Resumo: Este artigo propõe uma reflexão sobre um sintoma marcante da contemporaneidade: a ausência de si e o medo de estar só. Exploraremos como a hiperconexão contribui para uma fuga em massa da própria companhia. A partir da Psicologia Analítica de C.G. Jung, percorremos esse percurso interior, investigando as emoções envolvidas nesse fenômeno, a distinção entre solidão e solitude, e a possibilidade de uma reconexão com o próprio eu.
Estamos constantemente conectados, isso é um fato. A todo momento, somos bombardeados por mensagens, notificações, lembretes, anúncios e uma infinidade de vídeos cada vez mais rápidos e apelativos.
Diante dessa avalanche de estímulos, surge a pergunta: estamos sós? Há, de fato, alguma conexão com o nosso mundo interno? Ou apenas nos distraímos de nós mesmos?
Cada vez mais, as demandas nos empurram para aquilo que é produtivo, visível e externo. O interessante está sempre na próxima imagem, na próxima mensagem como se perder algo fosse imperdoável. Essa dinâmica nos conduz, de forma sutil e trágica, a uma desconexão profunda de nós mesmos, abrindo espaço para um verdadeiro colapso emocional.
Basta saber que a alma humana é tanto individual quanto coletiva e que o seu crescimento só é possível se estes dois lados aparentemente contraditórios chegarem a uma cooperação natural. No âmbito da pura vida instintiva, tal conflito obviamente não existe, apesar de que a vida puramente corporal também tenha que satisfazer à exigência individual e à coletiva. (Jung, 2014, p.162)
Estar conectado a um aparelho que possibilita uma infinidade de formas de comunicação com pessoas, e grupos de pessoas, não é o mesmo que estar verdadeiramente conectado.
Acessar redes que, a todo momento, exibem um mundo fantasioso, onde parece possível conhecer alguém apenas pelo que posta, é uma ilusão. A verdadeira intimidade e conexão, a disponibilidade para conhecer o outro e trocar de forma genuína, estão se perdendo pelo caminho. A hiperconectividade tornou-se uma extensão da nossa rotina, e também uma verdadeira anestesia emocional.
Há, na atualidade, uma necessidade urgente de tomar consciência de que essa constante interação virtual não tem enriquecido as relações humanas. Em muitas situações, as conexões digitais mantêm os vínculos na superficialidade, e mais do que isso, reforçam a desconexão consigo mesmo. Esperas em consultórios, trajetos no transporte público, pausas no trabalho e até momentos à mesa durante as refeições tornaram-se ocasiões rapidamente preenchidas pelos estímulos vibrantes das telas.
Eu tenho que ser minha amiga, senão não aguento a solidão. Quando estou sozinha procuro não pensar porque tenho medo de repente pensar uma coisa nova demais para mim mesma. Falar alto sozinha e para “o quê” é dirigir-se ao mundo, é criar uma voz potente que consegue – consegue o quê? (Clarice, 2015)
Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano, argumenta que vivemos numa sociedade que rejeita o negativo, o vazio, a ausência, a pausa e idolatra o excesso de estímulo. Em A Sociedade do Cansaço, ele observa que a positividade do desempenho e da auto exposição nos leva à exaustão e ao esvaziamento de sentido. Nesse cenário, a solidão é vista não como um estado de intimidade consigo, mas como uma falha, uma ausência do outro que precisa ser urgentemente compensada.
Nessa dinâmica de conexão superficial, a interação com as próprias emoções torna-se cada vez mais difícil e inacessível.
Há uma relação clara: quanto maior a distração com o mundo externo, mais se evita a escuta do que pulsa por dentro. Quanto mais vozes e imagens externas nos cercam, mais nos afastamos de quem realmente somos, da nossa própria voz, das nossas imagens internas.
O contato com o mundo interno e suas diversas nuances, sensações, emoções, sentimentos e percepções, muitas vezes assusta, entristece, confronta e pode representar uma ameaça. Surge, então, uma inquietação, um desconforto, sintomas físicos e emocionais.
A presença interna surpreende e se torna indesejável quando o ruído do mundo silencia.
Esse fenômeno, ao mesmo tempo cultural e psíquico, revela uma intensa interação com um possível mundo ilusório, que fragiliza o indivíduo e enfraquece as possibilidades de uma existência mais íntegra, conectada com sua verdade e seus anseios mais profundos. Trata-se de uma vida sem alma, que dá origem a um meio desprovido da beleza do ser e que rompeu o vínculo com a interioridade.
Trazendo a luz a Psicologia Analítica, podemos mostrar o temor do silêncio em si e tudo que pode ser revelado deste encontro com si mesmo. Ao se afastar dos estímulos externos, somos confrontados com partes reprimidas e esquecidas do ser, suas sombras com seus traumas não elaborados, dores antigas, inseguranças e dúvidas existenciais.
Onde entra o excesso das telas como fuga, ocasionando um despreparo emocional, gerando uma hiper ocupação mental, um consumo desenfreado de conteúdo, dependência e um ativismo produtivo evitando qualquer espaço para pausa, o estar no momento presente. Com esse cenário evita-se o confronto, e o autoconhecimento.
Permitir-se sentir o medo de estar só revela uma ferida presente em muitas pessoas nos dias de hoje.
Ao abrir essa conexão com o próprio interior, podem emergir sintomas relacionados à depressão, à dificuldade de regular as próprias emoções, como a ansiedade, a tristeza profunda, o sentimento de abandono e a sensação de não pertencimento, mesmo em meio a frequentes interações sociais. Esses estados impactam diretamente a autoestima e a saúde mental.
A dificuldade de sustentar a própria presença, sem recorrer ao movimento frenético das redes sociais, pode ser bastante reveladora. Ela pode indicar a inabilidade de cultivar uma intimidade profunda consigo mesmo, talvez uma das grandes carências da vida contemporânea.
As redes podem ser, ao mesmo tempo, uma forma de fuga e uma tentativa de amenizar a solidão, oferecendo a sensação de companhia por meio de distrações, vídeos curtos, mensagens instantâneas, interações simultâneas com muitas pessoas. No entanto, nada substitui o contato olho no olho, as conversas ao redor da mesa, um passeio no parque, o exercício da presença pelos cinco sentidos, o estar inteiro em um momento de verdadeira solitude.
Mas como diferenciar a solitude da solidão?
A solidão é geralmente associada ao vazio, à tristeza, à ausência e ao abandono, trazendo consigo uma sensação de desamparo. Já a solitude revela o bem-estar de estar só, um momento de contemplação e introspecção. É a escolha de estar consigo mesmo, sem sofrimento emocional, permitindo um descanso da hiperconectividade.
Nesse estado de bem-estar emocional, proporcionado pelos momentos de solitude, aprofunda-se a relação com o autoconhecimento e a autonomia diante da vida. Surge mais clareza mental, criatividade e a possibilidade de abrir espaço para sentir e regular as emoções. Um espaço que silencia, nutre e acolhe.
Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas, nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite.
(Clarice Lispector, 1998)
Sustentar a própria presença no silêncio e na completude contraria a lógica da cultura hiperconectada. Estar em um espaço de solitude, muitas vezes, é interpretado como inatividade, isolamento ou até mesmo um fracasso social. Isso gera uma fuga para conexões superficiais, sobrecarga de tarefas e comparações constantes com as imagens exibidas nas telas, o que evidencia a dificuldade em lidar e sustentar as angústias de seguir um caminho diferente do esperado.
Assim, na presença do ser, não se exclui o desejo de estar com os outros, mas se prioriza um vínculo essencial: o relacionamento consigo mesmo. Nesse estado, permite-se o fluir da autenticidade, aquilo que atravessa o ser, que nos move e também nos fere, construindo um lugar interno que não depende da comparação nem da validação externa.
Cultivar a solitude é um gesto de coragem e cuidado. Significa abrir espaço para o silêncio, para o tédio criativo, para o tempo não preenchido e descobrir que há vida e sentido também ali. Nesse caminho, práticas como o diário reflexivo, a meditação, a contemplação da natureza, o retiro digital e a terapia tornam-se ferramentas preciosas para reconstruir a ponte entre nós e nós mesmos.
O caminho de volta para a casa interna é um convite à desconexão do ruído externo.
Nossa cultura revela um sintoma que, desde cedo, nos afasta da escuta interior. Cada vez mais precocemente, as crianças são expostas às telas e ensinadas a fugir do simples ato de ser, evitando a pausa, o vazio e o encontro com a própria alma e seus sussurros.
A busca pela liberdade interior é um processo lento e profundo. Confrontar-se com as inúmeras imagens e facilidades das distrações externas não é indolor mas é transformador. Enfrentar o desconforto inicial de sustentar o silêncio e adentrar a solitude exige coragem para lidar com os pensamentos e emoções que emergem. Sustentar essa presença consigo mesmo é um caminho essencial no processo de individuação.
Ao contrário do que se costuma temer, o encontro consigo mesmo não isola mas prepara-nos para estar melhor com os outros. Quem se conhece e se habita, relaciona-se com mais autenticidade e menos dependência. Quem faz as pazes com a própria sombra é capaz de reconhecer, com mais compaixão, as sombras alheias.
O silêncio pode ser uma preciosidade, e o medo dele e da solidão pode expor aquilo que podemos descobrir de nós mesmo quando paramos de correr.
Talvez silenciar, estar na presença pode trazer inúmeras possibilidades de uma verdadeira escuta.
Segundo pesquisa do DataReportal, o brasileiro passa, em média, 9 horas e 13 minutos por dia em frente às telas, o que nos coloca na segunda posição do ranking mundial. Além disso, somos o país mais ansioso do mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
O excesso de conexão virtual gera consequências como o aumento da ansiedade, a falta de concentração e a sensação de estar em dívida por não responder a uma mensagem, ou de estar desconectado do universo de imagens e estímulos das telas. Sem contar com a qualidade do sono e o contato com os sonhos.
O caminho para a atualidade é trazer consciência ao uso do mundo virtual e perceber que existe vida além das telas. É preciso observar os mecanismos de manipulação e sedução, e buscar equilíbrio com outras atividades, como ler um bom livro, refletir a partir de um filme, dedicar-se a práticas físicas, cultivar o contato com a natureza e aproveitar uma boa viagem. Também é essencial refletir sobre como estão as relações e as conexões verdadeiras com as pessoas ao nosso redor e consigo mesmo.
“Aproximar-nos-emos mais da verdade se pensarmos que nossa psique consciente e pessoal repousa sobre a ampla base de uma disposição psíquica herdade e universal, cuja natureza é inconsciente; a relação da psique pessoal com a psique coletiva corresponde, mais ou menos, à relação do indivíduo com a sociedade”.
(Jung, 2014, p.35)
Questionar o que se busca na internet também é um caminho importante para trazer consciência a esse uso. Muitas vezes, essa busca constante revela a dificuldade de sustentar o vazio e o tédio. Permanecer nesse lugar, sem fugir imediatamente, pode revelar as mudanças necessárias para uma vida com mais sentido.
O autoconhecimento e a percepção das fugas digitais podem nos conduzir a um universo incrível de possibilidades nas relações reais.
Comunicar-se com uma infinidade de pessoas por meio de mensagens levanta a pergunta: estamos sozinhos ou mal acompanhados? Estaríamos nos enganando quanto à presença? Seria tudo uma ilusão?
Muito embora a tomada de consciência da individualidade possa corresponder ao destino natural do ser humano, ela não é o fim último. Isso porque não é possível que o objetivo da educação do homem se reduza a produzir um conglomerado anárquico de existências individuais. Isso equivaleria a um ideal inconfesso de extremado individualismo, o que não passa de reação doentia a um coletivismo igualmente inadequado. Contrapondo-se a isso, o processo da individuação natural produz uma consciência do que seja a comunidade humana, porque traz justamente à consciência o inconsciente, que é o que une todos os homens e é comum a todos. A individuação é o ‘tornar-se um’ consigo mesmo, e ao mesmo tempo com a humanidade toda, em que também nos incluímos.
(Jung, 2013, p. 124)
E, para concluir, podemos emergir dessa onda de constante conexão às telas com a possibilidade de resgatar a presença no nosso dia a dia, evitando uma verdadeira avalanche de manipulações voltadas ao consumo, ao seguimento de conteúdos inúteis e à adoção de comportamentos que, em muitos casos, são apenas ilusões. Estamos cada vez mais sós, com a sensação de estarmos vinculados mas, na verdade, estamos mal acompanhados, à medida que nos tornamos joguetes de algoritmos que determinam a direção a seguir.
Euflausina Goes dos Santos – Membro Analista em formação IJEP
Dra E. Simone Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, C. G. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2014
______. A Prática da Psicoterapia. 16.ed. Petrópolis: Vozes, 2013
Lispector, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Lispector, Clarice. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 2015.

