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Iemanjá: a orixá mãe dos peixes e dos seres humanos

Mergulhe nas profundezas simbólicas de Iemanjá através do olhar da Psicologia Analítica. Este ensaio convida você a explorar a rainha do mar não apenas como uma divindade das águas, mas como um poderoso arquétipo do inconsciente coletivo. Ao unir mitologia afro-brasileira e teoria junguiana, revelamos significados ocultos sobre o feminino, o acolhimento e a força transformadora das emoções. Venha descobrir o que Iemanjá pode ensinar sobre você mesmo.

Mergulhe nas profundezas simbólicas de Iemanjá através do olhar da Psicologia Analítica. Este ensaio convida você a explorar a rainha do mar não apenas como uma divindade das águas, mas como um poderoso arquétipo do inconsciente coletivo. Ao unir mitologia afro-brasileira e teoria junguiana, revelamos significados ocultos sobre o feminino, o acolhimento e a força transformadora das emoções. Venha descobrir o que Iemanjá pode ensinar sobre você mesmo.

É inquestionável dentro dos estudos da alma humana com o ponto de vista da Psicologia Analítica a presença de mitos e simbolismos diversos, como Jung bem nos apresenta, essas narrativas criadas desde tempos imemoriais, nos contam sobre a Psique humana e sua jornada em busca do seu processo individual e coletivo rumo a Individuação.

Esta por sua vez, segundo Jung, trata-se do objetivo da vida humana, tornarmo-nos o ser que verdadeiramente somos, e na medida que o processo ocorre, ficamos cientes de nossa individualidade, também caminharemos posteriormente a uma compreensão maior a respeito da vida e da coletividade. A consciência coletiva muda a todo momento, nos transformando com ela.

Tudo isso posto, Jung entendeu que as narrativas míticas, falam de processos e dinâmicas vividas dentro da psique humana, podem nos servir para compreender, acessar e até resgatar e iniciar processos de mudanças intensas e profundas dentro de nós e de nossos clientes, desse modo, o estudante de Psicologia Analítica passa boa parte de seu tempo conhecendo e se aprofundando nos mitos, mais amplamente podemos ver os estudos caminhando dentro da mitologia grega, egípcia, assíria, nórdica etc.

Por conta de um preconceito que algumas mitologias são pouco faladas e estudadas, tais como mitos asiáticos, hindus, africanas, entre outros.

Mas, nessa lista de mitologias que sofrem um “apagamento”, encontramos os mitos indígenas brasileiros e os mitos afro-brasileiros. Estes além do preconceito com estas populações – falamos aqui de preconceito racial- também sofrem influência de um complexo cultural, que conhecemos popularmente como a “Síndrome do vira-lata”, sobre estes e outros assuntos não nos adentraremos em detalhes, basta dizer que está dentro de todos nós, e assim como toda a nossa sombra, se não o fizermos conhecida, invariavelmente em algum momento ela nos fará prisioneira de seus caprichos e desmandos.

Para um maior entendimento sobre este assunto recomendo leituras como “A alma brasileira” e “Desvelando a Alma Brasileira”, bem como estudos a respeito da Sombra, do Espírito da Época e sobre mitologia e sua importância no setting terapêutico, tudo isso você encontra ainda nas aulas dos cursos do IJEP- Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa.

Acontece que dentro de todas as possibilidades, as mitologias indígenas e afro-brasileiras falam da nossa alma- brasileira-, então, possivelmente trará uma potência significativa em trabalhar os indivíduos em seu processo de análise, virão a superfície ainda questões coletivas, possibilitando chegar em lugares nunca imaginados.

Dentro da mitologia afro-brasileira, os deuses, chamados orixás, existe a figura de uma Grande Mãe, essa é Iemanjá.

Segundo a mítica iorubá, Iemanjá é a primeira divindade feminina a surgir no panteão, sendo filha de Olokun (Oceano), sem, no entanto, a presença de uma divindade criadora feminina, ela surge então como a primeira, talvez até por isso se torne a Grande Mãe das outras divindades, e mesmo assim, é uma mãe acolhedora, mas ao mesmo tempo austera e dura, já que não contou com uma precursora, que lhe mostrasse outra forma de cuidado.

Devemos lembrar ainda que foi criada a princípio para representar o feminino, o casamento e desempenhar diversas funções, no entanto, suas qualidades maternais logo se destacaram, sendo concedido a si o cuidado com os oceanos, reino a princípio de seu “pai”, demonstrou ainda grande habilidade em organização e ressignificação junto a “cabeça” de todos os indivíduos, vindo posteriormente a ser declarada como mãe de todas as criaturas e dona de todas as cabeças.

Numa ampliação simbólica podemos refletir que as águas dos oceanos, representam os sentimentos, as emoções, assim como o inconsciente, todos amplamente ligados ao princípio feminino, assim como a administração e ressignificação destes, também operam no caos que eles vivem, de ondem vem e para onde retornam, também alimentam a criatividade, todos estes com forte vinculação ao feminino. Temos ainda essa atribuição, de ser “dona das cabeças”, nisso, podemos ver, dentro da Psicologia Analítica, que um dos primeiros complexos que tomamos contato, assim como uma das primeiras figuras é a da mãe, essa que fará os primeiros cuidados, e será o primeiro modelo para a elaboração da mãe interna, que posteriormente será a referência de como o indivíduo vai se relacionar consigo e com o outro e de que forma exercerá a maternagem.

Quem de nós nunca precisou ou nunca precisará de uma mãe?

Como todo arquétipo, o materno também possui uma variedade incalculável de aspectos.(…) Seus atributos são o “maternal”: simplesmente a mágica autoridade do feminino; a sabedoria e a elevação espiritual além da razão; o bondoso, o que cuida, o que sustenta, o que proporciona as condições de crescimento, fertilidade e alimento; o lugar da transformação mágica, do renascimento; o instinto e o impulso favoráveis; o secreto, o oculto, o obscuro, o abissal, o mundo dos mortos, o devorador, sedutor e venenoso, o apavorante e fatal. (…) Trata-se de três aspectos essenciais da mãe, isto é, sua bondade nutritiva e dispensadora de cuidados, sua emocionalidade orgiástica e a sua obscuridade subterrânea. (…) Embora a figura da mãe, tal como aparece na psicologia dos povos, seja de certo modo universal, sua imagem muda substancialmente na experiência prátiva individual. (JUNG, 2014, p. 87-89)

Por isso, sua grande influência e o impacto muito grande de suas ações para cada um de nós,  mesmo perante tanto preconceito ainda presente em nossa cultura, a imagem de Iemanjá tenha um conhecimento mais difundido, bem como um respeito, que nem todos os outros orixás compartilham.

Devo destacar ainda que dentro da filosofia e mitologia afro-brasileira, os orixás não são bons ou ruins, eles agregam em si todas as potencialidades, assim também é a forma que Jung viu os arquétipos e complexos, muito embora este segundo, seja preenchido pelas experiências do indivíduo, dando assim uma conotação mais marcada em cada um de nós.

Iemanjá, carrega consigo principalmente o título de mãe sensível e austera e divide com sua filha Oxum as características maternas.

No entanto, à Oxum cabe a fertilidade e a Iemanjá o sustento materno, sendo assim representada no corpo feminino principalmente nos seios, ela passa a ser dona das cabeças assim que todos nós nascemos, e assim como se apresenta em todas as mulheres, ou qualquer indivíduo que exerça a maternagem, ela – a persona de mãe-  vem com tudo, suprimindo outros complexos que anteriormente inclusive dominavam esta psique. Podemos observar na vida e na clínica que muitas vezes essas pessoas vêm justamente para terapia para reaprenderem a ter uma vida para além da maternidade.

Dessa forma, podemos observar que arquetipicamente a imagem de Iemanjá fala sobre uma possessividade, liderança e um esforço sobre humano para cuidar do outro, mesmo em detrimento de si próprio, talvez essa seja justamente a potência do Complexo Materno e seu impulso para o Processo de Individuação, no entanto, como toda jornada heroica, se faz necessário que este indivíduo retorne para si, pois quem não cuida de si não tem condições de cuidar do outro.

Nas narrativas míticas, em diferentes versões vemos Iemanjá abandonando a casa, o marido, o casamento e a si mesma em detrimento de um cuidado absoluto e, por vezes, excessivo de seus filhos.

Vemos ainda, em outras narrativas, ela percebendo esta dinâmica e se retirando, vezes para o fundo do mar, outras vezes para outros reinos, mas, destaca-se sempre sua força, liderança e uma forte característica de não ceder as influências externas da vida o tempo todo.

Numa ampliação simbólica, vemos que na análise de nossos clientes e na nossa, independente do que está sendo trabalhado, o indivíduo sempre terá que retornar para si e exercer a sua auto maternagem, a fim de se recompor e completar o processo alquímico que está elaborando, parece que a figura materna, ou Iemanjá que nos habita, sempre que se faz presente “organiza” a cabeça ou a consciência e quiçá o inconsciente do indivíduo, de forma que ele sai da crise e volta pro seu chamado de alma.

Temos ainda dentro da mitologia desta deusa um episódio de abuso, trazendo além da possibilidade de trabalhar de forma mítica os abusos diversos que todos nós sofremos, penso ainda, que a mitologia ao contemplar este assunto, mostra como dentro de cada Psique, talvez tentando justamento suprimir esse processo tão necessário da mãe interna, o abusador dentro de nós a ataca, para tirar dali a energia e diminuir a potência e a capacidade do indivíduo de se curar.

Neste mito do abuso, contamos ainda com uma versão afro-brasileira do mito de Édipo, com seu inevitável incesto, onde podemos entender este episódio como o retorno do ego ao inconsciente, para que este último possa ampliar a consciência e caminhar em seu Processo de Individuação. (ZACHARIAS,1998, p.190)

Este processo de descida ao inconsciente e resgate de elementos importantes para a ampliação do ego, fala de um retorno da mãe não de cunho erótico, pois devemos nos lembrar que toda a narrativa mítica é simbólica e nunca literal, neste caso trata-se da vontade de retornar para o ventre materno, uma saudade do paraíso urobórico, esse que é perdido com o nascimento da consciência, mas que ocasionalmente nos visita a todos no decorrer de nossas vidas.

Nas palavras do próprio Jesus dentro da mitologia cristã, não podemos obter essa salvação se não nascermos de novo, de forma que Nicodemos pergunta a Jesus: como podemos voltar ao ventre de nossa mãe já sendo velhos?

Neste episódio Jesus explica que todos devemos nascer da água e do espírito, estas são referências ao novo nascimento, talvez não material, mas espiritual, assim como a história de Édipo ou de Orungã, o irmão com o qual Iemanjá teria tido um filho. Não seria esse nascimento tão necessário que todos nós e nossos clientes buscamos ao procurar um processo de terapia, afinal seja o terapeuta homem ou mulher, o cliente sempre fará uma projeção de um cuidador, seremos sempre o receptáculo de uma transferência e devolveremos na contratransferência esta imagem de alguém sob o qual o indivíduo projetará a mãe ou o pai interno, podendo posteriormente desenvolver o seu próprio curador, a sua auto maternagem, ou até quem sabe, chegar naquilo que entende como cura.

Mas, como dissemos anteriormente neste texto, essa orixá carrega em si vários outros aspectos para além da mãe, ela pode se transformar numa mãe abusiva, devoradora, ou até a perigosa deusa do mar que devora os incautos, vemos isso num cântico sagrado que diz:

Iemanjá, é rainha das ondas e sereia do mar.

Como é belo o canto de iemanjá,

faz até o pescador chorar!

Quem escuta a mãe d’água cantar,

vai com ela pro fundo do mar!

Neste canto podemos observar este outro aspecto da mãe, que se excedendo na experiência e na unilateralização deste papel e deste complexo, pode ser tomada e, vendo o seu filho, ou quem faz este papel, como sua propriedade, assim como podemos perceber em outros mitos da grande mãe, como por exemplo Deméter, que ao perder sua filha abandona toda a sua vida bem como suas responsabilidades, mostrando para nós tanto a potência como outras possibilidade deste complexo, retira a identidade do filho/filha  reduzindo-os a uma experiência simbólica e imaginal através de suas vidas.

A partir deste cântico podemos observar também uma outra dinâmica muito presente em nossas clínicas, que é a necessidade das pessoas, em determinado momento completarem o seu ciclo de desenvolvimento, que assim como a palavra nos convida a refletir se trata de sair dos envolvimentos. Deste modo, ao chegar na vida adulta todos os indivíduos deviam se desvincular da mãe, afinal como muitos autores trabalham, mãe boa é aquela que sabe se tornar desnecessária, permitindo assim que o fruto de sua criação seja livre bem como ela mesma também se liberte e volte para o sua vida, talvez aí falemos do retorno do mito da heroína.

Podemos concluir então que Iemanjá se configura como uma expressão do Complexo da grande mãe. De todo modo, apesar dessa possível compreensão entendo que é um erro atribuir somente os aspectos numinosos ou sombrios da grande mãe para Iemanjá, afinal, o sistema dos orixás e a mitologia cristã , que ainda são predominantes em nossa cultura, são dois sistemas diferentes, que ao fazermos a aproximação devemos ter certos cuidados. Dentro da filosofia africana não há separação entre o que é sagrado e profano, logo, tudo é sagrado.

Entende-se que mesmo os conteúdos ditos como negativos, carregam em si potenciais.

Essa é a mesma visão que Jung dá para sua teoria a respeito da ampliação da consciência, através do conhecimento de nossa sombra, afinal na sombra até existe o mal, mas ela por si só tem também muitos tesouros a serem conhecidos e explorados, vemos ainda que muitas vezes aquilo que interpretamos como sendo mal, é justamente o que precisamos ressignificar a fim de nos tornarmos mais completos.

Talvez essa seja a principal lição que a imagem arquetípica de Iemanjá nos mostra, porque mesmo com esse potencial imenso no campo da mãe, ela é uma das únicas deusas a carregar esta alcunha de grande mãe, sem perder suas características femininas, sendo sempre retratada como possuidora de desejos, vontades e inclusive um corpo muito sinuoso, mostrando assim, mesmo através de sua imagem, o conflito entre o ego que enfrenta seus medos e os perigos que esta jornada oferece,  oferecendo recursos para nossa luta contra a indiferenciação, afinal, a própria sinuosidade das águas bem como do corpo de Iemanjá, mostra os caminhos tortuosos que devemos percorrer dentro de nós mesmos.

Quem sabe após percorrermos os mitos e os ensinamentos de Iemanjá, alcançaremos ganhos de consciência muito importantes, oferecendo significado para a nossa vida e a realização para nossos conteúdos inconscientes. Afinal, a figura da grande mãe sempre foi e continuará sendo a fonte da vida, assim como o mar é considerado a fonte da vida biológica, e o inconsciente é a fonte da vida psíquica.

Enfrentar essa jornada heroica, trazendo inclusive a sedução que Iemanjá canta a respeito do seu aspecto sereia, constitui um importante resgate de conteúdos inconscientes que os mitos dela nos ensinam através de suas metáforas.

Boa Viagem aos mitos de Iemanjá e a possibilidade dos ensinamentos que a profundeza que há dentro de você por certo lhe trará.

Ms. Natalhe Vieni- Analista Didata em formação do IJEP

Dra. E. Simone Magaldi- Analista Didata e Fundadora do IJEP

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Matrículas abertas: www.ijep.com.br

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