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Sexo, Gênero, Comportamento de Gênero e Sexualidade

Este artigo busca esclarecer o que significa muito dos conceitos utilizados hoje em dia para se falar sobre gênero e sexualidade em suas diferentes dimensões. Sexo biológico, gênero, comportamento de gênero e sexualidade são explicados e onde podemos relacionar, em uma primeira instância, essas dimensões à psicologia analítica.

Este artigo busca esclarecer o que significa muito dos conceitos utilizados hoje em dia para se falar sobre gênero e sexualidade em suas diferentes dimensões. Sexo biológico, gênero, comportamento de gênero e sexualidade são explicados e onde podemos relacionar, em uma primeira instância, essas dimensões à psicologia analítica.

O advento das redes sociais trouxe a público discussões que antes se restringiam à círculos profissionais e acadêmicos. Nas duas últimas décadas temos visto termos acadêmicos ganharem notoriedade em discussões populares. Um grupo temático que ganhou especial notoriedade nas discussões das redes sociais das últimas décadas é o da sexualidade, gênero e identidade sexual.

Termos como transgênero, cisgênero, assexual, intersexual, dentre outros, ganharam notoriedade antes desconhecida, mas, na maioria das vezes, de modo confuso.

Nesse artigo me proponho a uma tarefa dupla: a primeira é fazer uma explanação breve diferenciando quatro conceitos básicos nessa temática: sexo biológico, sexualidade, identidade de gênero e comportamento de gênero; a segunda é tentar associar essas diferentes dimensões da experiência humana à perspectiva da psicologia analítica.

Até muito pouco tempo esses quatro conceitos estavam fusionados num só entendimento. Ou seja, se um sujeito possui o sexo biológico masculino, se entenderá homem, se sentirá atraído sexualmente por mulheres e se comportará de acordo com o que a sociedade espera de um homem (e o oposto para quem possui o sexo biológico feminino). Nesse entendimento não haveria espaço para flexibilizar a experiência do sujeito para além do binário macho-fêmea tradicional, padrão infelizmente ainda dominante, nomeado heteronormatividade. Entretanto, uma série de movimentos do século passado começaram a erodir esse entendimento. O feminismo, a entrada da mulher no mercado de trabalho e a ascensão da luta LGBTQIA+ desvelaram as muitas possibilidades de se viver essas dimensões que se encontravam ocultas sob o manto do suposto normal.

Ao longo do século passado, foi se formando um novo entendimento sobre como poderíamos entender essas dimensões.

O crescente número de variações que surgiam tornava o entendimento binário cada vez menos útil. No final da década de 1940, Alfred Kinsey propôs uma escala para representar a sexualidade humana, de acordo com seus achados. A escala proposta por ele varia de zero a seis, o zero representando indivíduos totalmente heterossexuais e o seis indivíduos totalmente homossexuais, com os demais números representando gradações de bissexualidade.

A ideia da escala de Kinsey se popularizou e com o tempo foi sendo adaptada, eventualmente a noção de uma escala numérica foi sendo abandonada e começou se a usar o termo espectro para se falar desses temas, aludindo à ideia do espectro de ondas eletromagnéticas ou simplesmente ou espectro luminoso.

É interessante perceber que Jung, em A Natureza da Psique, vai usar metáfora similar para falar sobre os elementos do inconsciente, instintos e arquétipos, e suas intrincadas relações.

O uso dessas metáforas é interessante em ambos os casos pois dá conta de sistemas complexos de maneira mais adequada que um binarismo rígido que não consegue representar as nuances e variações entre um polo e outro.

A primeira dimensão que precisamos definir nesse debate é a que, historicamente, tem sido usada para se reduzir todas as demais a uma suposta unidade, o sexo biológico. Sexo biológico (ou só sexo mesmo) diz respeito às características anatômicas e fisiológicas de um indivíduo, especialmente no que diz respeito aos caracteres sexuais primários (ou seja, quais órgãos reprodutivos aquela pessoa possui) mas também alguns caracteres sexuais secundários (distribuição de pelos, gordura, músculos, tom de voz, entre outros).

Inicialmente se entendia essa dimensão a partir de um binômio simples, ou o sexo biológico é macho ou é fêmea. Entretanto, o debate recente tem buscado incluir o entendimento de que a biologia humana é mais complexa que isso, é que há variações que precisam ser levadas em consideração, é o que chamamos de intersexo.

O indivíduo intersexual é aquele que possui uma ou mais variações anatômicas, genéticas ou hormonais que não se encaixam plenamente no entendimento do que é macho ou fêmea. Por exemplo, indivíduos com cariótipos outros que XX e XY, ou com genitália ambígua podem se entender como intersexuais.

O debate de se esses indivíduos deveriam se adequar ao padrão binário macho-fêmea é antigo, mas o argumento de que fazer ou não essa adequação deve ser uma escolha do indivíduo tem ganhado cada vez mais força nas últimas décadas. Logo, podemos pensar mais num espectro do sexo biológico que fica entre o corpo de fêmea e o corpo de macho com suas variações entre eles.

Na obra de Jung podemos encontrar a questão do sexo biológico sendo discutido na questão do corpo.

O corpo ocupa um lugar de grande importância em psicologia analítica: é a partir da experiência do corpo que se forma o complexo de ego, o fulcro da vida consciente do indivíduo. Se o ego se forma a partir da experiência do corpo, é de se esperar que haja um certo grau de correspondência entre esse corpo e as imagens psíquicas que formam o ego, o que explicaria o entendimento dominante de que é necessário que haja concordância entre sexo biológico e gênero. Entretanto Jung afirma que os processos do corpo e os processos mentais são simultâneos, ou seja, andam, juntos. Não havendo precedência de um sobre o outro. Há de se imaginar, então, que não é só o elemento corporal exerce influência sobre as dimensões desse debate, e é a partir daqui que entramos na próxima dimensão, o gênero.

O gênero está, historicamente, atrelado à ideia de sexo biológico. Apesar de muitos vincularem gênero apenas à biologia do indivíduo, esse na realidade também está vinculado às distinções sociais e culturais que se faz entre o que é um homem e o que é uma mulher e quais papéis cada um ocupa na sociedade.

No pensamento ocidental, tradicionalmente, o gênero é subentendido a partir do sexo biológico, ou seja, quem nasce com genitália masculina é homem, e quem nasce com genitália feminina é mulher. Mas nem todas as sociedades possuíam esse mesmo entendimento. Na Índia, por exemplo, até hoje, a figura das hijiras desafia o entendimento de gênero binário. Nas américas pré-coloniais também há diversos registros de sociedades com mais de dois gêneros. Na nossa sociedade pessoas cujo gênero não se identifica com seu sexo biológico tem se entendido como pessoas trans. O termo trans vem do latim, e significa “do outro lado” ou “do lado oposto”.

Pessoas trans podem ser travestis, transexuais ou mesmo pessoas que não se identificam com nenhum dos dois gêneros, conhecidos como não-binários, agêneros ou gênero-fluidos.

Esses indivíduos não se sentem confortáveis com a identidade que seus sexos biológicos geralmente subentendem, o que pode ser motivo de forte desconforto psíquico. Por muitos anos essa condição foi entendida como disforia de gênero e era patologizada e classificada pela OMS como doença. Em 2018 a OMS anunciou a retirada dessa condição do CID (Código Internacional da Doença), o que foi considerado um avanço para essa população. Pessoas que se identificam com seus sexos biológicos, por outro lado, são chamados cisgêneros (o prefixo cis vem do latim e significa “do mesmo lado”). Essa expressão é usada simplesmente para definir alguém que não é trans. Aqui podemos pensar num espectro também, que compreende a cisgeneridade numa ponta, a transgeneridade na outra com indivíduos gênero-fluido ou não binários ocupando lugares no meio do caminho.

A presença recorrente de padrões simbólicos ou de comportamento em diferentes culturas e tempos é forte indicativo da presença da atuação de elementos arquetípicos.

Como vimos anteriormente, o que hoje entendemos como transgeneridade não é novidade, sempre esteve presente em diferentes lugares do mundo. Há de se pensar também que a transgeneridade não é uma escolha: pessoas transgênero relatam que vivem sua condição porque assim se entendem, sem ter poder para escolher viver suas identidades de maneira distinta, o que evidencia ainda mais o papel do inconsciente em definir tais vivências. Por ser uma questão de identidade, o gênero está intimamente ligado ao ego. Num pensamento mais tradicional poderíamos imaginar que aqui também encontraríamos questões relativas à persona, mas essa parece estar mais intimamente ligada à próxima dimensão, o comportamento de gênero.

Comportamento de gênero diz respeito a como um indivíduo expressa seu gênero.

Ou seja, se a pessoa se comporta ou não de acordo com o que a sociedade espera dela de acordo com seu gênero. Como a pessoa se veste, como fala, como gesticula, que tipo de interesses possui, quais hobbies pratica e até mesmo qual profissão exerce, tudo isso pode ser entendido como adequado ou não a um gênero, dependendo das regras sociais locais. Por exemplo, um homem que veste roupas entendidas como femininas pode ser entendido como feminino, e, portanto, em discordância do que se espera dele como homem. Uma mulher numa profissão como mecânica de automóveis choca algumas pessoas, enquanto dificilmente alguém questionará uma enfermeira em sua feminilidade. Aqui o que está em jogo é se o comportamento do indivíduo se adequa ou não às normas sociais do que é masculino e feminino.

Obviamente os elementos que compõe essas expressões são criações coletivas e, portanto, variam muito de lugar para lugar e ao longo da história.

Um exemplo clássico é que um homem da corte francesa do século XVIII, com sua peruca empoada e seu sapato de salto, dificilmente seria considerado masculino atualmente.

Aqui temos em jogo a questão das personas: da persona que a pessoa se sente confortável em expressar e a persona que se espera que ela possua por sua condição de sexo biológico e gênero. Mas, novamente, as coisas aqui estão melhor representadas num espectro do que num binário simples. Ou seja, um espectro que vai da maior adequação à menor adequação às expectativas de gênero.

A última dimensão a ser apresentada é a sexualidade. Sexualidade diz respeito a atração e desejo sexual de um indivíduo em relação a um determinado sexo. Aqui temos a tradicional distinção entre heterossexuais (pessoas que se sentem atraídas por pessoas do gênero oposto), homossexuais (pessoas atraídas por pessoas do mesmo gênero) e bissexuais (pessoas que se sentem atraídas por pessoas de ambos os gêneros). Entretanto, já há algum tempo se fala sobre indivíduos que não se encaixam em nenhuma dessas categorias pois não apresentam desejo sexual ou o apresentam muito raramente, essas pessoas são entendidas como assexuais (importante frisar que o termo assexuado é considerado inadequado).

Mais recentemente, a demissexualidade também passou a ser mais amplamente discutida – a condição do indivíduo que só sente atração sexual se no contexto de um vínculo afetivo a priori. Podemos pensar então em dois eixos do espectro: o primeiro compreendendo a hetero e homossexualidade como seus extremos com as várias nuances de bissexualidade entre eles; e um segundo eixo com a assexualidade num extremo, a alossexualidade (condição de quem sente desejo ou atração sexual regularmente) no outro e a demissexualidade no intervalo entre essas.

Para Jung, a sexualidade está intimamente ligada à ideia do par opositivo mulher e homem e respectivamente seu animus e anima.

Como nota Hopcke, Jung pouco menciona a homossexualidade em suas obras (a bissexualidade idem). Mas, verdade seja dita, Jung não estava tão preocupado com os aspectos externos da sexualidade quanto com a realidade interna que essas evocam. Além do que, havia pouco foco no estudo na época de qualquer coisa que escapasse da lógica cis e heterossexual. No entanto, acho interessante ressaltar que um dos mais antigos textos sobre o amor no ocidente dá conta claramente de uma maior variedade possível de encontros entre gêneros do que o binário homem e mulher. Trata-se da fala creditada a Aristófanes no Banquete de Platão.

Segundo Aristófanes:

Eis por que eram três os gêneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram, por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses.

O Banquete, Platão

O texto segue descrevendo como Zeus, auxiliado por Apolo, divide os três tipos de humanos ao meio, gerando homens que gostavam de homens, homens que gostavam de mulheres e mulheres que gostavam de mulheres. De tal maneira a narrativa dá conta não só de diferentes sexualidades e afetividades como também propõe a ideia de um terceiro gênero, que como presença mitológica, possui natureza arquetípica tanto quando o masculino e o feminino.

O próprio Jung tece comentários acerca do arquétipo do hermafrodita em relação a homossexualidade:

Em vista da conhecida frequência deste último fenômeno, concebê-lo como uma perversão patológica é extremamente questionável. Segundo as descobertas da psicologia, trata-se mais de um desligamento incompleto do arquétipo hermafrodita, unido a uma resistência expressa a identificar-se com o papel de um ser sexual unilateral. Uma tal disposição não deve ser julgada sempre como negativa, posto que conserva o tipo humano originário que, de certa maneira, se perde no ser sexualmente unilateral.

JUNG, OC 9.1 §146

Como dito anteriormente, o entendimento popular sobre as dimensões acima só se tornou mais amplo nas últimas décadas. Apenas a sexualidade como uma categoria à parte das demais era contemplada e, mesmo assim, a partir da noção de que seria normal e do que seria um desvio. Para muitos, a distinção de tais dimensões do que é sexo e gênero ainda é algo confuso, até considerado falso.

Espero que esse texto ajude a esclarecer algumas dessas categorias que para alguns são familiares, mas para muitos são novidade no mundo dos relacionamentos humanos, lembrando que, evidentemente, há muito mais para falarmos a respeito desses temas.

Gabriel Andrade – Analista em formação IJEP

Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP

Bibliografia:

CONNELL, R. PEARSE, R. Gênero: uma Perspectiva global. 3ª ed. São Paulo: nVersos, 2015

HOPCKE, R. H. Jung, junguianos e a homossexualidade. São Paulo. Siciliano, 1993

JUNG C. G. A Natureza da Psique. 10.ed. Petrópolis, Vozes, 2013

JUNG C. G. A Vida Simbólica Vol 1. 7. ed. Petrópolis, Vozes, 2015

JUNG C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. 11.ed. Petrópolis, Vozes, 2014

PLATÃO. O Banquete – Versão digital do site Domínio Público, disponível em www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000048.pdf

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