O povo japonês é admirado por um lado pela sua disciplina, determinação e por muitos comportamentos que refletem um conceito de cidadania e uma preocupação com o outro que nos espantam. Quem não se lembra de como chamou a nossa atenção os torcedores japoneses recolhendo o lixo nos estádios nos jogos da copa do mundo realizado aqui no Brasil? E quem tiver a oportunidade de visitar esse país vai verificar que lá não se encontra nenhum lixo jogado no chão. Agora, na pandemia, também se falou muito como já estava incorporada na cultura desse povo o uso da máscara por alguém que está doente para evitar que outros de se infectassem. No transporte público há um silêncio predominante tanto porque as pessoas não conversam, mas também porque há avisos espalhados por todo o espaço para deixar o celular no modo silencioso durante a viagem, tudo isso para não incomodar os passageiros.
Por outro lado, existem outras situações que nos causam muita estranheza. Em um país com um povo e uma cultura tão virtuosos, a taxa de crescimento da população tem sido negativa, e isso ocorre pela dificuldade que as pessoas têm em se relacionar e, por consequência, namorar, casar e ter filhos. Considerando que lá há rapazes que pagam para serem abraçados e poderem deitar a cabeça no colo de jovens fantasiadas e, moças que trabalham em escritórios e contratam belos rapazes para irem até suas empresas para assistirem a um filme triste juntos, e eles secarem suas lágrimas com um lenço ou afagar seu rosto, tema de outro artigo que escrevi para o IJEP, “Amor e Sexo no Japão, uma sombra que ameaça o país do sol nascente”, podemos entender melhor a origem dos problemas de relacionamento dos japoneses..
O que vemos aqui é um povo muito adaptado aos padrões coletivos de comportamento cuja principal preocupação é o bem-estar do grupo, sendo que o indivíduo tem pouco ou nenhum espaço para se expressar, o que pela psicologia junguiana é fonte de muitas neuroses, que seriam as várias situações singulares que os japoneses vivenciam no que diz respeito a se expressarem individualmente e consequentemente com as relações.
Essas identificações com o papel social são fontes abundantes de neuroses. O homem jamais conseguirá desembaraçar-se de si mesmo, em benefício de uma personalidade artificial. A simples tentativa de fazê-lo desencadeia, em todos os casos habituais, reações inconscientes: caprichos, afetos, angústias, ideias obsessivas, fraquezas, vícios, etc. (JUNG, 2015, §307)
A esse papel social ao qual nos queremos adaptar individualmente, mas que nos leva a um padrão coletivo, Jung denominou de persona, e ainda segundo ele, quanto mais se está identificado com essa persona, mais se perde da individualidade (JUNG, 2015, pág. 172). No caso do povo japonês, conseguimos ver claramente o quanto eles se adequaram a essa persona em detrimento de suas expressões individuais e as neuroses decorrentes desse quadro.
Dentre esses fenômenos que nos chamam a atenção, há o “hikikomori“, termo que foi primeiramente definido por Tamaki Saito em 1998 em seu livro “Hikikomori, uma adolescência sem fim”, para se referir tanto ao fenômeno quanto às pessoas que vivem em total isolamento social por um longo período.
No prefácio da tradução de seu livro para o inglês, quatorze anos após a primeira publicação do seu livro, Saito (2013) traz algumas informações atualizadas sobre o assunto após ter se tornado um entendido em problemas psicológicos da juventude. O autor traz que, segundo números levantados pelo Gabinete de Governo Japonês, através de uma pesquisa feita em 2010 com 5000 pessoas entre 15 e 39 anos, estimou-se que o número de hikikomoris no Japão seria em torno de 700 mil, porém o autor acredita que a quantidade esteja subestimada devido ao grande sentimento de vergonha associado a esta condição. Para ele um número mais real seria em torno de um milhão de pessoas que estariam em isolamento em suas casas por 6 meses ou mais, sendo que ele cita casos extremos de pessoas que viveram mais de 20 anos nessa condição.
Outro ponto que o autor trouxe é que esse fenômeno passou a ser observado em outros países do mundo, citando a Coréia do Sul com 300 mil casos. Além da Coréia do Sul, foi constatada a ocorrência deste fenômeno em outros países como Austrália, Índia, Espanha, Canadá, EUA, França, Reino Unido, Itália e Portugal (Domingues-Castro, Torres, 2018, apud Torres, 2021, p. 197), o que reforça a fala de Saito (2013, p.6) de que a ideia de que “hikikomori deriva de uma patologia da sociedade japonesa é simplesmente um engano (…) parece ser muito mais plausível que a condição esteja associada a natureza da família e como os jovens lidam com a sociedade”.
Com relação ao entendimento do quadro de hikikomori, Saito participou de um grupo que pesquisou essa condição e, como resultado da pesquisa, foi apresentado que “hikikomoris poderiam ser diagnosticados com algum tipo de distúrbio psicológico”, mas ele não concordou com essa conclusão, em sua opinião os distúrbios psicológicos são um efeito secundário que vêm junto com o quadro, ou seja, é uma consequência do isolamento vivido por essas pessoas.
Neste artigo através do entendimento da psique pela perspectiva da psicologia junguiana, podemos entender a relação de uma característica própria da cultura japonesa não só com o hikikomori, mas, também, com os outros comportamentos dessa cultura que no chocam, e até mesmo com as qualidades que tanto admiramos aqui do outro lado do mundo. Apesar de à primeira vista parecer que isso vai contra a percepção de Saito, de que é um engano achar que o hikikomori é algo se origina da sociedade japonesa, o que iremos ver, a partir da perspectiva da psicologia analítica, é que a condição psíquica que gera esse sintoma é universal e pode ser vivida por qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo, e ao mesmo tempo características da cultura japonesa fornecem condições favoráveis ao surgimento do hkikomori.
No artigo “Quem são os hikikomori, os jovens japoneses que vivem sem sair de seus quartos” de Edd Gent para BBC, publicado em março de 2019, o professor de psiquiatria Takahiro Kato da Universidade de Kyushu e estudioso do tema diz que “No Japão há um ditado muito famoso que diz: que ‘O prego que se destaca leva martelada’ e que as rígidas normas sociais, as altas expectativas manifestadas pelos pais e a ‘cultura da vergonha’ fazem com que a sociedade japonesa seja terreno fértil para sentimentos de inadequação e o desejo de querer se esconder do mundo.” Para ele, esse aspecto da cultura japonesa pode tornar seus jovens mais pré-dispostos a viver isolados em casa quando não se veem em condições de atender às expectativas da sociedade, da família, etc.
O significado do ditado para os japoneses fica mais claro na declaração de um visitante do centro Yokayoka, da região de Fukuoka, mesma região da universidade de Kato, que oferece apoio aos hikikomoris: “A escola é uma monocultura, todo mundo tem que ter a mesma opinião. Se alguém diz algo (diferente/se destaca) está fora do grupo (leva martelada/é castigado)”.
Existe também a dificuldade de se encaixar no modelo de sucesso da sociedade japonesa, devido à estagnação econômica combinada com a globalização que traz o modelo ocidental mais individualista e competitivo do ocidente para um país que é tradicionalmente coletivista e hierárquico, diz o professor Kato.
O artigo da BBC também traz a ocorrência deste quadro em outros países, colocando em dúvida a relação do aspecto cultural japonês com o hikikomori.
Sob a perspectiva da psicologia junguiana, o prego que se destaca é aquele que não se adapta ao padrão coletivo da cultura japonesa, ou seja, não consegue agir de acordo com a persona que a cultura japonesa espera que ele assuma. No caso dos hikikomori, dada dificuldade de atingir as expectativas de sucesso da sociedade e da família japonesa, eles parecem estar vivendo literalmente a condição de exclusão, se isolando e assim ao invés de viverem de acordo com a persona da pessoa bem sucedida, que a sociedade espera e que dá orgulho a família, eles vivem o lado sombrio dessa figura, se recusam a enfrentar o mundo, a crescer, e viram uma vergonha e um fardo para família, vivendo uma adolescência sem fim, como definiu o autor Tamaki Saito.
Os hikikomori são tomados pelo lado infantil e melancólico que surge na psique para compensar o alto grau de exigência para se tornar o “homem forte” que existe na sociedade japonesa.
O “homem forte” no contexto social é, frequentemente, uma criança na “vida particular”, no tocante a seus estados de espírito. Sua disciplina pública (particularmente exigida dos outros) fraqueja lamentavelmente no lar e a “alegria profissional” que ostenta mostra em casa um rosto melancólico. (JUNG, 2015, §307)
De acordo com Jung, “A construção de uma persona coletivamente adequada significa uma considerável concessão ao mundo exterior, um verdadeiro auto sacrifício, que força o eu a identificar-se com a persona “. No caso do povo japonês, temos vários exemplos do quão longe esse auto sacrifício pode chegar. Como o caso dos kamikazes, que eram os pilotos de avião da bomba da 2ª Guerra Mundial, que se lançavam junto com seus aviões em ataques suicidas, para destruir o maior número possível de unidades inimigas e, também, para garantir que não seriam capturados o que seria uma desonra muito pior do que a própria morte. Outro fenômeno que podemos citar é o que acontece com os karoshis que são os trabalhadores que literalmente morrem de tanto trabalhar e o próprio suicídio em si, que no Japão era visto com uma forma honrosa de aliviar o peso da vergonha, que recai tanto sobre a pessoa e, mais ainda, sobre a família, quando alguém fracassa e não se atinge as expectativas da persona do japonês bem-sucedido.
Esse lado sombrio da persona do adulto japonês bem-sucedido é vivido como uma eterna adolescência, em que os jovens não lidam com o medo do abandono da Mãe e ficam presos a um complexo materno, segundo Hollis (2017, p. 15, apud Torres, 2021, p. 201). Encarar medo de abandonar a proteção materna faz parte da passagem para o mundo adulto, e segundo Jung:
“Não é bastante passar para a idade adulta e nem mesmo separar-se exteriormente da mãe; são celebradas consagrações como homem, particularmente impressionantes, e cerimônias de renascimento que efetivam plenamente o ato de separação da mãe (e, portanto, da infância) (JUNG, 2015, §314)
Assim, considerando o grau de exigência e pressão que existe para que os jovens japoneses se adéquem ao modelo do adulto bem sucedido, a cultura da vergonha e o sentimento exclusão que recai sobre os “pregos que se destacam”, sob a perspectiva da psicologia junguiana é possível relacionar esses aspectos específicos do modo de vida japonês com o fenômeno hikikomori, jovens presos ao complexo materno, tomados pelo lado infantil e sombrio da persona do adulto ideal para compensar a rigidez desse modelo.
Ao mesmo tempo, esse medo de abandonar a Mãe e partir para a vida adulta faz parte da vida de todos os jovens, e a falta dos ritos de passagem dos dias atuais pode tornar o processo bem mais difícil ou ele pode até não acontecer o que explicaria casos de hikikomori observados em outros países do mundo, dependendo de como se lida coma pressão existente para se atender a essas expectativas.
Como ajuda para tirar os hikikomori do seu isolamento, os japoneses criaram um serviço conhecido como irmãs de aluguel, que seriam moças que fazem o papel de irmãs mais velhas, que vão visitar os hikikomori em suas casas e tentam tirá-los do isolamento. Vale lembrar que na cultura japonesa os irmãos mais velhos têm status e autoridade muito próximos ao dos pais, ou seja, essa ajuda pode ser vista como se contratasse os serviços de uma figura próxima à da mãe em status, mas que fala com eles sem cobrança, sem pressão, respeitando os desejos deles. É como se fosse uma figura materna que vem do mundo externo e chama para esse outro lado, para se contrapor ao medo de se abandonar a mãe, o complexo materno, que os mantêm isolados em suas casas. No documentário “Rent-a-sister: Coaxing Japan’s hikikomori out of their rooms” (Alugue uma irmã: persuadindo hikikomori do Japão para fora de seus quartos) de Amelia Martyn-Hemphil feito para BBC World em janeiro de 2019, pode ser visto como esse serviço funciona e casos de sucesso das irmãs de aluguel.
Dulce Ayako Kurauti
Membro analista em formação pelo IJEP/SP
Didata E. Simone D. Magaldi
Bibliografia
GENT, E. Quem são os hikikomori, os jovens japoneses que vivem sem sair de seus quartos. BBC Future, Março 2019.
JUNG, C. G. O eu e o Inconsicente. 27a. ed. Petrópolis: Vozes, v. 7/2, 2015.
MARTYN-HEMPHIL, A. Rent-a-sister: Coaxing Japan’s hikikomori out of their rooms. BBC World, janeiro 2019.
SAITO, T. HIKIKOMORI – Adolescence without End. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.
TORRES, L. Comtágio Psíquico: A Loucura das Massas e suas Reverberações na Mídia. São Paulo: Eleva Cultural, 2021.