ama? Em contrapartida, quem está dentro de uma relação questionando e mesmo desqualificando a si mesmo(a) pelas angústias e inseguranças que experimenta associadas à vivência de seu relacionamento. A fundamentação teórica dessa reflexão é junguiana, com especial apoio para o desenvolvimento das reflexões que se seguem, na abordagem dos capítulos iniciais do texto “Eros e Pathos: amor e sofrimento” de Aldo Carotenuto (1994).

Um primeiro ponto de destaque é como o amor propicia a revitalização e o crescimento psíquico. Isso ocorre mediante a mobilização e integração de conteúdos inconscientes projetados no outro a quem percebemos amar. Na ótica junguiana, toda interação humano-humano envolve projeções (assim essas ocorrem entre amigos, chefe e integrantes de sua equipe etc. – e nisso se baseia a possibilidade de sucesso da terapia analítica). No entanto as projeções em relações ditas afetivas, foco principal do presente texto, adquirem especial significado por sua intensidade e profundidade, destacando-se em nossa cultura dentre as oportunidades de crescimento psíquico.

A pessoa se percebe amando ao constatar, por exemplo, que ninguém mais a faz se sentir do mesmo modo, expressar conteúdos tão profundos, experimentar a si mesma do mesmo modo que a pessoa que hoje é objeto de seu amor. E nisso reside a força de uma relação afetiva: de fato, NINGUÉM MAIS mobiliza uma pessoa desse mesmo e tão forte modo. Carotenuto (1994, p.100) enfatiza tal envolvimento como uma condição subjetiva nova, que só pode nascer da relação daquelas duas individualidades particulares. Somente aquela pessoa específica, mobiliza daquele modo específico a psique de quem a ama, por ela está apaixonado(a) e assim reciprocamente em uma relação correspondida. E nesse contexto, um relacionamento afetivo cria condições para profundas descobertas da própria individualidade. E por esse conjunto de características a situação de enamoramento e amor envolve tão profundamente aos integrantes do par afetivo, chegando muitas vezes a se distanciarem das vivências mais coletivas. Carotenuto (1994) enfatiza o quanto essa condição nova oportuniza o crescimento, a integração de novos conteúdos à consciência e dedica muitas páginas de seu trabalho a descrever as venturas e oportunidades da condição amorosa.

No entanto, é bem conhecido o dizer popular que evidencia não ser constituída somente de flores, uma relação amorosa estável: “quem está fora quer entrar, quem está dentro quer sair”. E quantas e quantas condições de sofrimento associadas a relações afetivas não estão descritas nas artes, não nos são conhecidas na vida cotidiana ou mesmo, já não foram vividas por nós mesmos? Considerando também amplamente essas outras faces possíveis do amor, Carotenuto (1994) pontua diversas condições em que a ventura do encontro afetivo torna-se oportunidade de até mesmo intenso sofrimento. Paradoxal, mas ocorre. Em que condições? Destacarei algumas revistas no texto, mas não as vejo como uma lista exaustiva nem excludente. Vejo-as como integrantes de um círculo de condições e circunstâncias que caracterizam e muitas vezes delimitam o espaço sagrado do amor. Vamos então passear por alguns dos pontos desse círculo.

Uma condição associada ao amor é a indispensabilidade do outro. Em face disso, pode ocorrer que um encontro de subjetividades tenda a se transformar em não encontro devido à dimensão do poder. Ou seja, devido à possibilidade de se instrumentalizar a indispensabilidade do outro. Na condição ideal em uma relação afetiva as experiências recíprocas envolvem com similar intensidade a ambos os parceiros. Carotenuto (1994) pontua que mesmo um pequeno desequilíbrio no nível de envolvimento com o relacionamento, pode se caracterizar uma tentação para quem sente um mínimo de superioridade. Nesse caso o parceiro tende a utilizar sua imprescindibilidade como instrumento de poder sobre o outro. De encontro de subjetividades, característico da relação amorosa, pode-se passar ao desencontro, propiciando-se situações de perversão essencial do próprio sentimento de amor – com todo o corolário de sofrimentos que a acompanha. O próprio Jung enfatiza bastante a impossibilidade de se conciliar amor e poder.

Um outro aspecto discutido por Carotenuto (1994) reside na dificuldade de reconhecimento e aceitação da própria individualidade emergente da e na relação em contraste com a idealização que construímos sobre nós mesmos. A situação de parceria em uma relação afetiva mobiliza e traz à consciência de cada parceiro, mais elementos de sua própria parte perversa, de sua própria sombra, de sua própria capacidade de fazer o mal. Na verdade esse se caracteriza por um dos motivos pelo qual uma relação de amor é sempre uma relação de amor e ódio. Há o Amor: a esperada grande ventura do encontro, a busca pela interação completa e perfeita com o outro. Há também o Ódio por essa pessoa que me mobiliza de tal maneira que me defronto com partes minhas que preferia jamais perceber que existem. Ódio dessa pessoa que à revelia de minha vontade mobiliza com tanta intensidade meu querer reduzindo meu controle racional sobre mim e minha vida. No entanto, se tenho a coragem, a honestidade de olhar para essas partes minhas e acolhê-las, torno-me uma pessoa mais completa e vou encontrando e conhecendo em mim uma dimensão diferente, a dimensão do Sagrado, que confere uma nova densidade à minha existência. Passo a compreender e a acolher o fato de que o bem e o mal coexistem. Que não é possível interagir de fato com um desses aspectos, assim classificados pelo ego, sem também se encontrar com o aspecto oposto que lhe corresponde. Tal tarefa é tão grande que exige muita coragem e honestidade existencial dos amantes para se lançarem à mesma e assim manter vivo e pulsante o próprio relacionamento. Não deixarem que aspectos mais coletivos e socialmente aceitos para um relacionamento norteiem e limitem a própria relação – isso conseguindo mediante corajoso e contínuo contato com os próprios sentimentos e intuições, e não apenas com o que é percebido e sancionado como correto ou necessário, obrigatório, sem alternativa, pela sociedade em que se insere o casal. Caminhar para além desses modelos e expectativa requer lidar com o incerto, inseguro, pulsante, vivo e imprevisível em si, no outro, no entorno. E requer a coragem para isso.

Como resultado do intenso trabalho subjetivo descrito no parágrafo anterior caracteriza-se o amor por uma tensão constante entre sua própria e intensa força de coação à união e inibições de diversas ordens a tal entrega. Para Carotenuto (1994), tal tensão é o próprio segredo do amor. No entanto, que poder podem ter as inibições a essa entrega. E daquele espaço sagrado construído na relação profunda pode-se tentar evadir profanando-o de diversos modos, como uma traição da confiança recíproca. E o encontro pode se desfazer. Ou, o diálogo, o cuidado podem propiciar um novo encontro e a reconstrução da sacralidade daquela relação. Ambos, diálogo e cuidado, constituem tarefa para corajosos e dedicados amantes. Não para acomodados e massificados seres, consumidores de emoções prontas e pasteurizadas, indolores e previsíveis. Carotenuto (1994) destaca que essa dinâmica necessária à vida do amor envolve formar-se, tranformar-se, eternamente – e acrescento: enquanto sentido para isso fizer esse amor para um dado par de amantes. Carotenuto (1994) pontua inclusive que pessoas com pouca profundidade subjetiva podem buscar intensamente a repetição do sexo com o amante em uma tentativa desesperada de captar o outro. Do mesmo modo também pontua que traições repetitivas, envolvimentos superficiais com várias pessoas podem indicar uma fuga desse processo de tão profundo envolvimento psíquico, de construção de um espaço sagrado e transformador para o amor existir.

Um outro aspecto considerado por Carotenuto (1994) é o ciúme, por ele descrito como o medo da perda, o medo do abandono que põe em crise o encontro que deu origem à relação. O autor revisto ressalta que em geral o ciúme na verdade constela um conflito pré-existente e também ressalta a possível existência de tirania aplicada à esfera do amor. Uma crise de ciúme abre ainda a possibilidade de se renovarem os votos, as intenções associadas ao encontro e se promover o reencontro – que pode ser muito válido, dado que jamais é casual a escolha de uma relação (ibidem, p. 112). Deste modo, a relação afetiva propicia a constatação da existência de dimensões infantis (como ciúme e sentimento de posse) e tal constatação é premissa de nosso desenvolvimento e de uma autenticidade conquistada (ibidem, p. 114).

De qualquer modo, aceitar viver o amor é aceitar viver em constante medo de perder a quem ama – e um ser humano que ama ao poder não pode viver nesse estado. Não pode e não quer se permitir ser absorvido pelo sentimento nem pode nem quer submeter-se à situação afetiva em que o(a) outro(a) pode ser perdido(a) a cada instante. Ou seja, um outro aspecto da relação afetiva é o defrontar-se com a própria situação de finitude como indivíduo. E isso não é compatível com o amor ao poder. A possibilidade de aceitar a própria pequenez e limitação, e o fato de nos sentirmos dependentes é justamente um indicador de maturidade. Mas o amor ao poder não está interessado nesse amadurecer.

Um outro aspecto relevante a ser considerado é que a sucessiva colocação e retirada de projeções inerentes ao relacionamento amoroso envolve constante perda, constante “morte” de idealizações construídas, destruídas e reconstruídas em um novo nível. Desse modo, na relação amorosa, a perda não é um perigo remoto, mas uma realidade sempre presente e atual. É um aspecto ineliminável da dimensão amorosa. O trabalho de reconstrução da imagem própria e do ser amado, e a aceitação desse processo, é contínuo. Tão intenso e profundo é o potencial de crescimento subjetivo associado ao envolvimento amoroso que Jung usa a imagem de um relacionamento alquímico ao descrever o processo de individuação humano, o tornar-se si mesmo como dependente de – ou associado a – tal interação.

Desse modo já se vê que reflexões bem profundas são necessárias em face de questões como: por que não encontro quem queira um relacionamento sério e profundo comigo? Também cabe refletir sobre o sentimento de culpa decorrente da insegurança mesmo em um relacionamento de fato profundo. Caso a caso, história de vida a história de vida encontra-se os pontos, os aspectos que requerem reflexão aprofundada, maior consciência da dinâmica subjacente ao relacionamento. Será que a pessoa está presa em qualquer das circunstâncias que limitam ou impedem um relacionamento, como algumas acima descritas? Desde o medo de um padrão coletivo de relacionamento a um estado infantil afetivo ou alguma experiência prévia desastrosa? Será que tal pessoa de fato quer alocar tanta energia, tempo e esforço em uma interação a dois conforme pode-se dimensionar pelo descrito acima e também vemos cotidianamente os relacionamentos afetivos exigirem? Será que tal pessoa que pensa querer um relacionamento, porque é isso que a sociedade lhe diz que deve querer, não está em um momento de trabalho mais individual na própria jornada? Qual atenção essa pessoa dá à sua própria vida interior? Ela ama a si mesmo(a)? Como cuida de si mesmo(a)? Muitas questões se apresentam e cabe refletir sobre elas. Ouvi-las.

No entanto, quando o amor chega e se fazer sentir, não se fazem planos. Apenas se percebe que está ali com toda a força de sua mobilização. Pode-se quando muito tentar fugir ao trabalho de se relacionar, negar o que sente. Ou se entregar a mais uma profunda, avassaladora e desconcertante jornada de transformação e crescimento a dois.

Desse modo, em face da intensa fragilidade humana diante de tão grandes forças que assolam a sua existência e, apesar de o texto acima não ser em nada romântico, no sentido cotidiano do termo, mas ser profundamente romântico no sentido cultural, em decorrência da intensidade de vivências subjetivas que contempla, cabe homenagear mais completamente ao autor dos versos que abriram esse trabalho, procurando trazer mais luz à esperança, à eterna busca dos humanos por aquilo que ainda não têm: o que de fato espera viver um humano quando se abre a uma relação amorosa?

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Não Pode Tirar-me as Esperanças

Busque Amor novas artes, novo engenho

Para matar-me, e novas esquivanças;

Que não pode tirar-me as esperanças,

Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!

Vede que perigosas seguranças!

Pois não temo contrastes nem mudanças,

Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas conquanto não pode haver desgosto

Onde esperança falta, lá me esconde

Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto

Um não sei quê, que nasce não sei onde;

Vem não sei como; e dói não sei porquê.

Luís Vaz de Camões (1524-1580), in “Sonetos” 

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Bibliografia

CAROTENUTO, A. Eros e Pathos – Amor e sofrimento. São Paulo: Paulus. 1994. 240p.

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Autora

Silvia Maria Guerra Molina – analista em formação pelo IJEP- silvia.maria@gmail.com; (19)99151-0909 (Piracicaba, SP)


Neale D. Walsch em seus textos, certamente em uma visão de um introvertido diz algo como: a gente percebe que está amando alguém quando nos sentimos na presença dessa pessoa tão bem como os sentimos quando estamos sozinhos.

Essa reflexão lembrou-me de uma citação de Bob Marley: “Há pessoas que amam ao poder e outras que têm o poder de amar…”.

Silvia Maria Guerra Molina  – 26/07/2019

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