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Seu perfil virou mercadoria: o processo de individuação em meio à sedução da cultura de consumo de massa e invasão de privacidade


Vivemos em um tempo no qual ao lado da comodidade, serviços e bem-estar que as tecnologias nos prestam, outros e potencialmente danosos efeitos das tecnologias começam a se evidenciar, muito além de nossa percepção cotidiana.

Como exemplos: o satélite Capella-2 apresenta “um diferencial curioso e potencialmente preocupante, ao mesmo tempo: ele é capaz de ver através de determinadas construções”. Ele capta imagens ainda só através de materiais não muito espessos, como angares de aviões. Por meio de ondas eletromagnéticas esse satélite registra imagens inclusive na ausência de luz e através de nuvens e fumaça (WAKKA, 2020). Parece muito distante? De fato, também “já é possível fotografar um homem a partir do espaço exterior, monitorar a sua movimentação, interceptar suas comunicações telefônicas (fixa e móvel) e até ouvir suas conversas em lares e escritórios” (CONCEIÇÃO, 2011). E ainda, em sua experiência imediata, qualquer usuário de e-mail, ao digitar em sua mensagem, por exemplo, “pretendo viajar para a praia no Natal” verá aparecer em sua tela, de imediato, promoções inclusive confusas, como de passagens aéreas para a cidade de Natal… Também, se ao lado de seu celular, mesmo com a tela escura, depositado sobre a mesa, comentar em voz alta sobre um modelo de carro, ao acender a tela e começar a usar o celular, verá anúncios de venda daquele modelo de carro… E isso é feito com seu consentimento… (GOMES, 2019).

Nós autorizamos esse tipo de invasão de privacidade em troca dos serviços e comodidades “gratuitos” que os aplicativos nos oferecem… Isso ocorre porque quando fazemos alguma busca na internet, deixamos uma “trilha” de nossa identidade digital atrelada ao produto ou serviço que buscamos. Nossa identidade “pode ser vendida ou trocada por esse site para outros sites que acessamos. E isso tem nome, chama-se retargeting” (POZZA, 2019).

Ou seja, nossa “paranoia” quanto a essas ocorrências está assimilada: isso de fato acontece e vem sendo documentado e estudado. E acontece com tal intensidade e em tal extensão e com possíveis implicações, que faz a teletela e os mecanismos de vigilância, distorção da realidade e restrição de liberdade descritos no livro 1984 de George Orwell parecerem assustadoras distopias encontrando amplamente seu lugar no tempo e no espaço, e mesmo, sendo superadas. Torna-se impressionante quanta destrutividade pode decorrer de nossa inconsciência.

O que significa ter seu perfil digital transformado em mercadoria? Muitas são as implicações disso em nossas vidas. No presente texto vamos refletir brevemente sobre o processo de invasão de privacidade e mercantilização do perfil do usuário digital como ferramentas de massificação, confrontando-os com o processo de individuação conforme proposto por Jung na Psicologia Analítica. Os conceitos de mercadoria e de fetichismo da mercadoria ampliados à cultura discutidos em uma reflexão de Silva (2010) também trazem contribuições e suporte ao presente texto.

Mercadoria refere-se àquilo que é produzido para o mercado, não para consumo próprio. Caracteriza-se pelos valores de uso e de troca. Por fetichismo da mercadoria compreende-se o processo de se ocultar, no sistema capitalista, as relações sociais de exploração do trabalho embutidas na fabricação das mercadorias (SILVA, 2010). Constatamos que os usuários digitais, em troca de serviços prestados pelos aplicativos que usam, fornecem seus dados, seu perfil de consumo, com sua própria anuência, quase automática, frequentemente sem leitura e reflexão do conteúdo dos termos e condições de uso dos aplicativos. Geramos esses dados ao usarmos os aplicativos. Assim, criamos nossos perfis de consumo, os quais autorizamos serem divulgados, vendidos, trocados. E somos bombardeados com anúncios de produtos que têm apelo de consumo diretamente direcionados ao nosso perfil específico. E aceitamos isso como o preço para usar os aplicativos “gratuitamente”. Nossos perfis têm alto valor de troca, mas não para nós e sim para as organizações coletoras e comercializadoras dessas informações. Nesse sentido, e de um modo mais metafórico, temos o perfil de consumo transformado em mercadoria, assim como também, metaforicamente, podemos observar um fetichismo da mercadoria na ocultação da poderosa indução ao consumo, a qual pode ser facilmente caracterizada como exploração da privacidade do usuário, embutida na sedução do uso de um aplicativo “gratuito”. Quando refletimos acerca do fato de que até uma conversa dentro de uma residência pode ser ouvida por um satélite e imagens dentro de construções já podem ser registradas pelos mesmos, podemos inclusive vir a temer pelo grau de exploração e invasão de privacidade que tais avanços tecnológicos permitem ou em breve poderão permitir.

Indução ao consumo e invasão de privacidade com tal nível de refinamento tecnológico reflete padrões de massificação de uma sociedade que não estimula o desenvolvimento psíquico de seus integrantes. Este transcorre desde uma indiferenciação completa do indivíduo no inconsciente, estado em que se encontra ao nascimento biológico, até uma grande capacidade de integrar conteúdos do inconsciente à consciência, que caracteriza o processo de individuação – a realização do Si-mesmo, conforme descrita na psicologia analítica, a qual se refere à nossa “transformação naquele outro, que também somos, e que nunca chegamos a alcançar plenamente” (JUNG, 2014, §235). Cabe enfatizar que “a integração do inconsciente coletivo é parte constitutiva e indispensável da individuação” (JUNG, 1990, §72).

Em uma sociedade que valoriza a massificação e a ciência produtora de tecnologias, ressalta Jung (1989, §529) que “a psique individual, em função de sua individualidade, representa uma exceção à regra estatística”, ao afã de nivelamento estatístico. Continua Jung enfatizando que “a psique individual só encontra aceitação e validade [mesmo] nas confissões e Igrejas quando (…) aceita submeter-se a uma categoria coletiva”. E isso, em que pese o fato de o cristianismo ensinar “o sentido de um símbolo que tem por conteúdo justamente a conduta individual da vida de um homem”. Em nosso tipo de sociedade, “a experiência imediata e interior é desviada para o exterior”. Entretanto, ressalta ainda Jung: “se a autonomia não fosse a nostalgia secreta de muitos, talvez o indivíduo não tivesse condições de sobreviver moral e espiritualmente à repressão coletiva”.  De fato, “a personalidade humana não é apenas individual, mas também coletiva e de forma tal que o indivíduo representa, por assim dizer, menoridade oprimida” (JUNG, 2013, § 888). Desse modo, temos neste conjunto de citações caracterizado o processo de individuação como força do indivíduo humano em face das pressões do coletivo, o qual também o constitui.        

Individuação não significa egoísmo, nem seguir tendências individualistas e irresponsáveis. Jung (1990, §462) expressando-se no ano de 1933, mostra-se impressionantemente atual:

A consequência da pronunciada tendência individualista resultante de nosso desenvolvimento mais recente consiste no surgimento cada vez maior de um contra-ataque compensatório do homem coletivo cuja autoridade se impõe de antemão pelo peso da massa humana. Por isso não é de admirar que predomine hoje um tom de catástrofe como se uma avalancha viesse rolando e ninguém fosse capaz de conter. O homem coletivo ameaça sufocar o indivíduo sobre cuja responsabilidade repousa, em última instância, toda obra humana. A massa como tal é sempre anônima e irresponsável. (JUNG, 1990, §462)

Toni Wolf (JUNG, 2013, §891) ressalta que tanto indivíduos como grupos são influenciados por “muitos fatores típicos, como o ambiente familiar, a sociedade, a política, a cosmovisão, a religião etc.”. Acrescenta que “quanto maior o grupo, tanto mais funciona nele a pessoa como ser coletivo, e isto é tão forte que pode rebaixar a consciência individual até o autoesquecimento”. Em relação aos indivíduos, Wolf comenta que “o grupo e tudo que o constitui cobrem a falta de individualidade genuína”, assim como os pais suprem tudo que falta aos filhos. Acrescenta ainda que “só fica imune a isto quem sabe conquistar sua própria personalidade”.

Tal irresponsabilidade, tal sentimento de retorno a uma infância em que tudo de necessário é providenciado pelos pais, está por trás do aspecto sedutor de integrar uma massa humana. Vivemos agora a experiência de integrar massas também por meio das redes sociais? Furtamo-nos ao nosso anseio por desenvolvimento interior consumindo e consumindo cada vez tentando não abandonar esse reino de irresponsabilidade? Permitimo-nos fascinar por mercadorias e seu fetiche, agora entendidos em seu sentido mais estrito, pretendendo não assumir o papel de indivíduo adulto transformador que cabe a cada um de nós?

Permitimos que nossa evolução intelectual se dissocie de nosso desenvolvimento psíquico? Ou pretendemos reconectar nossas consciências que dispararam adiante em nossa atenção, com relação aos conteúdos inconscientes que fundamentam nossa consciência? Cabe enfatizar que, de acordo com Jung (2014, §617), “o ritmo de desenvolvimento na ciência e na técnica foi rápido demais, deixando para trás o inconsciente que não acompanhou seu passo, impelindo-o assim a uma posição de defesa, a qual se manifesta em uma vontade generalizada de destruição”. Prossegue Jung, em 1950, novamente com surpreendente contemporaneidade: “os ismos políticos e sociais de nossa época pregam todo tipo de ideais imagináveis, mas por detrás dessa máscara perseguem o objetivo de rebaixar o nível da nossa cultura, na medida em que limitam as possibilidades individuais de desenvolvimento e até as impedem de modo total”. Jung comenta então que isso é feito criando-se um caos domado pelo terror. Deste emerge limitada possibilidade de vida. Acrescenta que: “resta-nos esperar para ver se da experiência de escravidão indigna resultará um anseio maior por uma liberdade espiritual. Ressalta ainda (idem, §618) que “esse problema não pode ser resolvido coletivamente, pois a massa não se modifica se o indivíduo não se modificar”. Qualquer medida coletiva só será adequada se estiver conectada ao indivíduo por um processo de desenvolvimento. Desse modo, conclui que: “a melhoria de um mal generalizado começa pelo indivíduo, e isto só quando este se responsabiliza por si mesmo, sem culpar o outro”, o que só é possível em liberdade, não sob tirania de um ser humano ou de muitos. A quantas e quais tiranias voluntariamente continuaremos a nos submeter? Será o mundo decorrente disto aquele que desejamos contribuir para criar?

O presente texto procurou enfatizar a importância de uma reflexão neste sentido, seguida de atitudes condizentes. Agradeço a leitura atenta que o tema nos solicita!

Silvia Maria Guerra Molina – analista em formação pelo IJEP.

Maria Cristina Mariante Guarnieri – didata responsável

Agradeço aos professores que pacientemente realizam os diferentes tipos de supervisão em meu processo de formação continuada e que tão generosamente compartilham seus conhecimentos e promovem oportunidades de aprofundamento e aprendizado: Maria Cristina Mariante Guarnieri, Lílian Wurzba e Ajax Perez Salvador.

Bibliografia Citada

CONCEIÇÃO, Mário Antônio  Sensoriamento remoto e direito à intimidade. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Tese Doutorado – Programa de Pós-graduação em Direito), Belo Horizonte, 2011. 277 p.

JUNG, Carl G.  Presente e Futuro. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989, 56p. (Obras Completas, vol. X/1; vol. X: Civilização em Mudança).

JUNG, Carl G.  Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, 96p. (Obras Completas, vol. X/2; vol. X: Civilização em Mudança).

JUNG, Carl G. Civilização em Transição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013, 269p. (Obras Completas, vol. X/3; vol. X: Civilização em Mudança).

JUNG, Carl G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, 454p. (Obras Completas, vol. IX/1).

GOMES, Helton, Simões   Seu celular escuta suas conversas para mostrar anúncios? Nãé bem assim. https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2019/02/22/seu-celular-escuta-suas-conversas-para-mostrar-anuncio-nao-e-bem-assim.htm, 22/02/2019 atualizado em 25/02/2019. (acesso em 27/06/2021).

ORWELL, G. 1984. Principis: Jandira, SP, (1949/2021), 336 p.

POZZA, Letícia A.  Somos vendidos o tempo todo! Entenda como as empresas nos perseguem. https://saladadedados.blogosfera.uol.com.br/2019/02/20/somos-vendidos-o-tempo-todo-entenda-como-as-empresas-nos-perseguem/, 20/02/2019. (acesso em 27/06/2021).

SILVA, Fábio Cesar da  O conceito de fetichismo da mercadoria cultural de T.W. Adorno e M. Horkheimer: uma ampliação do fetichismo marxiano. Kínesis, Vol. II, n° 03, Abril-2010, p. 375 – 384. In: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/FabioCesardaSilva.pdf, acesso em 27/06/2021)

WAKKA, Wagner Novo satélite é capaz de ver o que acontece dentro de construções. https://canaltech.com.br/espaco/novo-satelite-e-capaz-de-ver-o-que-acontece-dentro-de-construcoes-176575/, 21/12/2020. (acesso em 26/06/2021).

Silvia Maria Guerra Molina – 30/06/2021

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