É que a morte tamém é uma terrível brutalidade – nenhum engodo é possível! – não apenas enquanto acontecimento físico, mas ainda mais como um acontecimento psíquico: um ser humano é arrancado da vida e o que permanece é um silêncio mortal e gelado. Não há mais esperança de estabelecer qualquer relação: todas as pontes estão cortadas.” – Carl Gustav Jung
O luto é um processo que, automaticamente, se inicia após a perda; é um conjunto de sentimentos de pesar ou dor que experimentamos na presença da morte do outro. É no momento da perda que a inevitabilidade da morte é experimentada. Sem lugar para a morte, a experiência do luto também tende a ser negada. Assim, reconhecer e compreender os sentimentos e os sintomas de um processo de enlutamento tornou-se algo bastante complexo.
A morte tem uma história e nem sempre o ser humano manteve a mesma atitude perante este fato de sua existência. O historiador Phillipe Ariès (1977), em seu trabalho sobre as diferentes significações da morte desde a Idade Média, demonstra claramente as diferentes atitudes do ser humano perante a morte e o morrer. Mas, nessas diversas atitudes, o imaginário humano sobre a morte inclui a ideia de um além da vida. Lidar com este além é uma forma de lidar com a presença da morte na existência. Finalmente, observa-se o início do distanciamento da morte, justamente pela chegada de uma percepção da finitude, iluminada pela razão, como algo cada vez mais concreto.
Hoje, os cultos e ritos que nos auxiliavam frente à morte perderam o sentido. Entregamos o nosso terror aos médicos e hospitais, e neles projetamos nosso desejo interno de onipotência e controle da morte e, ao mesmo tempo, onde vivemos toda a nossa impotência e falta de controle sobre a vida.
Estamos negando a morte, mas sabemos que culturalmente somos impelidos a integrá-la de alguma forma mediante o universo simbólico (rituais, mitos, símbolos, entre outros). A morte é assimilada como um fracasso, algo que precisa ser banido de nossa história. Mas, o sofrimento mobiliza a ação do inconsciente, possibilitando a reorganização da personalidade. Negamos a morte e algo dentro de nós parece nos empurrar para uma busca de sentido cada vez maior.
Cada vez mais, não há lugar para a morte nos grandes centros, não há sinais da sua presença na vida cotidiana. A morte encontra-se na sombra, reprimida no inconsciente como uma “mãe terrível”.
A “mãe terrível”, também chamada de dragão-mãe, mãe-sarcófago, a devoradora de carne humana, ou Matuta, mãe dos mortos, a deusa da morte, é um tema, segundo Jung, muito encontrado na mitologia pelo mundo todo. É um monstro que absorve a criança, sugando-a novamente depois de tê-la feito nascer, vive a espera, de boca escancarada, nos Mares do Ocidente e, quando um homem se aproxima, ela se fecha sobre ele, e é o fim. (Cf. JUNG, 1997, p.104).
Uma das pioneiras nesta percepção da negação da morte e dos desdobramentos que esta atitude acarreta tanto na dignidade daquele que está diante da morte, como para quem o acompanha, foi a psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross. A autora apresenta um breve resumo da vivência da dor e da doença terminal em um hospital, e reflete sobre o fato de estarmos, com este comportamento, rejeitando a morte e nos tornando menos humanos, como uma defesa psíquica. Para a autora, o paciente tem diferentes reações sobre o seu estado, que ela separou didaticamente em fases: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Essas fases também seriam vivenciadas pelos familiares deste paciente e, em todos os estágios, a única coisa que sempre persiste é a esperança. Uma esperança que está presente mesmo naquele mais conformado. A possibilidade de uma cura é sempre considerada por todos. Na realidade, enquanto há vida, há quem espere.
A importância dos trabalhos de Kubler-Ross (1969) é inegável, mas se dirigirmos nosso olhar para a esfera religiosa, encontraremos uma grande sabedoria sobre a psicologia da condição humana que se sabe finita. Só para citar alguns exemplos, temos os conhecidos “Tratados sobre a morte” encontrados nas mais diversas tradições, até mesmo nas primitivas, a saber: o Livro Egípcio dos Mortos; na tradição cristã, durante a Idade Média, o Ars Moriendi, onde o moribundo enfrenta em sua agonia a visita do anjo de luz e do anjo das trevas; na tradição budista, o mais conhecido é o Bardo Thodol, o livro tibetano dos mortos, onde também há a presença das divindades enfurecidas e benevolentes. Nesses tratados já podem ser observados as diversas fases do processo de agonia, porém com a seguinte diferença: a presença de uma tensão que sugere que o indivíduo está em luta com um lado e possui também, dentro de si, a capacidade de superar.
Podemos passar a vida inteira acreditando na nossa imortalidade e sermos surpreendidos pela morte quando esta chegar, mas podemos ser incomodados pela angústia, por um vazio interior, que cobra a reflexão sobre este outro lado da vida, pela busca de um sentido para estarmos aqui. A perda de alguém que amamos, cujo vínculo dava sentido à nossa vida e cuja ausência provoca uma intensa dor, retira a morte da sombra, torna concreto o limite da vida, reclama um lugar para a morte.
Aceitar o real nem sempre é fácil, principalmente quando a realidade pede que se aceite a perda daquele que amamos. Em um processo complexo, o luto pede esta aceitação da realidade para viabilizar sua elaboração, resignificando o conceito de amor. Uma intensa jornada se inicia, é necessário o desapego daquele que a morte retirou do convívio. O psiquiatra britânico Colin M. Parkes (1998) define como traços característicos dos processos de luto a procura, o alívio, a raiva e a culpa.
O traço mais característico do luto são os episódios agudos de dor, com muita ansiedade. Para Parkes, esta dor provoca a urgência em procurar o objeto perdido, como um chamado, que é expresso na maioria das vezes pelo ato de chorar. A procura, mesmo quando há consciência de que é uma procura sem sentido, pois o outro está morto, é um impulso forte após uma perda. E acrescenta:
Os que procuram têm em sua mente um retrato do objeto perdido. À medida que se aproximam de um possível local para encontrar, as sensações advindas desse local combinam-se com o retrato. Quando se ajustam, mesmo que só́ por aproximação, o objeto visto é ‘reconhecido’, a atenção é colocada nele, e maiores evidências são buscadas para confirmar a impressão inicial. ( PARKES, 1998, p. 69)
Aquele que amamos aparece claramente diante de nossos olhos. Estas imagens são tão nítidas que, embora sejam consideradas reações normais de luto, é necessário muitas vezes assegurar ao indivíduo que ele está dentro de uma normalidade. E não raro visões, sensações de presença, vozes ou mesmo sonhos são interpretados como a volta do morto. Todas essas experiências expressam a força do apego; dos hábitos cotidianos, daqueles comportamentos do dia-a-dia que existiam a partir da relação com o outro, como por exemplo, arrumar a mesa para dois. A ausência revela o poder que a presença continha.
A procura continua intensa mesmo quando os resultados são frustrantes. A sensação, ou a impressão de que a pessoa perdida está por perto, é reconfortante para o enlutado. Mas, logo a realidade se faz presente e o comportamento de procura continua. Neste sentido, procurar e encontrar andam juntos, não simultaneamente, mas alternadamente. E, no meio de tudo isso, a dura realidade da perda se torna concreta, mas nasce também a certeza de que há algo maior que nos constitui. Para muitos, é onde nasce ou se fortalece a fé.
A dor da perda nos é tão forte que uma das primeiras reações é a descrença do ocorrido; a negação da morte é muito comum neste momento e recebe o nome de entorpecimento. Em geral, este entorpecimento só́ tem fim com a visão do corpo ou algo que concretize a morte ocorrida. E não raro evitamos esse momento, como a desculpa de que é muito mórbido ou algo similar. Mas nossa psique precisa da concretude da finitude expressa no corpo estático. Se assim não fosse, como entenderíamos a necessidade de resgate de corpos de tragédias, mesmo quando o feito implica em grandes dificuldades e gastos expressivos. Não só precisamos garantir a dignidade de enterrar nosso ente querido, algo sagrado e de alto valor moral desde os gregos, mas também integrar a perda daquele que amamos e de que teremos que recolocar em nossa vida de um outra forma.
Mas, a existência é formada de polaridades, e é justamente na tensão destas que nossa vida acontece. Exatamente por isso, pensar na perda também é uma forma de amenizar a dor vivenciada. Sempre afirmo que não há modo certo de elaborar todas as questões que envolvem o luto. Sim, não pensar na perda, em uma doença grave, no envelhecimento ou agonia de um ente querido é uma defesa, e talvez a mais comum hoje. Aliás, como todas as defesas, essa também possui uma função, pois a negação da perda oferece a oportunidade de se preparar para continuar vivendo sem o outro. A grande questão é que a negação nos permite nos preparar para enfrentar a perda, mas também nos fornece um excelente esconderijo – uma zona de conforto.
A perda de um ente querido provoca uma série de transformações que o sobrevivente não escolheu enfrentar e, não raro, observamos episódios de raiva, ou uma irritação generalizada, uma amargura, tal como os comportamentos encontrados em situação de estresse. É como se o enlutado estivesse reagindo a uma situação de perigo iminente que, na verdade, é o perigo da perda de si mesmo. E, de fato, parte de si, pelo menos a parte que ele era com o outro, está morrendo e, muito provavelmente, só se manifestará na lembrança e, ao mesmo tempo, um lado até então desconhecido emerge, um lado nem sempre desejado ou admirável. Ao acompanhar viúvos ou viúvas em seu processo de luto, por exemplo, não raro assisto um indivíduo surpreendido por se descobrir frágil e sem direção, quando todos, incluindo ele próprio, reconheciam nele a força e a determinação da relação e até mesmo da família. E mais, a família não deseja aceitar o sobrevivente nesse novo formato, pois nem mesmo gostaria de encarar que o vivido até então não existe mais, assim como a não presença de um integrante da família e, provavelmente, que uma tarefa será solicitada à família ou a outro parente que, desconhecendo aquela configuração, resiste ao novo tanto como resiste à morte do velho. A inevitabilidade da morte carrega a inevitabilidade de continuar a vida sem o outro e o enlutado vive em uma situação limiar, que é uma fase de transição onde, no final, ele precisará se reconhecer vivo sem o outro a quem estava vinculado.
O luto provoca uma reação em cadeia, nossa alma é afetada pela dor e se desorganiza com a perda. Há um enlutado mais próximo que exige a atenção e, geralmente, é o eleito dos cuidados e das reclamações para camuflar a dor de todos os envolvidos. Um novo tempo se inicia e se torna inevitável que o passado se afirme quebrando todos os laços que o velho tempo construiu.
Para além da raiva, da irritação, das resistências naturais desse momento, a culpa é um dos sentimentos que não tarda a emergir diante da morte. Em nosso entendimento inconsciente, a morte só́ pode ser causada e a reação natural é que busquemos um responsável pelo sofrimento e que, portanto, será́ o culpado. O enlutado culpa a si mesmo, ao morto, ao médico; algo precisa explicar o ocorrido: a morte é um fato importante e para o qual não temos controle, somos impotentes frente a ela e, portanto, é natural que busquemos um sentido ou, até́ mesmo, uma explicação para o seu acontecimento. Buscar um culpado, acusar-se a si mesmo, brigar com Deus ou com o destino são formas de retomar um mínimo de controle na situação. E é nessa briga que nos encontramos quando Eros está diante de Thanatos e, sem saber o que somos, de onde viemos e para onde vamos, nos indagamos sobre quando, onde e como saberemos o que o morrer nos reserva. Por ora sabemos que a vida se torna mais rica, pois a morte do outro é um convite para uma nova forma de viver. É um mistério que nos fascina e nos entrega à autêntica existência.
Marie-Louise von Franz diz que refletir sobre essas questões nos leva para “alguns breves momentos numa terra totalmente desconhecida, da qual quase sempre estamos separados pela neblina, enquanto ainda vivemos nesse corpo; contudo, de vez em quando, vislumbramos dela paisagens surpreendentes” (FRANZ, 1995, p.109). Para a autora, esses momentos comprovam o que Jung chamou de preparação para a morte contido no processo de individuação. A partir da análise de sonhos, Jung nos mostra que a psique inconsciente ignora a morte como sendo um fim, pois os sonhos costumam ocorrer como sempre, tendo como meta o processo de individuação. Acrescenta, ainda a autora, que a única situação em que o inconsciente não ignora a morte é quando o sonhador resiste à possibilidade do fim iminente, forjando situações ilusórias para si mesmo. Esta última colocação somente confirma o fato que o inconsciente ignora a morte pois, ao respeitar o processo de individuação, a vida deve ser expressa em sua totalidade. E mais, de que a morte “não significa um fim, mas uma singular transformação que a razão não pode compreender” (Ibid.).
Em seu texto A alma e a morte (1934), Jung equipara a vida, em seu processo natural, ao percurso do sol. Em seu surgimento, ele cresce no horizonte e chega no seu pico ao meio-dia, passando a uma curva descendente até́ o final da tarde, quando morre. A vida humana teria este mesmo caminho: crescimento, expansão e amadurecimento. Na metade da vida, obrigatoriamente, estaríamos nos dirigindo ao fim. A morte deveria ser nossa meta a partir desta fase e, por tal motivo, Jung coloca que só́ permanece realmente vivo quem estiver disposto a morrer com vida. E talvez esse seja o maior ensinamento do amor: poder suportar um silêncio sem resposta presente na perda, um silêncio, como diria Jung, que, em seu caso, só veio como resposta na forma de sonhos. Resposta que também encontrei em muitos de meus pacientes, um sonho ou um fato numinosamente surpreendente, que preenche o silêncio imposto no momento em que as pontes são cortadas, um vislumbre do que somos presente no enfrentamento da morte do outro, a certeza de que o mundo dos vivos e dos mortos formam um todo.
Autora: Dra.Maria Cristina Mariante Guarnieri
Referências:
ARIÈS, Philippe. O Homem perante a Morte I. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997.
______. O Homem perante a Morte II. Lisboa: Publicações Europa-América, 1997.
JAFFÉ, Aniela; FREY-ROHN, Lilia; FRANZ, Marie Louise von. A morte à luz da psicologia. SãoPaulo: Cultrix, 1995.
JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Petrópolis: Vozes, 1997.
_____. A alma e a morte. In: ______A natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1984.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 1969.
PARKES, Colin M. Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo: Summus, 1998.