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O elemento fogo e a função intuição: energia psíquica curativa ou destrutiva

Desde cedo aprendemos que com o fogo não se brinca, simbolizando que não podemos tratar descuidadamente de coisas perigosas. Onde há fumaça há fogo, frase usada para falar de alguma coisa misteriosa que está acontecendo. Quantas vezes deixamos o circo pegar fogo e nos deleitamos ao ver desenrolar-se uma situação de conflito. E no calor do momento, com as emoções intensas, usamos expressões de linguagem que representam diferentes olhares sobre o fogo, metaforicamente representando impulso, desejo, criatividade, paixão e agressividade, como possiblidade de transformação, em forma de cura ou de destruição.

Diante de tantos significados, podemos realizar ampliações sobre os simbolismos do fogo, trazendo Jung (1986), que em seu livro Símbolos da Transformação evidenciou a preparação do fogo como algo existente em todo o mundo, em todos os tempos e que foi perdendo seu mistério aos poucos, porém seu uso continua ocorrendo, envolvendo cerimônias, ritos e mistérios. Em Tipos Psicológicos, Jung descreveu a função intuição, como uma dos quatro instrumentos judicativos da consciência, associado ao elemento fogo e ao movimento, podendo ser compreendida como a faculdade ou ato de perceber, discernir ou pressentir coisas, independente de raciocínio, de análise ou das aparências externas dos fatos. Segundo o autor, “A Intuição é uma percepção imediata de certas relações que não podem ser constatadas pelas outras três funções no momento da orientação” (Jung, 1986, p.69). É formada por imagens simbólicas e conceitos não abstraídos, que não são fáceis de serem traduzidos em palavras.        

Quando adentramos na história da humanidade, percebemos percursos em muitos caminhos para a compreensão do fogo. Em culturas antigas, representava um rito sagrado, que envolvia sacrifício aos deuses. A transformação em fumaça permitia o alcance das regiões superiores e cooperação com os deuses. Nas tradições indígenas, acender uma fogueira significava felicidade e prosperidade, representando o próprio sol, que era chamado de O Grande Fogo. Os antigos costumavam se reunir ao redor do fogo da lareira para contar histórias. Ainda hoje se cultuam rituais em torno de fogueiras, lareiras e fogões a lenha. O fogo de uma lareira, dentro de um ambiente caseiro, é aconchegante e inspirador, aquecendo o ambiente e a alma dos amantes. Lidar com o fogo tem um encanto e uma força ameaçadora, principalmente com a intervenção na natureza com queimadas de florestas.

Na mitologia grega (Brandão,1986), Héstia é a deusa do fogo sagrado, relacionada com a chama das lareiras que aquecem os lares e os templos, que foi muito respeitada pelos deuses e os mortais. É filha de Cronos e Reia, uma das doze divindades olímpicas, e irmã mais velha de Demeter, Hera, Zeus, Poseidon, Hades. Ela simboliza o ponto de equilíbrio interno com momentos de solitude, ensina-nos a olhar para dentro e entrar em contato com os nossos valores para alcançar a harmonia, remetendo-nos ao Self. A tocha olímpica, que surgiu na Grécia Antiga, tem como objetivo levar o fogo para diferentes nações e representa simbolicamente esse espírito da paz representado por Héstia. Ao mesmo tempo, evoca o mito de Prometeu, que roubou o fogo de Zeus para entregar aos mortais e foi castigado por isso.

O elemento fogo constitui uma energia criadora e, segundo Tresidder, possui um vasto sentido simbólico: “Encontra-se o fogo significando a purificação, a revelação, a transformação, a regeneração e o ardor espiritual ou sexual” (2000, p.106).  O fogo também tem uma simbologia relacionada à sexualidade. Negar fogo e ser fogo de palha são queixas constantes. O fogo é o representante das paixões, das fortes emoções, do desejo, da libido, revelando também um sofrimento, como cantam Zezé Di Camargo e Luciano: “A ferro e fogo não dá, com tanta indiferença, vendo a vida passar, tropeços e tropeços, pedras no meu caminho…”.  O fogo também pode ser um paradoxo, além de ser extremamente intenso e destrutivo, ele possui em si a fragilidade: ele acaba, mas também acaba com as coisas por onde passa. Ainda sobre o fogo e o amor, Luís de Camões trouxe o paradoxo “Amor é fogo que arde sem se ver”, provocando questionamentos. François La Rochefoucauld, por sua vez, evidenciou a importância de alimentar o amor: “O amor é como fogo: para que dure é preciso alimentá-lo”. Por último, Domenico Modugno, retrata com palavras os sentimentos verdadeiros: “A distância é como o vento, acende os fogos grandes e apaga os pequenos”.

De um modo geral, nos livros de História o fogo aparece como ato de expurgar o mal, com a Santa Inquisição e sua caça às bruxas. De forma idêntica, os contos de fada nos trazem histórias de bruxas com seus caldeirões e seus fornos, que evidenciam o perigo do fogo.  João e Maria (Grimm, 2002), é uma história no imaginário infantil, que envolve o desamparo diante do desconhecido, a força interior para vencer o mal e a coragem se livrar do calor do forno, libertando-se também da bruxa. Em contrapartida, vivenciamos desde cedo o valor do fogo no preparo de alimentos, porém “pôr fogo na canjica” não envolve um ato de cozinhar. É uma expressão de linguagem que representa agitação, confusão ou ficar animado, com muita energia. 

Ao mergulharmos em diferentes crenças, que são inúmeras, deparamo-nos com o Budismo, em que o fogo pode representar a iluminação. Segundo o I Ching, o fogo pode representar as paixões, o espírito ou o conhecimento intuitivo. Os taoístas entram no fogo para libertar-se do condicionamento humano e fazem isso sem se queimarem. Enquanto isso, pôr a mão no fogo, expressão da qual os incorruptíveis saem vencedores, para nós muitas vezes é algo difícil de realizar. Para os cristãos, na busca de Deus, em momentos de louvor e oração, algumas sensações podem ser vivenciadas e manifestadas pelo calor no coração, assim como algumas passagens bíblicas retratam o poder de Deus se manifestando em fogo. No sentido figurativo, podemos citar uma passagem sobre o julgamento em 1 Coríntios 3:13: “Manifesta se tornará a obra de cada um; pois o dia a demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada um o próprio fogo o provará”. O fogo pode simbolizar a destruição ou a purificação, que envolve o ato de derreter, de esterilizar ou de moldar. Na liturgia católica o fogo novo é celebrado na noite de Páscoa, como simbolismo da regeneração e penitência. Algumas religiões trazem reflexões sobre o fogo do inferno, enaltecendo a necessidade do calor humano em forma de solidariedade coletiva. Neste sentido, Jung trouxe a reflexão: “O que pensais da natureza do inferno? O inferno é quando a profundeza chega a vós com tudo o que não mais ou ainda não dominais” (2016, p. 153).

Ritos de purificação pelo fogo também são utilizados em crematórios como ritos de passagem entre o mundo dos vivos e dos mortos. O fogo queima, devora, consome, destrói, reduz às cinzas e está em constante movimento e evolução. Ele pode causar sufocamento com sua fumaça em incêndios, nas paixões, nos castigos e nas guerras.  De acordo com Bachelard, aquilo “que se modifica lentamente se explica através da vida, o que se modifica depressa é explicado pelo fogo” (1972, p. 21). Labaredas e fumaça, podem causar queimaduras, que sob o olhar da psicossomática podem revelar raiva expressa no corpo. Em estudos e estatísticas, percebem-se crescentes queimaduras e mortes por asfixiamento, acidentais ou provocadas, envolvendo desespero, culpa, drogadição, alcoolismo, surtos psicóticos e maníacos. Ao mesmo tempo que o fogo faz lembrar de lazer e da gastronomia, acendendo o fogo das churrasqueiras e dos fogões, muitos acidentes são causados. Em alguns casos aparece o fogo posto, que simboliza o incêndio criminoso, provocado intencionalmente, resultando em destruição.      

Segundo diferentes estudos da astrologia, os signos com o elemento fogo são Áries, Leão e Sagitário, que seguem seus objetivos com confiança e energia, mobilizados pelo calor, intensidade, iniciativa, impulsividade, liderança, competição, coragem e independência. Áries tem impulsos para fazer começos e sair dos estados de inércia. Leão demarca território, tem necessidade de controle e vai ao palco. Sagitário apresenta facilidade de mudança e adaptações. Não são necessariamente características determinantes no ser humano, mas podem ser exploradas como potenciais, iluminando o lado sombrio para o alcance da harmonia. 

Na alquimia, o elemento fogo é representado por um triangulo apontando para cima (∆). As substâncias enxofre, mercúrio e sal são a base da prima materia e podem ser separadas por meio do fogo. Neste contexto, Jung (1994) descreve as sete operações que envolvem o processo alquímico. Em termos gerais, a calcinatio é uma delas, compreendida como a operação que pertence ao fogo e, nesse processo ocorre o aquecimento de um sólido, com o objetivo de volatizá-lo e transformá-lo em pó. É um processo de secagem, que envolve o aquecimento e retirada da água. O fogo é purgador e atua sobre a nigredo, tornando-a branca e evaporando as emoções que não servem mais. Edinger (2006), fala sobre essa dura transformação, que no sentido simbólico envolve muito suor. 

Para ampliar, a partir da leitura de autores junguianos, pode-se afirmar que o vaso alquímico é o lugar onde é colocada a prima matéria para ser transformada e envolve a arte de controlar o fogo.  Os alquimistas o denominavam de crisol, lugar onde se produz crise para encontrar a pedra filosofal, cujo processo de transformação ocorria nos laboratórios. A partir das ideias dos alquimistas e trazendo para a realidade do consultório, o vaso psicoterapêutico é construído dentro da relação entre cliente e psicoterapeuta. Ambos entram no vaso e ambos saem transformados, como enaltece Jung: “Ninguém mexe com o fogo ou veneno sem ser atingido em algum ponto vulnerável.” (1991, p. 19). Neste contexto, três sentimentos são construídos: valorização, pertencimento e segurança. O vínculo produz movimento de energia psíquica para transformar a angústia e o sofrimento, promovendo evolução no processo de desenvolvimento. Simbolicamente, o fogo é energia psíquica liberada gradativamente e é pelo fogo que os complexos são transformados.

Alquimistas e psicoterapeutas precisam ter fogo próprio e dosar a arte do fogo para realizar as transformações necessárias. De forma metafórica, Rubem Alves complementou: “O analista precisa ter fogo próprio para poder atiçar o fogo do outro” (2010, p.21). A psicoterapia pressupõe ressignificações e é isso que o cliente busca quando procura um psicoterapeuta. Ele representa alguém que auxilia no processo de modificar velhos padrões para deixar o novo entrar, favorecendo melhorias significativas, que vem ao encontro de mais uma frase de Rubem Alves: “Somente os corpos gastos pelo fogo podem se tornar transparentes” (2010, p.45). Complemento a reflexão e culmino minhas ampliações, com o olhar de Jung (2008), que há muito tempo evidenciou a possibilidade de experimentarmos o fogo no plano espiritual, a partir da transformação simbólica que ocorre na operação calcinatio, momento em que o elemento fogo e a função intuição podem resultar em energia psíquica curativa ou destrutiva, a partir de nossas escolhas. 

Claci Maria Strieder, analista em formação pelo IJEP.

Brasília/DF –  Contato: (61) 99951.0003 – clacims@gmail.com

Leituras de apoio:

ALVES, R. As melhores crônicas de Rubem Alves, São Paulo: Ed. Papirus, 2010 http://www.rubemalves.com.br

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do Fogo. Lisboa: Estúdios, 1972. 

BRANDÃO, J. – Mitologia Grega Vol. 1, Petrópolis: Vozes, 1986.

CAMÕESLuís Vaz de, 200 sonetos. L&PM, 2014. 

EDINGER, E. Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 2006.

GRIMM, Irmãos. Contos de Fada. São Paulo: Iluminuras, 2002. 

https://www.educabras.com/frases/pormenor/frases_la_rochefoucauld

https://dicionariocriativo.com.br/citacoes/frase de Domenico Modugno.

JUNG, C.G.  A Natureza da Psique. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 2013.

__________ Estudos Alquímicos.  Rio de Janeiro: Ed.Vozes, 1991.

__________ O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

__________ O Livro Vermelho – Liber Novus: edição sem ilustrações. 2ª Reimpressão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016. 

__________ Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 1994. 

__________ Símbolos da Transformação. Petrópolis: Vozes, 1986.

__________ Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1986.

TRESIDDER, Jack. Os Símbolos e os Seus Significados. Lisboa: Estampa, 2000.

Claci Maria Strieder 

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